Artigo de Guaçu Piteri: 'Float like a butterfly and sting like a bee'

Guaçu Piteri
Guaçu Piteri

Guaçu Piteri – “Float like a butterfly and sting like a bee”

“Float like a butterfly and sting like a bee”
Você, caro leitor, que tantas vezes se emocionou com as proezas de Cassius Marcellus Clay bailando no ringue enquanto demolia, um a um, os gigantes do pugilismo da sua geração, não deve perder tempo lendo esta crônica.

Com todo respeito, pode virar a página porque não é para você que ela é escrita.

Concordo que a performance do gênio do boxe é inigualável. Mas eu seria tolo se não tivesse o alcance de compreender que esta narrativa nada acrescenta à estupenda biografia do grande atleta do século vinte.

Tampouco tenho a pretensão de explicar o significado do título deste post, que traduzo: “Flutua como uma borboleta e agride como uma abelha”.

Quem teve a oportunidade de vê-lo em ação tem plena consciência da felicidade dessa inspirada metáfora.

Sem qualquer pretensão de saber literário, que reconheço não ser minha seara, ouso aludir à genialidade de Fernando Pessoa que, para expressar a universalidade do seu pensamento, teve que imortalizar três heterônomos.

Cassius Clay, por sua vez, para consolidar o compromisso em defesa da sua causa, enveredou por caminho análogo: Renunciou ao nome de batismo, marcado pelo estigma da sociedade escravagista em que foi criado e, corajosamente, assumiu nova identidade para denunciar as injustiças e humilhações atávicas sofridas pela sua raça. As consequências do seu compromisso foram devastadoras.
Muhammed Ali – nome escolhido pelo próprio personagem desta narrativa – preferiu renunciar à liberdade e à posição de prestígio e conforto para manter fidelidade ao combate em defesa da igualdade racial.

Quando se negou a lutar na guerra do Vietnam, sob a alegação de fidelidade a princípios e convicções, foi despojado dos títulos de campeão mundial, condenado a cinco anos de prisão e acusado de covardia e traição à pátria.

Ali respondeu com uma frase simples que acabou despertando a opinião pública dos Estados Unidos: “Não tenho nada contra esses vietcongues”.

Ao voltar aos ringues, anos mais velho, desacreditado e amargando penoso processo de ostracismo social, o gigante recuperou a heróica e inacreditável energia para surpreender o mundo e reconquistar o protagonismo como lenda do esporte.

Ele próprio deve ter duvidado do seu extraordinário feito ao declarar que seu maior êxito fora a reconquista de seus três títulos mundiais. No ringue, sem dúvida, esse foi seu feito mais glorioso.

Mas, na sua trajetória randômica, marcada por acertos, erros e contradições entre os extremos da paixão pelo boxe e do compromisso com as bandeiras sociais, o campeão escolheu seu lado: “O boxe não era nada. Não tinha importância. O boxe foi apenas o meio para me introduzir no mundo”.

O compromisso social, a seu juízo, foi a missão que veio cumprir na Terra.

Embora nunca tivesse parado de lutar, Muhammad Ali perdeu a batalha contra o mal de Parkinson.

Morto aos 74 anos, foi sepultado em Luisville, Kentucky, como queria.

No cortejo fúnebre, havia casais de diferentes raças e até crianças mestiças, mas o sonho da igualdade racial está longe de ser realizado.

Não asseguro que, grandes ativistas como Martin Luther King, Mandela e Muhammad Ali, deram a vida pela causa da igualdade, em vão.

Prefiro acreditar que os versos de Bob Dyllan anunciem os ventos da esperança: ” The answer my friend, the answer’s blowin’ the wind.”

Missão cumprida guerreiro, vai em paz!




Artigo de Celso Lungaretti: 'LEIA O TRIBUTO DO LUNGARETTI A MUHAMMAD ALI (1942-2016) E REVEJA, NA ÍNTEGRA, A 'LUTA DO SÉCULO''

CELSO LUNGARETTI: MORRE MUHAMMAD ALI, O BOXEADOR  QUE NÃO VENDEU SUA ALMA


 

Tem a postura da estátua da Liberdade

e a altura do Empire State.

Salve, Cassius Marcellus Clay!

(Jorge Ben)

Depois de longa luta contra o mal de Parkinson, morreu na madrugada deste sábado (4), aos 74 anos, o extraordinário Muhammad Ali. Os médicos deram problemas respiratórios como causa.

Ele simplesmente revolucionou o boxe peso-pesado, antes dominado por grandalhões fortes mas lentos. Bem mais ágil do que os adversários, baseava sua defesa antes na rapidez com que se movimentava no ringue do que na guarda. Chegava a usar as mãos apenas para golpear, batendo e saindo sem ser atingido.

E levava os racistas ao paroxismo da indignação, ao proclamar-se forte, ágil e bonito.

Era um negro orgulhoso de ser negro, algo inimaginável naqueles tempos em que os negros conheciam o seu lugar  e aceitavam passivamente sentar-se em locais separados nos ônibus, nos restaurantes, etc.

Falastrão, ele chegava também a ofender seus adversários, como Sonny Liston, o primeiro homem mau do boxe que Ali humilhou nas declarações prévias e depois demoliu no ringue, despojando-o do título com duas contundentes vitórias –por nocaute técnico no 7º assalto e por nocaute-relâmpago aos 2:12 da revanche.

Num excelente documentário de Dimitri Logothetis, Champions forever (1989), os aposentados Ali, George Foreman, Joe Frazier, Ken Norton e Larry Holmes trocaram ideias sobre os duelos de gigantes que travaram. Os outros quatro mostraram muito carinho por Ali e reconheceram que suas declarações bombásticas para promover as lutas multiplicaram várias vezes o valor das bolsas que recebiam, daí não lhe terem guardado ressentimentos.

“VIETCONG NENHUM ME CHAMA DE  NIGGER

Suas esquivas colocavam o adversário em ridículo

Ali perdeu o cinturão, muita grana e alguns dos melhores anos da carreira de um pugilista por recusar-se a coonestar a agressão estadunidense ao povo vietnamita –atitude que justificou com argumentos religiosos, mas cujo motivo maior ficou evidenciado na frase “Vietcong nenhum me chama de  do mundo com a recusa em envergar a farda dos EUA?

Para sobreviver, chegou a dar palestras em faculdades, encantando os estudantes com sua grandeza moral e sua inteligência aguda.

Certa vez lhe pediram que, de bate-pronto, compusesse um poema. Não negou fogo. Fez um de apenas duas palavras: “Eu. Nós.”

O minimalismo extremo –alguém imaginaria que ele fosse capaz de criar algo assim?

DAVI VETERANO x GOLIAS NO AUGE

Depois de perder seu título e passar três anos e meio fora dos ringues, Ali voltou e, já na terceira luta, tentou reconquistar o cetro.

Pareceu não ter-se dado conta de que a vantagem sobre os adversários diminuíra (haviam assimilado suas inovações) e até estar despreparado para a maratona de 15 assaltos.

Vinha melhor, mas foi derrubado por Frazier no último round. A vantagem por pontos que acumulara, aparentemente, ainda lhe garantiria a vitória, mas os jurados assim não entenderam.

Depois, sem título em disputa, travaram nova luta equilibradíssima e a vitória por pontos –também muito contestada– foi conferida a Ali.

Ele recuperou o cinturão ao vencer Foreman na maior luta de boxe de todos os tempos e de todas as categorias [imortalizada nos excelentes livro de Norman Mailer (A Luta,1975) e documentário de Leon Gast (Quando éramos reis, 1996)].

Já com 32 anos, teve de enfrentar um campeão jovem e poderosíssimo, que acabara de simplesmente massacrar Joe Frazier, mandando-o à lona seis vezes em dois rounds.

A apreensão generalizada era de que Ali, além de derrotado, saísse morto do ringue, pois seu amor-próprio o impediria de desistir, fosse qual fosse a intensidade do castigo recebido.

Mas, ele tirou coelho da cartola. Todos lembram de sua técnica refinadíssima, mas Ali era muito mais do que isto. Tinha dons de grande estrategista, como se combinasse os papéis de pugilista e de técnico.

A direita ainda erguida é a que deixara de golpear Foreman

Foi assim que ele venceu o invencível  Big George. Boxeando francamente contra ele no primeiro assalto, percebeu que jamais conseguiria a vitória lutando de igual para igual. A força descomunal do lutador mais jovem prevaleceria.

Então, adotou a postura que qualquer pugilista comum consideraria suicida diante da enorme potência dos golpes de Foreman: deixou-se ficar encostado nas cordas, recebendo o bombardeio e aparando-o com sua guarda.

Alguns obuses atingiam o alvo de raspão, outros se chocavam com os braços de Ali. Nenhum o abalou suficientemente. E Foreman, acostumado a nocautes rápidos, foi se cansando.

No quinto assalto, o Ali aparentemente apático, que só se defendia, mostrou que era, isto sim, um tigre se preparando para dar o bote: com um contra-ataque fulminante, quase nocauteou Foreman.

Depois de dois rounds letárgicos, foi o que acabou acontecendo no oitavo assalto. Ali novamente surpreendeu Foreman e, com uma sequência de golpes cuja rapidez era inimaginável àquela altura de uma luta tão exaustiva, metralhou a cabeça do oponente até fazer aquele gigante desabar em câmara lenta no ringue.

A coragem que deu a vitória a Ali nessa luta foi a mesma que o manteve no ringue até o fim de uma luta na qual teve seu maxilar fraturado no 2º round, por Ken Norton.

O castigo que recebeu de Foreman foi tão terrível que, depois da vitória consumada, ele teve um breve desmaio durante as comemorações. Até então, entretanto, a adrenalina o mantivera em pé.

Ali x Foreman: eis a luta do século, na íntegra.

CAVALHEIRISMO RARO NUM BOXEADOR

Joe Frazier: duro castigo.

Na sequência, colocou o título em jogo no tira-teima contra Frazier.

Tinha todos os motivos para impor derrota contundente ao rival e, assim, não deixar dúvidas de sua superioridade, depois das decisões polêmicas nas duas lutas anteriores.

No 14º assalto, esteve com Frazier à sua mercê, grogue, praticamente nocauteado em pé. Mas, ao invés de desfechar o golpe de misericórdia, pediu insistentemente ao juiz que interrompesse a luta.

Como não foi atendido, evitou bater pesado até o gongo soar. [Atitude semelhante à que teve ao nocautear Foreman: armou um soco mas, ao perceber que o cambaleante adversário cairia de qualquer jeito, não o desferiu, mostrando um autocontrole raríssimo em pugilistas.]

Os segundos decidiram que Frazier não tinha condições para disputar o 15º e último round. Vitória de Ali por abandono.

A caminho do vestiário, ele cruzou com o filho de Frazier e prestou tributo ao grande adversário: “Seu pai foi o homem mais valente que eu já enfrentei”.

Estava certo. Na foto publicada pelos jornais do dia seguinte, o rosto do pobre Joe estava assustador, de tão marcado pelos golpes de Ali.

Deveria ter parado então, no auge da glória e sem sequelas. Insistiu em permanecer nos ringues e acabou sofrendo castigos desnecessários que, provavelmente, lhe causaram ou agravaram o mal de parkinson.

A melhor frase sobre ele foi a de Foreman, no documentário de Logothetis. Indagado se Ali tinha sido o maior peso-pesado de todos os tempos, Foreman esquivou-se de compará-lo com o igualmente superlativo Joe Louis. E ponderou:

Não sei quem foi o maior de todos, mas, certamente, Ali foi o melhor cidadão que já lutou boxe peso-pesado.

Foi belo o tributo de Jorge Ben a Muhammad Ali