Marcus Hemerly entrevista a psicanalista Bruna Rosalem sobre o tema 'Saúde mental em tempos pré e pós pandemia'
“… todo analista que se preze precisa fazer sua análise pessoal com outro psicanalista para que ele consiga administrar seus próprios conflitos, ambiguidades, controvérsias, medos, inseguranças.” (Bruna Rosalem)
A saúde mental revela-se como um tópico de extrema importância, mormente em tempos modernos, antes e após o cenário pandêmico. A complexidade multidimensional da vida em sociedade, seus percalços e nuances, decerto, são a causa de fantasias, satisfações, pulsões e frustrações. Saber lidar com a rotina de forma a melhor balizar a saúde física e psíquica – afinal, mente sã em corpo são – pode revelar-se como uma tarefa hercúlea em épocas turbulentas. Inúmeras dúvidas surgem em relação ao momento certo de procurar acompanhamento psicológico ou psicanalítico, bem como as modalidades de assistência e suas formatações.
Neste espaço, trataremos sobre alguns questionamentos pertinentes, numa entrevista com a psicanalista Bruna Rosalem, que atua na cidade de Balneário Camburiú/SC.
1) Muitas pessoas têm a concepção de que a formação em psicanálise depende de uma especialização anterior em psicologia ou alguma vertente do estudo comportamental. Conte um pouco sobre o curso de psicanálise e os requisitos para sua prática.
Bruna Rosalem: Eu diria que a psicanálise é um percurso que participará da vida do analista por toda a vida, afinal, lidamos com as questões do psiquismo humano, emoções, sentimentos, sintomas, conflitos, e este compromisso exige estudos constantes e atualizações. A formação (ou deformação) do analista cumpre um tripé: teoria, análise pessoal e supervisão. Existem várias escolas de formação de analistas pelo país, inclusive, escolas pós-freudianas como a lacaniana, winnicottiana e assim por diante.
A base dos estudos sempre será de Freud, afinal, ele é o criador deste método investigativo e empírico que é a psicanálise. Ao longo do processo, o analista precisa passar pela análise pessoal continuamente, para que ele viva a análise e possa ser analista de outros, e claro, trabalhe as suas próprias neuroses, escute sua voz, acesse conteúdos inconscientes. Depois, o trabalho de supervisão de seus próprios pacientes com o seu analista é muito importante para aprender o manejo da técnica psicanalítica, lidar com a diversidade, com a contratransferência, debater com seu supervisor, diversas problemáticas trazidas pelos analisandos.
Para fazer o curso é necessário graduação completa em qualquer área do conhecimento. Cabe ressaltar que a psicanálise não é um ramo da psicologia. São vertentes muito diferentes. Durante os estudos, o futuro psicanalista verá se ele realmente tem perfil para esta profissão tão instigante e desafiadora. Diria que é preciso ter a mente aberta, trabalhar os julgamentos, pré-conceitos, ser paciente, aprender a ouvir, ter sede pelo conhecimento, lidar com o não saber, com as nuances da análise e exercitar o equilíbrio emocional.
2) Em contraposição à errônea noção de que numa primeira sessão de análise, o paciente seria confrontado e, por consequência, identificados todos os seus problemas e limitações, sabe-se que as ‘provocações’ e indagações conduzem à autodescoberta. Como se estimula e molda-se tal condução do analisando durante a terapia?
Bruna Rosalem: Em psicanálise trabalhamos a associação livre, que é, basicamente, o analisando falar aquilo que vier à mente, sem roteiros, sem julgamentos, não há certo nem errado, e que ele possa se sentir o mais à vontade possível, vencendo aos poucos as resistências, os medos e as barreiras que, consciente ou inconsciente, ele coloca durante a sessão. O trabalho de análise está em pontuar, oportunamente, na fala do analisando trazendo conteúdos inconscientes, inclusive, os sonhos que são conteúdos importantes.
A escuta atenta do analista é de extrema importância, chamamos a isso de tensão flutuante. Deixamos o analisando falar livremente no mar de ideias e palavras, buscando captar contradições, atos falhos, escolha de palavras, frases colocadas e, assim, propiciar ao analisando fazer elaborações e insights dentro dos próprios conflitos que vivencia. Progressivamente, a transferência vai sendo construída entre analista e analisando, possibilitando vínculo, confiança, acolhimento, trocas, diálogos e intervenções.
3) O que se verifica, principalmente no cenário incerto delineado pela pandemia, como elemento deflagrador da procura pela análise? O que as pessoas buscam, num primeiro momento? E seria uma busca consciente?
Bruna Rosalem: Existem diversos motivos pelos quais as pessoas buscam uma terapia, por exemplo, crises de ansiedade, conflitos de relacionamento, familiares, compulsões, obsessões, vícios, etc. No caso da psicanálise, sempre falo que vamos em busca daquilo que está por trás dos sintomas, a sua gênese. O alívio dos sintomas em psicanálise é um ganho secundário, por consequência, eu diria, pois não é o foco da análise, mas sim, a origem dos afetos, os conteúdos inconscientes que estariam na raiz dos sintomas, dos conflitos, das repetições, das ações, dos comportamentos.
O que acontece, geralmente, é que a pessoa quando procura ajuda é para falar de algum momento atual que esteja vivenciando. Porém, conforme o trabalho de pontuação vai se desenrolando, é possível perceber que tais manifestações têm suas origens em algo que ficou marcado em algum lugar do inconsciente e que está provocando muito sofrimento. E este inconsciente é atemporal, não é cronológico. Então há muitos comportamentos conscientes e inconscientes que a pessoa expressa que é de difícil compreensão para quem sente e vivencia. Assim, a psicanálise vai ajudar o analisando a participar da própria dor e abrir caminhos e possibilidades para lidar com isso.
4) Bruna Rosalem, como profissional, existe um liame de experiências pessoais ligadas à sua própria vivência e história, aproveitáveis no lidar com os pacientes, ou a apreciação das questões afetas ao indivíduo analisando devem adstringir-se ao plano teórico científico?
Bruna Rosalem: Apesar de a teoria ser imprescindível no manejo técnico das sessões e para o conhecimento do sofrimento humano, existe a pessoa do analista. E este deve buscar a sua maneira de ser, sua singularidade, seu jeito de lidar com os analisandos. Sempre falamos em trabalhar a neutralidade em sessão, ou seja, estar diante das queixas dos analisandos, suas dores, angústias, e saber que naquele momento você as recebe, as aceita, as acolhe e está preparado para ajudar, mas que nada daquilo te pertence, nem mesmo o próprio analisando. Isto é de grande auxílio para saber ouvir as mais complexas situações e manter a postura e o distanciamento profissionais que a situação exige.
5) Geralmente, os pacientes demonstram uma resistência em dirigir o ‘microscópio’ a si próprios? Nesse passo, como são vencidas as barreiras ao autoconhecimento, que servirão como pilares à identificação de suas crenças e verdades inabaláveis?
Bruna Rosalem: Posso dizer que não é nada trivial fazer análise, estar neste processo de redescobertas, desconstruções, de vencer as resistências, de confiar naquela pessoa que está ali para te ouvir sem julgamento. Leva certo tempo, depende de cada sujeito, para que ele se sinta o mais à vontade possível em sessão, e aos poucos, conseguir quebrar as barreiras do ego, sejam elas conscientes ou inconscientes. Dessa forma, gradativamente, ele conseguirá expressar o seu real conflito e, muitas vezes, descobrir que seus comportamentos e afecções vem de conteúdos nunca antes explorados. É necessário dedicação às sessões, paciência, e principalmente, suportar a sua própria verdade. Para o analista, é fundamental demonstrar empatia, exercitar o ‘rapport’ (1) e manejar a contratransferência (2).
6) Em tempos de pandemia, uma nova sistemática de interação e/ou ausência de interação social (ao menos sua modulação), revelou suas feições, desencadeando uma gama de elementos fragilizadores do psiquismo. Qual a importância da terapia nesse cenário? E no dia a dia, quando/como identificar o momento de procurar ajuda?
Bruna Rosalem: Neste cenário pandêmico, a terapia se mostrou ainda mais fundamental para a saúde mental de todos. Afinal, muitas pessoas sentiram imensa dificuldade em entender este momento, readequar sua rotina, abdicar de muitos prazeres, evitar certas atitudes, aprender a viver novas formas de relacionamento, estudos, trabalho. Além, é claro, do medo que sempre pairava sobre nossas cabeças, aumentando as preocupações, pânico e ansiedade em estar contaminado com o vírus, e possivelmente, falecer. A terapia neste caso, foi como um refúgio para os sujeitos conseguirem lidar com esta situação alarmante, permitindo através de suas falas e expressões livres, colocar todo o sofrimento que estavam passando. Este processo permitiu grande alívio e maior controle da ansiedade.
Não há, na minha visão, um momento certo para procurar terapia. Não precisa haver grandes aflições para que o sujeito inicie o tratamento. No entanto, o que mais vemos, são pessoas que procuram ajuda quando o sofrimento está beirando o insuportável e prejudicando a qualidade de vida.
A escolha do sujeito é muito particular, isto é, nem sempre ele busca a análise de algo mais profundo, embora seja este o objetivo da psicanálise. Às vezes, o sujeito deseja apenas desabafar, se livrar de algum incômodo, de perturbações que estão implicando em sua vida no momento. Ninguém é obrigado a ficar, a psicanálise é livre, vem quem quer e fica quem deseja continuar.
7) O psicanalista, como ser humano, necessita de um olhar externo às suas questões e conflitos? Fale um pouco se a análise por outro profissional é relevante ou seria suficiente ou eficaz a ‘autoanálise’?
Bruna Rosalem: Freud, pai da psicanálise, fazia sua autoanálise. Como não somos Freud, vamos para a análise com um profissional. Brincadeiras à parte, todo analista que se preze precisa fazer sua análise pessoal com outro psicanalista para que ele consiga administrar seus próprios conflitos, ambiguidades, controvérsias, medos, inseguranças. Além deste processo auxiliá-lo em sua prática profissional, ele também necessita desnudar tudo aquilo que o perturba, afinal, o analista é um ser humano falho como qualquer um. Ele possui o conhecimento da psique humana, porém isto não o isenta de ter suas próprias questões e conflitos emocionais. É fundamental o reconhecimento pelo analista de suas perturbações e incongruências, para que ele possa seguir analisando seus pacientes, manejando a transferência e a contratransferência a seu favor.
N.E.
(1) Rapport é uma palavra que tem origem francesa e vem do termo rapporter que significa “trazer de volta”, entretanto, dentro da PNL (Programação Neuro Linguística) pode ser entendido como o estabelecimento de confiança, harmonia e cooperação numa relação.
(2) Contratransferência: emoções e sensações que o terapeuta vive ao longo de uma sessão. Trata-se de uma reação interna resultante da relação com o seu paciente e da forma como o terapeuta é impactado pelas histórias dele. Desse modo acontece uma identificação pessoal, consciente ou não, sentida intimamente pelo próprio analista com o seu analisado.
Bruna Rosalem é Psicanalista Clínica, Mestre em educação, ensino e práticas culturais.
Atendimento presencial e on line. Grupos terapêuticos. Professora e palestrante.
Contatos:(47)999626203
contato@psicanaliseecotidiano.com.br
direct no @psicanalistabrunarosale
www.psicanaliseecotidiano.com.br