Meu sonho

Seth Marcelo: Crônica ‘Meu sonho’

Seth Marcelo
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Imagem criada pela IA do Bing
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Ontem, tarde de julho, fria e triste, esperava por uma amiga no supermercado Max, de Kakuaku-Vidrul, quando fui abordado por um miúdo que, atrevidamente, veio ter comigo. Eu, traumatizado com essas coisas de assaltos que vão acontecendo em Luanda, fugi às pressas e com o coração batendo descompassadamente, tremendo de medo. Julguei que fosse um desses meninos armados em bandidos. Mas, insistentemente, o menor, que estava vestido com uma bermuda rota, chinelos remendados com pregos, uma camisola já meio gasta, seguia-me.

Poxa! ganhei coragem, minhas pernas ficaram bambas, coração acelerado que nem uma prova de Fórmula 1. Parei de medo e comecei a chocar com a minha personalidade. Afinal, sou professor. “Corro mais, ou paro?” – era o conflito. Vindo até perto de mim, ofereceu-me uma calorosa e humilde saudação.

Não se tratava nada de um mau rapaz. Era o Miguel, que aparentemente sofria da mesma semelhança com outros seus conterrâneos: fugiu de Benguela para Luanda tentar a vida. Depois da saudação e pequena apresentação sobre quem era, Miguel pediu que eu lhe desse emprestado o meu telefone para ligar para sua mãe, que era vítima da tragédia no Lobito.

Segundo o menor, de 17 anos de idade, desde que saiu de Benguela, em 2013, não tem mantido contato com a mãe porque o seu humilde trabalho de roboteiro ocupa-lhe muito tempo. Mas nunca se esqueceu das suas origens e, apesar das dificuldades, procurou guardar o número telefónico da mãe num pequeno pedaço de papel. Por isso, de quando em vez liga para saber da saúde dela que não andava lá tão boa. Fora diagnosticada com diabete.

Fomos numa esquina fazer a chamada; a conversa, que demorou mais de 15 minutos, não era com a mãe de Miguel. Era sua avó, que contava sobre uma tragédia em que conseguiu sair ilesa, porque no dia das quedas torrenciais estava numa outra zona de Benguela. A mesma sorte não teve a irmã de Miguel, neta da velha e dois bisnetos que foram arrastados com a chuva naquele dia. O corpo dos menores apareceram, mas o da mãe e o da irmã até ao momento continuam desaparecido.

Durante a conversa, a velha se desesperava e chorava amargamente em umbundu, sua língua materna. Contou também que a chuva matou um amicíssimo do Miguel e destruiu a casa onde o próprio vivia antes de emigrar para Luanda.

De repente, fez-se silêncio no outro lado da linha. Miguel pensou ser falha da rede telefônica, e pôs-se a gritar insistentemente, e, com os olhos a marejar, coçava a cabeça. Alló! Alló! Alló mamã, e não havia retorno. O saldo de 200 kwanzas que disponha 24 minutos terminou e, com ele, agravando a preocupação e agitação de Miguel. Eu, em particular, fiquei em choque vê-lo naquele estado. Passamos alguns minutinhos juntos, perto da cabine onde havíamos nos acomodado.  Não tardando, o telefone tocou, atendi e já era outra voz em linha, o tio do Miguel, a pedir que ligássemos mais tarde, porque a pressão arterial da velha subia de mais, o que levou-lhe a uma crise.

O clima era tenso de preocupação. Pedi ao Miguel que sentasse um pouco a fim de se acalmar. Apesar da resistência, sentou-se. Enquanto isso, íamos ligando sempre, mas ninguém atendia o telefone.

Olhando nos olhos do Miguel, percebi que tentava ser forte, mas a dor era crucial e não poupava-lhe. Não resistiu, e, em seguida, meteu-se aos choros. Passamos mais de uma hora juntos. Consolei o miúdo e, momentos depois, conversamos mais sobre ele e sua família.

Ele contou-me que um dos principais objetivos que lhe trouxe à cidade de Luanda era trabalhar e conseguir dinheiro para construir uma casa digna para sua mãe. Falou também que havia prometido bicicletas para os sobrinhos que agora em feliz memória.

– E agora? -perguntei ao Miguel. Simplesmente, ele respondeu-me que ainda hoje vai fazer as malas e partir para Benguela. Despedimo-nos e cada um ao seu destino foi. Só não sei se, até o momento, está cá! O que na verdade sei, é que estive a sonhar. Tomei noção quando o meu irmão menor tossiu diante da cabeceira da cama onde estive a dormir. E ao despertar do profundo sono, me vi envolvido num cobertor de xixi, e o frio ressecava minha pele. Envergonhado e gemendo, percebi que estive diante de um sonho bem real.

Seth Marcelo

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Pedro Novaes: 'Naturalmente bandidos'

colunista do ROL
Pedro Novaes

Pedro Israel Novaes de Almeida – NATURALMENTE BANDIDOS

 

 

Não convém divulgar às crianças, mas existem pessoas de má índole.

Discordo da simplificação grotesca, segundo a qual o homem é mero produto do meio. Conheço pessoas, muitas, que nasceram e cresceram em ambiente hostil, vivenciando violências e desrespeitos os mais diversos, e no entanto são incapazes de qualquer maldade.

Conheço pobres e miseráveis incapazes do mínimo roubo ou desonestidade, e conheço injustiçados que não nutrem qualquer desejo de vingança.

Nada sei da formação da personalidade, e tampouco conheço os meandros da psicologia, mas filio-me aos meramente intuitivos, nada científicos, que juram que os homens não nascem vazios, como uma caixinha onde vamos depositando valores morais.

Nada sei de ocultismos e teorias de ancestralidade, mas sinto que a bagagem básica das pessoas já existe na vida fetal. Podemos, tão somente, inibir parte da selvageria e crueldade natas.

É comum irmãos, nascidos e criados no mesmo ambiente, portarem-se de maneira diametralmente opostas, e é comum filhos de pais que não prestam serem ótimas pessoas.

Em momento de radical realismo, apimentado por visão pessimista da humanidade, não titubeamos em afirmar que a maioria das pessoas que figuram como boas são, em verdade, feras domesticadas, ou temerosas de praticar os atos que natural e maldosamente desejam.

Nenhuma ideologia ou lavagem cerebral é capaz, por si só, de induzir uma pessoa a praticar o terrorismo, matando transeuntes que sequer conhece, explodindo crianças e envenenando multidões.

Acredito que existe um permanente embate entre a selvageria e a civilidade, e passamos pela vida tateando a tênue linha que divide as tendências humanas.   Milionários criminosos, autoridades corruptas e déspotas em geral são, antes de qualquer classificação, pessoas más, capazes dos mais hediondos atos.

As crises, como a que atravessamos, desvendam a maldade que causa tanta miséria e sofrimento, e a maquiagem que reveste pessoas tidas como celebridades, frequentadoras assíduas de rodas formalmente educadas e suntuosas.

A maldade frequenta castelos e favelas, mansões e barracos, esquinas e avenidas.  Acostumada às maldades, a humanidade esquece de prestigiar e propalar os bons exemplos, confinando as dignidades ao rol de insignificâncias.

É tempo, faz tempo, de premiar os justos, erigindo templos à virtude, e agindo como aquele que, sendo bom, justo e pacífico, não hesitou em açoitar os vendilhões do templo.  Ser bom não é ser manso.

pedroinovaes@uol.com.br

O autor é engenheiro agrônomo e advogado, aposentado.