APOLLO NATALI: “NÃO SOU CHARLIE” – Artigo de Celso Lungaretti
Com toda a razão, católicos de todo o mundo se sentiram agredidos em sua fé com a depreciação da figura de Jesus no filme A Última Tentação de Cristo, de Martin Scorcese. Sou espírita, o espiritismo é cristão, não vou me converter ao islamismo e muito menos assino embaixo de qualquer atentado. Mas a pergunta que não cala é se mulçumanos de todo o mundo igualmente não se sentem agora agredidos em sua fé com o jornalismo panfletário praticado mediante a já antiga produção semanal de cartuns a depreciar humoristicamente o fundador de sua religião.
É honesto, sou repetitivo, sim, o mundo se perguntar agora a que ponto se sentem agredidos em sua fé mulçumanos de todo o planeta, acreditados como pacíficos, vendo o criador de sua religião ridicularizado persistentemente diante da produção semanal de cartuns de uma imprensa merecedora de ser chamada panfletária, do tipo do primeiro império no Brasil, de liberdade total para injuriar, caluniar, difamar, provocar e a liberar violência física e mortes entre ofensores e ofendidos.
A liberdade de expressão tem limite, evidentemente que tem. Numa democracia, esse orgulho do Ocidente e profissão de fé dos visionárias da liberdade, da justiça, da paz , sabemos todos, esse limite é não ultrapassar as fronteiras da lei, da ordem, da ética. O limite da liberdade de imprensa é o respeito ao próximo. Simples assim.
Mas é ingenuidade delirar preceitos jornalísticos universais sabendo-se que por trás da produção de cartuns ignominiosos a Maomé, se trava um confronto entre povos. Os cartuns panfletários do semanário Charlie Hebdo configuram uma prática de guerra destinada a desmoralizar inimigos e não se resguardam em qualquer valor ético para reclamar atentado à liberdade de imprensa. Com o fim de desmoralizar inimigos, Charlie desfere injúria contra amigos, inimigos, religião, seres humanos.
É hora de separar: de um lado, a imprensa. Do outro, essa guerra contemporânea, ideológica e econômica, cuja gênese pode ser encontrada na natureza tenebrosa da espécie humana. Reclamar que o injustificável, embora explicável, atentado à revista Charlie Hebdo foi um tranco na liberdade de expressão, como fazem até alguns considerados ícones entre os jornalistas, é jogar no lixo o que a humanidade aprendeu até agora sobre imprensa.
Pois é o que está em jogo, o papel da imprensa.
As palavras que a seguir saem da minha boca não são uma vaidosa aula de jornalismo e sim meu modo de dizer porque não sou Charlie, essa expressão que assume ao mesmo tempo a conotação de cooptação a atentados psicológicos à pessoa humana praticados por um semanário e de condenação, justificável, de atentados terroristas com mortes. Hebdomadário quer dizer semanal, explica a já minha presunçosa aula.
Portanto, crianças, imaginemo-nos em sala de aula sobre comunicação. Diz-nos no Brasil o professor José Marques de Mello que a charge é gênero jornalístico opinativo. Há também, ensina ele, os informativos – notas e notícias, e os interpretativos – a entrevista, a reportagem, o livro-reportagem.
Pois bem, charge é gênero jornalístico e, como tal, necessariamente impregnado de seus limites morais. O que surpreende, e o quanto surpreende, é que mesmo jornalistas-mito, escudados numa desvairada liberdade de imprensa tipo lesa-humanidade, defendam a afronta que o manuseio de um lápis comete contra todo um imenso povo, sua religião, seu líder.
Não sou Charlie.
(Apollo Natali, especial p/ o blogue Náufrago da Utopia)
LUNGARETTI: “SER OU NÃO SER CHARLIE? SER OU NÃO SER CIVILIZADO?”
“…assim, mal dividido,
esse mundo anda errado:
que a Terra é do homem,
não é de Deus nem do diabo”
(Sérgio Ricardo, O sertão vai virar mar)
Apollo Natali, meu amigo há décadas e ex-colega de redação na Agência Estado, é um dos grandes jornalistas e dos melhores seres humanos que conheço. Sua opinião terá sempre lugar e vai ser sempre respeitada nos meus espaços virtuais, daí eu ter imediatamente concordado com seu pedido de publicação do artigo Não sou Charlie (acesse aqui), expressando seu descontentamento, como religioso, com filmes e publicações que lhe parecem inconvenientes.
Também tenho, claro, algumas palavras a dizer. Não se nega aos crentes o direito de sentirem-se ofendidos, mas vale lembrar que nenhum deles é obrigado a ler o Charlie Hebdo ou ver A última tentação de Cristo. Os que o fizeram, provavelmente, foi em função do falatório e das polêmicas, para verificarem se era ou não verdade o que se dizia a respeito de ambos –já predispostos, portanto, à indignação.
No Ocidente, com a separação entre Igreja e estado, sua única iniciativa possível contra a fita era recorrerem aos tribunais. Felizmente, países contemporâneos à própria época não censuram filmes por atentarem contra a imagem de personagens históricos que alguns consideram sagrados, outros não. E já vão longe os tempos em que católicos queimavam bruxas e lançavam cruzadas sanguinárias contra os infiéis, então nenhuma besta-fera foi encher de balas o diretor Martin Scorcese ou o ator Willem Dafoe (que interpretou Cristo)
Os responsáveis pelo semanário, por sua vez, jamais fizeram o que seria, realmente, uma provocação: providenciar traduções e lançar edições direcionadas para países e contingentes humanos que vivem no século 21, mas continuam com a cabeça no século 6.
A quais maometanos antes incomodavam, de verdade, os 60 mil exemplares do Charlie Hebdo comercializados semanalmente na Europa? Pouquíssimos, decerto. O que houve não foi nenhuma reação furibunda de indivíduos emocionalmente primitivos que estariam sentindo-se agredidos em sua fé, mas sim uma sanguinária e calculista demonstração de força de terroristas clássicos (aqueles que, como francos-atiradores dissociados das massas e sem estarem contribuindo para nenhum ascenso revolucionário, utilizam a violência apenas para punirem e intimidarem seus inimigos), os quais garimparam diligentemente, até encontrarem, um alvo condizente com a mensagem que queriam passar.
Terroristas clássicos obtêm muitos holofotes, mas sua pirotecnia quase sempre levanta a bola para o inimigo marcar pontos, além de eventualmente ter consequências catastróficas. No primeiro caso está, p. ex., a tentativa de matarem o czar Alexandre III em 1897, que redundou na execução do irmão do Lênin, Alexandre Ulianov, e de quatro de seus companheiros, além, é claro, de um previsível agravamento da repressão política.
E no segundo, tanto o assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando por parte do mão negra Gravilo Princip em 1914, que conduziu aos horrores da 1ª Guerra Mundial; quanto o atentado ao WTC em 2011, responsável pela pior escalada global de estupro dos direitos humanos e perseguição a inocentes que os cidadãos de origem árabe já sofreram.
Marxistas e anarquistas há muito descartaram e se dissociaram do terrorismo clássico. Nos últimos tempos, contudo, contingentes desnorteados de esquerda, trocando a coerência com seu amadurecimento político que já haviam atingido pela mais tacanha realpolotik, vêm cometendo uma dupla heresia (este termo retrô cai como uma luva no atual contexto…):
- a de defenderem fundamentalistas religiosos que não querem, de maneira nenhuma, fazer a humanidade avançar para além do capitalismo, mas sim fazê-la retroceder para antes do capitalismo, ou seja, para as trevas medievais; e
- a de defenderem terroristas clássicos e seus monumentais tiros pela culatra, tornando-se parceiros dessas derrotas e associando estupidamente sua imagem a carnificinas que qualquer cidadão isento repudia.
Caem no vazio suas tentativas de relativização de um episódio que foi, isto sim, totalmente bestial e absolutamente condenável. Quando alguém é chacinado por dá-lá-aquela-palha, buscar justificativas para o crime soa hipócrita e aberrante. Uma das diferenças entre nós e os animais é que, ao contrário dos touros, não temos nenhuma compulsão irresistível de destruir um semelhante apenas porque veste vermelho.
Reconheço e até admiro a boa fé de religiosos como o Apollo Natali, mas não perdoo os esquerdistas que abdicam do seu compromisso fundamental com a civilização, passando a raciocinar como simplórios torcedores de futebol (“Se é contra os EUA, a Europa e Israel, vale tudo, até gol de mão nos acréscimos, em posição de impedimento”…).
Por último: religiosos de ocasião e por conveniência à parte, como fica a questão das pessoas devotas que, sinceramente, sentirem-se insultadas em sua fé?
Ora, sendo nosso estado laico, homens tidos como santos são encarados, por quem não é religioso, como personagens históricos (ou fictícios) iguais a quaisquer outros. Não cabe nenhuma forma de censura ou perseguição dos poderes públicos a quem trata Cristo ou Maomé da mesma forma que, digamos, Vlad Dracul e Hitler (os quais, aliás, têm lá seus defensores, mas 99,9% do que aparece sobre eles em filmes e semanários é extremamente negativo).
E, como a ninguém é dado o direito de fazer justiça com as próprias mãos no Brasil do século 21, só resta aos ofendidos o caminho dos tribunais e de iniciativas visando ao convencimento da opinião pública (desde anúncios pagos até campanhas virtuais incentivando o boicote aos blasfemos).
No fundo, o que os religiosos pretendem é que se conceda um tratamento diferenciado para quem eles consideram diferente. Mas, agnósticos, ateus e mesmo religiosos de outras confissões podem discordar (um neopentecostal admitiria, p. ex., Oxalá como similar a Jesus Cristo?). Então, não faz nenhum sentido, em termos legais ou morais, pretender que a imprensa não os ridicularize como ridiculariza outros personagens históricos do passado e do presente.
Podemos até achar que a irreverência é exagerada no seu todo, que a nossa imprensa pega pesado demais com Paulo Maluf e Jair Bolsonaro, ou que a francesa pega pesado demais com Jean-Marie Le Pen e Maomé. O que não podemos é aceitar como válidos os piores achincalhes a Bolsonaro, Maluf e Le Pen e, ao mesmo tempo, não admitir a mais inofensiva irreverência com Maomé.
Caso contrário, para que terão servido, afinal, 1945 e 1985 aqui, o iluminismo e a grande revolução lá? E de que valeu tantos resistentes morrerem lutando contra os nazistóides daqui e contra os nazistas de lá? Pois eram todos expressões da intolerância, fanatismo e autoritarismo inseparáveis da tese da intocabilidade dos homens santos…
Além do mau humor e dos maus bofes, claro!
(Celso Lungaretti, no blogue Náufrago da Utopia)