Marcelo Augusto Paiva Pereira: ‘A arquitetura e o tempo’
Desde as primeiras civilizações temos transformado os espaços onde vivemos. Do surgimento de Jericó (7.000 a.C. ou mais) até os dias atuais criamos, construímos, destruímos e reconstruímos movidos pelas necessidades de sobrevivência ou por maiores interesses (conquistas de territórios e de civilizações, por exemplo). Seguem abaixo alguns comentários.
Diversas foram as civilizações da antiguidade, das quais várias obras chegaram ao presente: gregos, romanos e outras do ocidente, bem como assírios, babilônios, caldeus, cartagineses, egípcios, fenícios, hebreus, lídios, persas e sumérios do mundo oriental deixaram a escrita, a moeda, as pirâmides e a esfinge de Gizé, a geometria, a filosofia, os templos gregos e romanos, os aquedutos e o direito romano, o Pentateuco, o Antigo e o Novo Testamento, além de muitas outras.
Outras civilizações orientais, muitas também procedentes de famílias ou clãs, revezaram o controle dos países em que se fixaram (Camboja, China, Coréia, Japão e outros) e, assim como aqui, também deixaram várias obras, das quais são exemplos o papel-moeda, a pólvora, o canhão, a grande muralha, o Budismo, as artes marciais e muitas outras.
Na arquitetura e urbanismo diversas obras e cidades surgiram ao longo do tempo e a ele tem resistido com maior ou menor conservação. Várias urbes gregas, romanas, de outros países e outras obras, surgidas no curso dos períodos da história, também são monumentos ou documentos que trazem o passado até nós e nos levam de volta a ele.
Das portas, janelas, átrios, jardins, paredes, muros, colunas, pilares, pilastras e outros componentes entramos em espaços deixados para trás, ao mesmo tempo em que vem até nós na configuração dada pela atualização, conservação ou modificação de cada obra. Ciências, costumes, crenças, mitos, política e religião de épocas remotas repercutem da razão da existência de cada e na dimensão entre tempo e espaço, pelas quais aludidas obras devem ser em relação ao tempo e estar em relação ao espaço.
Ser e estar numa delas podem significar o resgate psicológico ou afetivo de uma pessoa, em que ela faz uma viagem no tempo e resgata a própria origem (ser) enquanto se identificar com o espaço (estar). É uma relação personalíssima e espiritual, pela qual se incorpora no ambiente e o vivencia como se retroagisse aos primórdios daquela obra ou da própria origem genealógica.
Conclusivamente, a arquitetura e o tempo se relacionam na existência de cada obra, em que cada uma poderá ser transformada pela variação do tempo no espaço e a alteração deste no tempo, enquanto a cultura da sociedade de cada lugar em cada época requalifica os usos ou finalidades delas. Deixam de ser o que foram, sob outra configuração. A razão e a dimensão que as transformam para o que são (ou foram) e estão (ou estiveram), entretanto, não desaparecem. Nada a mais.
Marcelo Paiva Pereira: 'A construção da cidade: o mito fundador'
A CONSTRUÇÃO DA CIDADE: O MITO FUNDADOR
Desde os primórdios da Idade Antiga, as cidades são construídas para satisfazer as necessidades e interesses das sociedades. Os fundamentos ontológicos das cidades são a natureza (ou origem), o tempo, o espaço, a condição humana e as regras instituídas, as quais resultam da identidade e da complexidade das várias culturas que as ergueram.
As concepções metafísicas (essência das coisas, como são os conceitos, noções, crenças, afetividades, imagens e expectativas) são a identidade histórica de cada cultura e servem de suporte para conhecer e compreender o passado. Neste contexto, as concepções de espaço dependem do conceito de mito – crença na existência do surreal – para justificar as cidades.
O mito era elemento psicológico e cultural dos povos antigos. Na Idade Antiga, mitos e ideologias eram fontes de normas de ordenação do espaço na arquitetura e no urbanismo. À cidade ou à construção de qualquer edifício atribuíam o “status” de ato ritual. Edificar era ato de poder e os ritos de implantação do espaço eram ritos de soberania.
Os ritos com os quais se erguiam as cidades e edifícios eram cumpridos por reis e sacerdotes em obediência a modelos ancestrais ou celestiais e conectavam o mundo material das cidades com as concepções metafísicas (transcendentes). Dentre os modelos celestiais havia o princípio do curso do sol, que definiu as primeiras bases do espaço regrado e as normas específicas de distribuição do espaço (dividiam o espaço e definiam a hierarquia social). Palácios e templos eram fontes de produção normativa e das realizações urbanas.
Nas sociedades gregas a esfera do sagrado – templos e altares – definia o espaço na delimitação do núcleo simbólico e o separava da área de habitação, comércio, serviços e dos limites urbanos. Em razão da esfera do sagrado organizar somente o núcleo simbólico, as outras áreas urbanas eram mal distribuídas, sem ordem ou racionalidade na organização espacial.
No século V a.C., o arquiteto Hipódamo de Mileto redesenhou o Pireu (porto de Atenas) sob plano ortogonal com quadras ordenadas em forma de grade, que em seguida o utilizou para reformar as cidades de Mileto, Priene e Olinto (estas se tornaram modelos urbanos hipodâmicos).
Hipódamo entendia o projeto urbano como fonte de uma ordem social racional. Nele influiu a ideologia da isonomia (simetria e proporcionalidade), ideal geométrico da igualdade que, institucionalizado, legitimou a democracia clássica e mensurou a ordem social. As escolas dele e de Hipócrates (“pai” da medicina) acolhiam as propriedades do corpo, a ordem do espaço e a circulação dos elementos. Com estes conceitos Hipódamo entendia a cidade ordenada como o lugar do corpo sadio.
Da atuação de Hipódamo resultou uma nova teoria urbanística, pela qual o plano urbano é desenhado em medidas de proporção entre elas (isonomia geométrica), ao encontro da nova ideologia da cidade (isonomia social e institucional), que Alexandre Magno a difundiu.
Na sociedade romana o mito da fundação de Roma – rito fundador – era a norma pela qual o rei (“rex”) realizava com linhas retas o traçado do território nacional (reino do sagrado) e o separavam do estrangeiro (reino do profano).
O centro da cidade era definido por duas retas ortogonais, em que uma fixava a orientação norte-sul (“cardus”), enquanto a outra fixava a orientação leste-oeste (“decumanus”). No cruzamento de ambas estava o “umbilicus” e sob ele estava o “mundus”, câmara subterrânea na qual enterravam-se oferendas em favor dos deuses. Os limites das cidades chamavam-se “promerius”. O rito fundador era imitado para definir o centro urbano, a distribuição das quadras e ruas e posicionar as habitações (“domus italica”).
As habitações romanas – “domus italica” – eram um modelo de origem etrusca, constituíam-se do “impluvium” (repositório das águas pluviais), o “peristilo” (espaço aberto contornado por colunas); o “atrium” (corredores circundantes do “impluvium”) e a “villa” (conjunto de células habitacionais ao redor do “atrium”e do “impluvium”). O desenho arquitetônico era introspectivo (voltado para o centro das habitações), recebia água e luz naturais (fontes da vida) e as distribuía pelos espaços de circulação e de moradia.
Séculos se passaram desde a Idade Antiga até a atualidade. Neste período, em muitas foram as descobertas (como as novas rotas comerciais), muitas inovações artísticas, científicas e muitas cidades foram erguidas, principalmente no novo mundo que surgia, a América. Neste continente encontra-se nosso país e Brasília (capital federal), que também tem o próprio mito de fundação.
Em relação à Brasília, o mito de fundação é a visão profética de Dom Bosco, padroeiro da cidade, que previu a construção da capital federal no planalto central do Brasil. Sem óbice deste mito, a legislação pátria previa a construção da capital no centro do país para protege-la de invasões estrangeiras, desenvolver e integrar todas as regiões, inclusive as mais longínquas.
Foi na administração de Juscelino Kubitschek – 1956 a 1961 – que a expectativa se realizou, na forma do plano piloto desenhado por Lúcio Costa e preenchido com os edifícios desenhados por Oscar Niemeyer. Ambos pertenceram à escola modernista, que veio ao Brasil em fevereiro de1922 com a Semana de Arte Moderna, ocorrida em São Paulo.
O modernismo reorganizou o espaço para suprir as necessidades oriundas da Revolução Industrial e do capitalismo. Diante da nova sociedade que surgia, os objetivos do planejamento urbano foram a moradia, o trabalho, a circulação e o lazer. Pretendia-se por um novo estilo de vida, igualitária, que modificou por inteiro o tecido urbano e introduziu novos (conceitos de) edifícios (por exemplo, o uso do aço e, posteriormente, do concreto).
O projeto e a construção de Brasília seguiram esses objetivos, princípios informadores do modernismo na primeira metade do século XX, e prometia ser o símbolo da ordem, progresso e desenvolvimento os quais o país estava conhecendo. Assim como nas sociedades da Idade Antiga, no Brasil de meados do século XX havia as crenças e expectativas de surgir uma nação forte e soberana.
CONCLUSÃO
Na Idade Antiga as cidades eram construídas conforme os mitos e ideologias que compunham modelos ancestrais ou celestiais, versões apriorísticas da tipologia urbana a ser seguida pelo rei ou sacerdote. Gregos e romanos pensaram a construção da cidade sob o modelo ancestral, mas os gregos as redesenharam com suporte na isonomia geométrica, enquanto os romanos as desenharam com suporte nas linhas que demarcavam os limites da cidade (“promerius”), do centro (“umbilicus” e “mundus”) e das habitações (“domus italica”).
Na Idade Contemporânea, Brasília surgiu como a realização de uma profecia em concomitância aos interesses políticos e econômicos de desenvolver o país à luz do modernismo, que em 1922 se instalou no Brasil e atendeu aos desejos de modificar os projetos urbanos e os costumes sociais, com vistas à uma nova ordem social e ao progresso do país.
Em suma, a construção da cidade tem origem nos primórdios da Idade Antiga e desde aquele período havia regras de elaboração que emanavam dos poderes de soberania ou da ordem social, com o objetivo de criar um Estado forte, rico, desenvolvido e soberano. A diferença para a época atual está na justificação: enquanto naquele tempo eram os mitos e ritos suas bases, atualmente são os interesses econômicos, sociais e políticos. Nada a mais.