Celso Lungaretti: '"Depois de mim, o dilúvio, disse o rei francês Luis XV. Que dilúvio nos legará esse outro Luis?'

Celso Lungaretti: ‘O LEGADO DE LULA: UMA TERRA ARRASADA.E UMA ESQUERDA MAIS ARRASADA AINDA.’

A comédia dos erros terminou melancolicamente

Sem surpresa nenhuma o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi declarado inelegível pela Justiça Eleitoral, pois é isto que determina a Lei da Ficha Limpa.

Se sua condenação por corrupção e lavagem de dinheiro foi justa ou injusta, é algo a ser resolvido na esfera da Justiça Criminal, cujas decisões o Tribunal Superior Eleitoral não tem poder para questionar.

Se sua exclusão do pleito deveria se dar após uma sentença de 2ª ou 3ª instância, é algo a ser resolvido pelo Supremo Tribunal Federal, cujas decisões o TSE não tem poder para questionar. O certo é que, desde 2010, a condenação em 2ª instância vem sendo considerada suficiente.

E todas as decisões do TRF-4, do STJ e do STF foram no sentido de que nem a sentença do Lula seria cancelada, nem a inelegibilidade após a 2ª instância revista neste momento. O que vimos nesta 6ª feira (31) foi apenas a confirmação da derrota anunciada – e pelo acachapante placar de 6×1!

Então, por que o PT insistiu tanto em manter um candidato a presidente ilusório até cinco semanas antes do 1º turno? Cabe aqui uma recapitulação.

De Gaulle teria dito que o PT não é um partido sério…

Mesmo tendo o partido sido gerado em plena ditadura militar, seus fundadores não deixaram de colocar no manifesto de fundação, aprovado em fevereiro de 1980, que teria como objetivos supremos o fim da exploração capitalista e a construção de uma sociedade igualitária e livre:

…As riquezas naturais, que até hoje só têm servido aos interesses do grande capital nacional e internacional, deverão ser postas a serviço do bem-estar da coletividade.  

Para isso é preciso que as decisões sobre a economia se submetam aos interesses populares. Mas esses interesses não prevalecerão enquanto o poder político não expressar uma real representação popular, fundada nas organizações de base, para que se efetive o poder de decisão dos trabalhadores sobre a economia e os demais níveis da sociedade…

…É preciso que o Estado se torne a expressão da sociedade, o que só será possível quando se criarem condições de livre intervenção dos trabalhadores nas decisões dos seus rumos…  

…O PT buscará conquistar a liberdade para que o povo possa construir uma sociedade igualitária, onde não haja explorados nem exploradores…

Mas, logo na sua primeira década de existência o PT já desistiu informalmente da meta revolucionária, expurgou as tendências internas que a priorizavam e passou a objetivar apenas a conquista de posições de poder dentro do capitalismo, não mais para construir uma sociedade igualitária, mas sim para proporcionar pequenas melhoras aos trabalhadores.

Enfim, o candidato real: o ciclista Haddad. Terá ele… 

As eleições foram significando cada vez mais para o PT, enquanto a participação nas lutas sociais ia passando para segundo e até terceiro plano.

As consequências de sua furtiva guinada ideológica não se tornaram tão evidentes no século passado (porque estava na oposição), nem durante os dois mandatos presidenciais de Lula (porque o bom desempenho das commodities brasileiras lhe permitia cumprir a promessa de botar um pouco mais de pão na mesa dos trabalhadores, embora sem retirá-lo da esbórnia dos privilegiados, tanto que nossa escandalosa desigualdade econômica não diminuiu em momento nenhum).

Quando a crise capitalista se aguçou sobremaneira na presente década, contudo, o cobertor foi ficando cada vez mais curto para cobrir tanto a cabeça de uns quanto os pés dos outros. A política de conciliação de classe foi colocada em xeque, pois numa fase de vacas magras já não era mais possível continuar mascarando a existência de uma contradição fundamental entre os interesses de explorados e exploradores.

A presidente Dilma Rousseff, que há muito se desencantara com a luta de classes e passara a crer que contradições insolúveis pudessem ser resolvidas com soluções tecnoburocráticas (superestimando desmedida e alucinadamente seu próprio papel como gerentona), tentou uma jogada arriscada para impedir o castelo de cartas de desabar. Era preciso fazer a economia crescer o suficiente para os bancos continuarem comemorando recordes de faturamento a cada mês e para os pobres seguirem deslumbrados com o maravilhoso mundo do consumo ao qual haviam obtido limitado e endividado acesso!

Dilma retirou do baú de velharias as fórmulas desenvolvimentistas de seis décadas antes, com a esperança de fazer o carro da economia pegar no tranco graças aos investimentos estatais. Mas, como o relógio da História não anda para trás, o que ela conseguiu foi colocar a economia brasileira no rumo de uma formidável recessão.

…mais sorte do que a Dilma das pedaladas fiscais?

A hora da verdade chegou em 2014, quando fatalmente não conseguiria reeleger-se a partir dos resultados entregues por seu primeiro governo e de esperanças que ainda fosse capaz de despertar. E o quadro pioraria ainda mais caso o distinto público se desse conta da tempestade que se formava.

Então, como tábua de salvação, ocultou dos eleitores (por meio das famosas pedaladas fiscais) o estado calamitoso das finanças públicas; satanizou adversários exagerando verdades e espalhando as mais cabeludas mentiras; e praticou um ignóbil estelionato eleitoral ao prometer salvar os brasileiros das reformas neoliberais que seus rivais estariam tramando na calada da noite, ao passo que ela, a angelical, jamais cometeria tamanha maldade…

Desde então, o PT passou cada vez mais a sobreviver politicamente à custa de fantasias e embromações.

Depois de cumprir uma por uma todas as etapas do ritual do impeachment e ser derrotado em todas, passou a atribuir o defenestramento de Dilma a um diabólico golpe… que, na verdade, nada mais foi do que a secular prevalência, nos momentos críticos, das necessidades e interesses da classe dominante, pois está é a lógica do sistema. Só ingênuos esperavam que sucedesse o contrário.

Com isto mais o Fora Temer, o PT conseguiu desviar a atenção dos terríveis erros por ele cometidos, que possibilitaram a derrubada de Dilma mediante um mero piparote parlamentar; e da óbvia constatação de que não adiantava mais eleger presidentes, já que eles seriam deseleitos pelo poder econômico quando este bem entendesse.

Mas, conseguindo espertamente evitar  um processo de autocrítica do qual sairiam bem menores do que entraram, os dirigentes petistas ao mesmo tempo abortaram a definição de novas linhas mestras para a atuação partidária, já que as anteriores haviam implodido espetacularmente. A salvação dos ineptos se deu à custa de sacrificar-se o futuro: que mágica besta!

Que dilúvio nos legará esse outro Luís?

O certo é que, para que se consumassem os desastres recentes do PT, concorreu mesmo a adoção de dois pesos e duas medidas: pecados idênticos, cometidos por outros partidos e políticos, foram tratados como venais e os petistas, como mortais.

Mas as alegações de inocência, tanto no impeachment quanto nos processos por corrupção, nunca passaram de lorotas inverossímeis; o mar de lama existiu mesmo e as práticas que teoricamente ensejariam cassação de mandatos, idem.

Aos olhos dos cidadãos com um mínimo de espírito crítico, o PT, ao incidir nas mesmas práticas e recorrer às mesmas desculpas esfarrapadas quando apanhado com a boca na botija, igualou-se às agremiações convencionais, perdendo o status de partido diferenciado e confiável. Acreditar nele passou a ser um ato de fé; e não é com fanáticos que se constrói uma sociedade emancipada.

Para reforçar a narrativa do golpe e a narrativa do preso político, criou-se o roteiro de um espetáculo de mafuá: a farsa do candidato fantasma, que só serviu para travar a campanha eleitoral e oxigenar o representante do DOI-Codi no pleito presidencial (o truculento candidato que explora, da forma mais grotesca e obtusa, os filões do anticomunismo e do antipetismo) .

Quem disse depois de mim, o dilúvio foi o rei francês Luís XV, e a profecia se cumpriria com seu neto Luís XVI sendo guilhotinado na Grande Revolução Francesa.

Que dilúvio nos legará esse outro Luís? Uma coisa é certa: ele sai de cena deixando atrás de si uma terra arrasada e uma esquerda mais arrasada ainda.




Celso Lungaretti: 'Só ingênuos sonhavam com Moro forçando Lula a confessar que comeu nas mãos das empreiteiras, ou Lula provando que o verdadeiro objetivo de Moro é impedir sua candidatura a presidente em 2018

CELSO LUNGARETTI LULA x MORO:  QUEM FOI O VENCEDOR?

.
Daquela vez um humorista deitou e rolou

Como diria Fiori Gigliotti, um conhecido locutor esportivo do passado, fecham-se as cortinas e termina o espetáculo.

Os que torceram desbragadamente para o réu ou para o julgador, agora querem saber o placar final. Quem piscou primeiro? Quem foi mais rápido no gatilho? Quem mordeu o pó da derrota?

A resposta é simples: nenhum deles. Pois tudo não passou de mais uma Batalha de Itararé.

Para as novas gerações, tão desconhecedoras e indiferentes ao que ocorreu antes de gloriosamente chegarem ao mundo, rememoro.

Corria o ano da graça de 1930. As tropas insurgentes de Getúlio Vargas vêm do Rio Grande do Sul para tentarem tomar a capital federal (Rio de Janeiro). Os efetivos leais ao presidente que elas querem depor, Washington Luiz, esperam-nas no município de Itararé, na divisa entre SP e PR. Canta-se em prosa e verso aquela que será a mais formidável e sangrenta das batalhas.

Mas, nem um único tiro chega a ser disparado; antes disso, o presidente bate em retirada, entregando o poder a uma junta governativa.

Ironizando, o grande humorista Aparício Torelly escreve que, como nada lhe reservaram no rateio de cargos governamentais entre os vencedores, ele próprio se outorgaria a recompensa:

O Bergamini pulou em cima da prefeitura do Rio, outro companheiro que nem revolucionário era ficou com os Correios e Telégrafos, outros patriotas menores foram exercer o seu patriotismo a tantos por mês em cargos de mando e desmando… e eu fiquei chupando o dedo.

Foi então que resolvi conceder a mim mesmo uma carta de nobreza. Se eu fosse esperar que alguém me reconhecesse o mérito, não arranjava nada. Então passei a Barão de Itararé, em homenagem à batalha que não houve.

Desta vez a grande imprensa lucrou muito com o factoide 

Até agora, nem o juiz Sérgio Moro nem o acusado Luiz Inácio Lula da Silva, ex-presidente da República do Brasil, reivindicou o título de Barão de Curitiba.

E nem era de esperar-se que a oitiva do réu terminasse com um deles detonando o outro. Só ingênuos pouco familiarizados com a Justiça sonhavam com Moro forçando Lula a confessar que comeu nas mãos das empreiteiras, ou Lula provando que o verdadeiro objetivo de Moro é impedir sua candidatura a presidente em 2018…

Deu para notar-se um insistente empenho de Moro em arrancar algo mais de Lula, embora o fizesse sempre de forma educada e respeitosa. Podemos conjeturar que ele não alongaria tanto o interrogatório no caso de um réu que não equivalesse a um troféu, mas a coisa para por aí: ninguém pode recriminar um juiz por ser zeloso.

Quanto a Lula, a derrapada mais marcante foram suas hesitações ao tentar explicar o encontro que manteve com o ex-diretor da Petrobrás Renato Duque e o sócio da OAS Léo Pinheiro, articulado pelo então tesoureiro do PT João Vaccari Neto. Pareceu estar pisando em ovos, o que pode ter algo a ver com as atuais negociações de Duque para fazer delação premiada. Dependendo do que vier pela frente, sua credibilidade poderá ficar bem arranhada.

Eu, particularmente, preferiria que ele não parecesse estar insinuando que Marisa Letícia teria alguma responsabilidade no imbróglio do triplex, mas sei que me atenho a valores morais do passado, hoje em desuso…

 De resto, nada ocorreu com importância e/ou impacto suficientes para influir na sentença que Moro deverá anunciar lá pela metade do ano, nem para servir como um poderoso trunfo positivo ou negativo na próxima campanha eleitoral do Lula (caso ele não venha a estar impedido de disputar o pleito).

Vida que segue.

.

OUTROS POSTS RECENTES DO BLOGUE NÁUFRAGO DA UTOPIA (clique p/ abrir):

CORTE DA OEA VAI DISCUTIR O ASSASSINATO DE VLADIMIR HERZOG E A IMPUNIDADE DOS TORTURADORES HOMICIDAS
DALTON ROSADO REVELA O QUE A GRANDE IMPRENSA NÃO PODE DIZER

A SENTENÇA CONTRA OS TERRORISTAS DE GOGÓ É UM SAMBA DO CRIOULO DOIDO

MARIGHELLA: O GUERRILHEIRO QUE INCENDIOU O MUNDO NÃO INCENDIARÁ TÃO CEDO AS TELAS BRASILEIRAS…

UMA BESTA HUMANA À SOLTA EM GOÍAS. E SENDO HOMENAGEADA!!!
DALTON ROSADO: “POR UM MANIFESTO EMANCIPACIONISTA”.

OS FILMES DE TERROR ATRAVÉS DOS TEMPOS… E O QUE ESTÁ POR TRÁS DELES!
2017: UMA GREVE GERAL COM O FOCO ERRADO E CONTRA O MERO PREPOSTO DO INIMIGO
1917: A HEROICA GREVE GERAL QUE CUSTOU A VIDA DE DEZENAS DE OPERÁRIOS.

HOJE É DIA DE REVERMOS O MELHOR FILME SOBRE O MOVIMENTO OPERÁRIO EM TODOS OS TEMPOS




Celso Lungaretti: 'Um crê que ainda é apresentador de reality show. O outro sonha com um papel de 'serial killer' nalgum filmeco de Hollywood. Os loucos assumiram a direção do hospicio.'

 CELSO LUNGARETTI: JOHN WAYNE DÁ UMA SURRA NOS ÍNDIOS,
PARA ELES APRENDEREM QUEM É QUE MANDA…

.

O apresentador do Big Brother World, Donald Trump, demitiu o participante sírio Bashar al-Assad, que sonha com o papel de serial killer nalgum filmeco de Hollywood. .

Como é difícil concretizar na vida real essas fantasias bobocas que povoam a mente do patético presidente dos EUA, o jeito foi ele exibir o muque de outra maneira: despachando 59 mísseis contra a Síria. 

Afinal, o bestial assassinato de crianças por meio de arma química exigia uma resposta que a mídia considerasse à altura e os noticiosos de TV exibissem fartamente. E cérebros bem lavados nunca reparam que disparar à distância, sem correr risco nenhum, é um ato de covardia extrema. Nem John Wayne aprovaria.

 

O resultado foram outras quatro crianças mortas, mas que importa, desde que o mocinho tenha colocado outra vez os índios no seu lugar?

Demonstrações de força em tal escala são inúteis e até contraproducentes. Para funcionarem, precisam ser apocalípticas como as de Hiroshima e Nagasaki, mas, felizmente, nem mesmo um debiloide como o Trump ousaria cometer um crime contra a humanidade tão dantesco hoje em dia.

Então, o que tivemos foi apenas o acréscimo, por cortesia dos EUA, de mais nove seres humanos à lista de cerca de 80 vítimas fatais produzidas pelo carniceiro de Damasco.

 

OUTROS POSTS RECENTES DO BLOGUE NÁUFRAGO DA UTOPIA (clique p/ abrir):
TRUMP FEZ SOAR O TROMPETE GUERREIRO? NÃO, FOI APENAS UMA AÇÃO DE MARKETING.
A NOVA BESTIALIDADE DO CARNICEIRO DE DAMASCO
HORRORIZADO COM A FEIRA DA MORTE, DALTON ROSADO DÁ UM VIVA À VIDA!
COMO JOGADOR DE FUTEBOL COM MEDO DE ENTRAR EM BOLA DIVIDIDA, O TSE CORRE PRA NÃO CHEGAR…
A MILITARIZAÇÃO DAS NARRATIVAS E A ESCALADA DE INTOLERÂNCIA NA WEB
MÚSICOS E CANÇÕES QUE ILUMINARAM A MINHA VIDA (parte 3)




Celso Lungarettti: 'Não podemos ignorar a maior ameaça à esquerda e aos brasileiros desde a quartelada de 64!!!'

CELSO LUNGARETTI: ‘COMO DETERMOS O
FASCISTA BOLSONARO? COMBATENDO-O SEM TRÉGUA!

Às vezes me sinto como a Cassandra troiana, amaldiçoada com a indiferença do seu povo aos alertas que lançava, tão corretos quanto inúteis em termos práticos.

No segundo semestre de 2014, p. ex., eu já tinha percepção clara de que o novo mandato presidencial transcorreria sob aguda recessão. Tudo fiz para abrir os olhos da companheirada, no sentido de que Dilma Rousseff não tinha competência para administrar uma crise dessas e seu fracasso anunciado seria catastrófico para a esquerda brasileira. 

Vi como preferível, primeiramente, a candidatura de Marina Silva, pois, com ela no poder, a responsabilidade pelo desastre econômico ficaria ao menos diluída. 

Depois que Marina foi destruída pela mais torpe campanha de calúnias e falácias já vista na política brasileira, incentivei o Volta Lula!, pois ele, com todos os defeitos, ainda seria capaz de amenizar um pouco a devastação que se prenunciava. Mas, os petistas vacilaram miseravelmente, encaminhando-nos para a perda total.

Mal assumiu, Dilma jogou as promessas de campanha no lixo e empossou o neoliberal Joaquim Levy como ministro da Fazenda. Imediatamente lembrei que estava repetindo o erro de João Goulart, cujas tentativas de adotar a política econômica do inimigo sempre foram inviabilizadas pelo fogo amigo do Brizola e do PCB, lançando o país na confusão e preparando o terreno para a intervenção militar. Dito e feito, Dilma também acabaria sendo derrubada, desta vez não pelos tanques, mas por um peteleco parlamentar.
Tão logo a Câmara Federal aprovou a abertura do processo de impeachment, escrevi que a batalha no Congresso já estava perdida e o único contra-ataque com alguma possibilidade de êxito seria sua imediata renúncia, seguida pelo lançamento de uma nova campanha por diretas-já, unindo toda a esquerda. Mas, Dilma, sempre berrando que não iria cair, marchou de derrota em derrota até o mais amargo fim.

Fiz esta introdução porque novamente há um cenário horroroso se desenhando no horizonte e a esquerda está fazendo tudo errado mais uma vez.

Ao invés de depurar-se e reciclar-se como é inescapável após fiascos tão acachapantes como o de 2016, continua apostando no populismo, ao lançar uma campanha sebastianista pela candidatura de Lula que é simplesmente asnática: a direita, por via judicial, o fulminará quando bem entender.

E não percebe que, se o confronto for entre o populismo decadente do Lula e o populismo ascendente de Jair Bolsonaro, afinado com o espírito da era Trump, é o segundo que prevalecerá.

As lambanças do PT já levaram a direita ao poder. Se persistirem, acabarão conduzindo um fascista explícito ao Palácio do Planalto, enquanto quatro centenas de signatários de um manifesto altamente inoportuno ficarão tentando justificar sua estreiteza de visão política.

Eis os trechos principais de um artigo do Vladimir Safatle que dá uma boa noção do inimigo que temos pela frente:

.

UM FASCISTA MORA AO LADO

.

Por Vladimir Safatle

…poderíamos dizer que todo fascismo tem ao menos três características fundamentais.

Primeiro, ele é um culto explícito da ordem baseada na violência de Estado e em práticas autoritárias de governo. 

Segundo, ele permite a circulação desimpedida do desprezo social por grupos vulneráveis e fragilizados. O ocupante desses grupos pode variar de acordo com situações históricas específicas. Já foram os judeus, mas podem também ser os homossexuais, os árabes, os índios, entre tantos outros. 

Por fim, ele procura constituir coesão social através de um uso paranoico do nacionalismo, da defesa da fronteira, do território e da identidade a eixo fundamental do embate político.

Neste sentido, não seria difícil demonstrar todo o fascismo ordinário do sr. Bolsonaro. Sua adesão à ditadura militar é notória, a ponto de saudar e prestar homenagens a torturadores. Não deixa de ser sintomático que pessoas capazes de se dizerem profundamente indignadas contra a corrupção reinante afirmem votar em alguém que louva um regime criminoso e corrupto como a ditadura militar brasileira (vide casos Capemi, Coroa-Brastel, Paulipetro, Jari, entre tantos outros).

Bem, quem começa tirando selfie com a Polícia Militar em manifestações só poderia terminar abraçando toda forma de violência de Estado.

Por outro lado, sua luta incansável contra a constituição de políticas de direito, reparação e conscientização da violência contra grupos vulneráveis expressa o desprezo que parte da população brasileira sempre cultivou, mas que agora se sente autorizada a expressar.

Por fim, o primarismo de um nacionalismo que expressa o simples culto do direito secular de mando, algo bem expresso no slogan devolva o meu país, fecha o círculo.

Ora, o fato significativo é que a maioria da classe média brasileira, com sua semi-formação característica, assumiu de forma explícita uma perspectiva simplesmente fascista.

Ela operou um desrecalque, já que até então se permitia representar por candidatos conservadores mais tradicionais. Essa escolha é resultado de uma reação à desordem e à abertura produzida pela revolta de 2013.

Todo evento real produz um sujeito reativo, sujeito que, diante das possibilidades abertas por processos impredicados, procura o retorno de alguma forma de ordem segura capaz de colocar todos nos seus devidos lugares. Nesse contexto, a última coisa a fazer é acreditar que devamos dialogar com tal setor da população.

Faz parte de um iluminismo pueril a crença de que o outro não pensa como eu porque ele não compreendeu bem a cadeia de argumentos. Logo, se eu explicar de forma pausada e lenta, você acabará concordando comigo.

Bem, nada mais equivocado. O que nos diferencia é a adesão a forma de vida radicalmente diferentes. Quem quer um fascista não fez essa escolha porque compreendeu mal a cadeia de argumentos. Ele o escolheu porque adere a formas de vida e afetos típicos desse horizonte político. Não é argumentando que se modifica algo, mas desativando os afetos que sustentam tais escolhas.




Celso Lungaretti: 'Quem adivinharia que o menino que não parava de ler e hoje é lido nos mais importantes veículos financeiros do planeta viria, aos 88 anos de idade, confessar sua descrença definitiva no predomínio econômico dos capitais?!

APOLLO NATALI

LAMENTO, ADAM SMITH, NÃO DEU CERTO…

 
Delfim Netto em 1968, já ministro da Fazenda aos 40 anos

Eu tinha 6 aninhos. Escapulia do meu cortiço na rua Coronel Cintra, na Mooca,  cruzava a velha ponte de taboas largas do rio Tamanduateí e regressava com um enorme cesto de vime nas costas, abarrotado de tocos de madeira da formidável marcenaria do meu tio, na rua dos Alpes, no Cambuci. Nosso fogão era a lenha.
Ao lado da marcenaria morava um menino que não saia de casa. Uma casa pequena e pobre. A vida dele é ler, dizia meu primo, afundando os pés na serragem da oficina. Na casa modesta viviam ele, a mãe e a irmã. A mãe faz um sacrifício danado para ele estudar, ainda meu primo falando.
Esse menino, preclaro leitor, se chamava Antonio Delfim Neto e – quem diria? – se tornaria um dia um luminar da economia, oráculo procurado por bandos de fieis em busca de revelações salvadoras provenientes dessa ciência que jamais amenizou as aflições vitais dos humanos.  A ponto de inspirar nos italianos esta definição jocosa: uma ciência tal que, com a qual ou sem a tal, a situação permanece tal e qual.
Quem adivinharia que o menino que não parava de ler e hoje é lido nos mais importantes veículos financeiros do planeta viria, aos 88 anos de idade, confessar sua descrença definitiva no predomínio econômico dos capitais (modo de vida adotado pela humanidade, intitulado de sistema capitalista)?! Tantas rugas no rosto experiente… para nada!
Delfim ora acredita que nem mesmo a extinção do sistema chamado de excludente, apontado como culpado pelo desfilar do rico com trajes palacianos ao lado do pobre esfarrapado, salvaria a humanidade.
Os críticos do capitalismo sonham com o fim desse sistema e o consequente surgimento de uma sociedade mundial fraterna, livre do devorai-vos uns aos outros!. Nem nisto Delfim acredita.
Com sistema capitalista ou sem sistema capitalista, uma montanha de livros depois, o menino vizinho da marcenaria de outrora não vê salvação. O culpado é o homem. Não se iludam, o ser humano não presta, dizia em classe um meu professor de Direito na USP.
Quando um bando de cachorros vislumbra um semelhante  no canto do um beco, acuadinho, pequenininho, pobre dele, é atacado covardemente em avalanche pelos valentões. Teremos lucidez para uma comparação? O cãozinho capitalista merece ser atacado e culpado por todas as dores da humanidade? O que virá depois que todos nós, raivosos com o sistema, o destruirmos em seu beco hoje sem saída? Estaria garantida uma nova sociedade boazinha, boazinha? Para Delfim, não.

A história do capitalismo guarda em seu arquivo um fluir implacável de desumanidades geradas no mui interno do homem. Quem nasceu primeiro, o foro íntimo desairoso do ser humano ou o seu filhote, o sistema capitalista?

Este final de elucubrações é pura elucubração: todos os impérios e sistemas de vida caíram, então deve ser ordem natural das coisas que o sistema capitalista um dia se torne obsoleto e seja substituído gradativamente por modo de vida feliz.  Na marra, de improviso, não acredito.

Os sermões dos religiosos em suas apregoações de fim de mundo anunciam uma era pós-capitalista, o surgimento de uma sociedade em que o leão circula pacificamente com o carneiro em meio a uma exuberante natureza preservada. Há até pinturas religiosas do leão e do carneiro sobre um gramado impecável antevendo o paraíso.
O jeito é esperar.

CELSO LUNGARETTI

SE O FIM DO CAPITALISMO TARDAR,
NÃO HAVERÁ MAIS HUMANOS

Numa coluna surpreendente (vide aqui), intitulada Fim do capitalismo não tornaria o homem mais ‘humano’, Delfim Netto reduz o homem a “um animal territorial, dotado pela evolução biológica de um terrível e perigoso instrumento — a sua inteligência”; afirma que não se descobriu ainda como evitar que continue exterminando seus iguais (uma tendência que, lembra ele, o diferencia de todos os outros animais); e diz ser duvidosa a hipótese de que se humanizará antes que “produza sua própria destruição”.

Parece estar abalado com o advento da era Trump, quando o capitalismo volta a se mostrar tão desumano quanto o era na fase mais selvagem, além de ter elevado sua iniquidade intrínseca à enésima potência.

Enfim, aos 88 anos, Delfim chega finalmente à idade da razão. E deve estar contemplando a obra de sua vida com a mesma perplexidade do dr. Frankenstein face à criatura: terá sido para isso que serviu caninamente aos piores ditadores e acumpliciou-se com o festival de horrores resultante das 15 assinaturas de ministros (uma delas a sua) aprovando a instituição do AI-5?!

Numa provável tentativa de exorcizar os fantasmas que lhe tiram o sono, escreveu um texto na linha de que, se o capitalismo conduziu a humanidade a “uma desigualdade insuportável”, o fim do capitalismo também não conseguiria civilizar os homens.

_______________________________________________

 

A desigualdade aumentou de tal maneira que uma 

ínfima minoria acumulou poder suficiente para impor 

sua vontade à imensa maioria dos seres humanos” 

                        (Celso Lungaretti)

____________________________________________

 

Quer acreditar que, numa encruzilhada do destino, a opção existente era entre dois caminhos igualmente ruinosos. Isto o aliviaria um pouco de sua culpa por ter escolhido a via que levou a resultados catastróficos, a ponto de o Brasil estar em frangalhos e a própria sobrevivência da humanidade encontrar-se gravemente ameaçada.

Deixa, contudo, de considerar um dado fundamental da equação que tenta montar: o de que os animais brigam com outros animais e defendem com unhas e dentes seu território por uma questão de sobrevivência. Precisam garantir alimentação e abrigo para si e para o grupo a que pertencem, caso contrário sucumbirão à fome, ao frio, às intempéries, etc.

Foi também devido à escassez que os homens passaram milênios competindo encarniçadamente uns com os outros. Inexistindo o suficiente para todos terem tudo de que necessitavam para uma existência digna, o quero mais a que alude Delfim forneceu o impulso decisivo para irem, pouco a pouco, desenvolvendo as forças produtivas. A motivação egoísta acabava sendo uma espécie de motor do progresso, ainda que obtido graças ao enorme sofrimento e mazelas terríveis que desabavam sobre os mais fracos.

 

O fantasma da escassez deixou de nos assombrar

Era. Não é mais, pois a barreira da necessidade foi afinal transposta e hoje já dispomos de conhecimento científico e meios tecnológicos para a produção do que é realmente preciso para todos vivermos sem privações e sem o estresse que a competição exacerbada causa.

O que ainda nos impede de alcançarmos uma existência feliz e plena, em lugar do atual pesadelo globalizado?
O capitalismo, claro! Ou, mais precisamente, o fato de que ele fez a desigualdade aumentar de tal maneira que uma ínfima minoria acumulou poder suficiente para impor sua vontade à imensa maioria dos seres humanos.

E, em nome da perpetuação de um status quo que só a ela beneficia, arrasta a humanidade a uma crise econômica que se prenuncia avassaladora e à destruição do equilíbrio ecológico sem o qual nossa espécie se extinguirá.

Só sobreviveremos se nos unirmos para deter a atual marcha da insensatez, fazendo com que o bem comum prevaleça sobre os interesses mesquinhos que nos estão levando à beira do abismo.

E, se formos capazes disto, certamente também o seremos para, em seguida, construirmos uma sociedade verdadeiramente humana.

DALTON ROSADO

DELFIM NETTO NOS VÊ COMO CONDENADOS ETERNOS AO FRATRICÍDIO.

Segundo Delfim Netto (vide aqui), a barbárie, hoje em curso mundialmente, é comportamento inerente ao caráter concomitantemente racional e irracional da humanidade; estaríamos, portanto, condenados eternamente ao fratricídio.
Delfim Neto elabora a sua dúvida de que tais comportamentos sejam naturais, e não uma resultante da debacle e irracionalidade capitalista.

O capitalismo é um modo de relação social histórico, não ontológico, irracional, dotado de lógica ilógica (porque destrutiva) e, por isso mesmo, fadado à autodestruição, mas não sem antes tentar levar de roldão toda a humanidade, tangendo-a ao genocídio.

A evolução do ser humano passou, até agora, por duas naturezas distintas. Na primeira natureza, irracional, o ser humano era um animal frágil, diante das grandes feras que habitavam o planeta Terra.

Foi a natureza gregária e solidária dos humanoides o que contribuiu para que sobrevivesse como espécie no enfrentamento das outras feras, mais potentes fisicamente.  A ciência calcula que tal período tenha durado cerca de 3 milhões de anos.

______________________________________________

“A superação do capitalismo é o estágio limite 

entre a segunda natureza humana e a terceira 

que está por vir, devendo proporcionar a 

emancipação humana e um ser humano 

moralmente evoluído” (Dalton Rosado)

______________________________________________

Paulatinamente, o ser humano atingiu o estágio do homo sapiens (erecto e dotado de racionalidade) que se admite ter sido atingido há cerca de 300 mil anos, e que se considera como sendo a sua segunda natureza.
Entretanto, o desenvolvimento de sua racionalidade não está ainda concluído e os resquícios da irracionalidade, ainda existentes nessa segunda natureza, são o que caracteriza a bipolaridade comportamental, que o faz capaz de gestos altruísticos e outros desumanamente cruéis.

Acredito, portanto, na evolução do homem, bem como temo que tal estágio possa a ser interrompido pela letalidade da capacidade bélica das bombas atômicas, que podem vir a ser acionadas quando impulsionadas pela irracionalidade da guerra de mercado capitalista.

É conhecido o caráter civilizatório do capitalismo no campo tecnológico, mas isto não significa que ele seja um modo de relação social saudável. A bestialidade das guerras, p. ex., também contribuiu para avanços tecnológicos (a descoberta do radar e da energia atômica), e nem por isto se pode admitir a guerra como um ganho para a humanidade.

A evolução da humanidade caminha a passos lentos em termos de história cronológica. O o capitalismo deriva de um deformado embrião social gestado há cerca de 3 mil anos, quando na Grécia antiga se iniciou o processo de abandono das sociedades comunais primitivas (nas quais tudo se partilhava) e a adoção das trocas quantificadas como forma de obtenção de poder. Estava configurada, embrionariamente, a negativa e abstrata forma-valor.

Daí em diante as sociedades humanas foram marcadas pelo escravismo direto, como forma de obtenção de objetos servíveis ao consumo, agora transformados em mercadorias (com valor de uso e valor de troca), destinados à barganha de poder no incipiente mercado, até se chegar ao sub-reptício escravismo indireto do trabalho abstrato, fonte primária sofisticada da abstração da forma-valor, que é o instrumento de dominação sutil das modernas sociedades do capital com todos os seus construtos institucionais de apoio.

Diferentemente da dúvida de Delfim Netto, entendo que a superação do capitalismo é o estágio limite entre a segunda natureza humana e a terceira que está por vir, devendo proporcionar a emancipação humana e um ser humano moralmente evoluído.

OUTROS POSTS RECENTES DO BLOGUE NÁUFRAGO DA UTOPIA (clique p/ abrir):
APÓS A DERROCADA DO VELHO POPULISMO, É HORA DE NOS VOLTARMOS PARA OS NOVOS ESPAÇOS SOCIAIS DE LUTA ANTICAPITALISTA.
OS PATRULHEIROS CRICRIS ATACAM DE NOVO! POR IGNORÂNCIA CRASSA OU INTOLERÂNCIA FASCISTOIDE?
O POLITICAMENTE CORRETO É UM AUTÊNTICO PÉ NO SACO!
NÃO AGEM EM NOME DO PAI NEM DO FILHO OS QUE VANDALIZAM O ESPÍRITO SANTO

É HORA DE TERMOS NOVAMENTE O CÉU COMO BANDEIRA E DE VOLTARMOS A TOMAR A HISTÓRIA NA MÃO!
RELEMBRANDO A PRIMEIRA PREFEITURA QUE O PT CONQUISTOU NUMA CAPITAL E SEU SIGNIFICADO PARA OS REVOLUCIONÁRIOS
WOODSTOCK 69: O SONHO DE UMA GERAÇÃO E AMOSTRA DA PERFEIÇÃO POSSÍVEL NESTE SOFRIDO PLANETA!

DALTON ROSADO: UMA NOVA SOCIEDADE ESTÁ ANSIOSA PARA NASCER, MAS A VELHA TEIMA EM NÃO MORRER.




Celso Lungaretti: 'A tragédia da União Soviética: do sonho ao pesadelo'

Celso Lungaretti: A TRAGÉDIA DA UNIÃO SOVIÉTICA: DO SONHO AO PESADELO

 

aqui), cujo mau fim de vida, infelizmente, relegou ao quase esquecimento sua contribuição importantíssima ao pensamento de esquerda nasdécadas de 1960 e 1970. 

.

.

A REVOLUÇÃO BOLCHEVIQUE – 60 ANOS

DE LÊNIN, TROTSKI E STALIN.

.Por Paulo Francis

Meu título causará surpresa em certos círculos, pela inclusão do nome de Trotski, afinal desalojado do poder em 1925, mas ela será explicada. Trotski é, na minha opinião, o autor intelectual da Revolução Soviética, o que ele próprio nega, modestamente, na sua monumental obra A revolução russa, atribuindo a honra a Lênin e às massas. 

E Trotski foi o principal inspirador de Stalin, o homem que o destruiu, um paradoxo aparente, intolerável para leninistas, trotskistas e stalinistas. Tenho muito a explicar, reconheço.

Antes, porém, eu diria que a Revolução Soviética é um dos três acontecimentos decisivos no que chamamos pitorescamente de civilização cristã, na cultura (Kultur) que emergiu do Império Romano a oeste de  Constantinopla, ou seja, a cultura ocidental. 

O primeiro é a Reforma de Lutero, que destroçou a coerência ideológica do cristianismo. O segundo é a Revolução Francesa, a partir de 1791, como decorrência do governo de Robespierre e Saint-Just (que me lembram extraordinária e respectivamente Lênin e Trotski). A Revolução Soviética é o mais profundo e cismático. 

Stalin, Lênin e Trotsky em 1919: os três líderes que abalaram o mundo.

A Reforma é um subproduto do nascimento do nacionalismo e do capitalismo. A Revolução Francesa eliminou as últimas travas feudais à explosão capitalista e liberal, mas é argumentável que a beneficiária central, a burguesia, já controlava os meios de produção quando tomou o poder no século XVI, na esteira da Revolução Industrial, que a nobreza e o clero se recusavam obstinadamente a aceitar como determinante do futuro, que está conosco até hoje, um decadente presente.

A Revolução Soviética surgiu do nada. Em nação alguma do mundo existia a condição sine qua non da tomada do poder pelo proletariado, que Marx e Engels haviam previsto e postulado em extensas análises. E, especificamente, haviam vetado países sem uma economia de abundância, industrial, sem uma numerosa classe operária urbana capaz de administrar os meios de produção. 

A Rússia de 1917 era semifeudal, possuía quando muito 3 milhões de operários, de uma população de 85% de camponeses, habituados secularmente a uma férrea autocracia lastreada espiritualmente pela reacionaríssima Igreja Ortodoxa. 

Marx achava possível revoluções socialistas na Alemanha, Inglaterra e EUA, que ele e Engels começavam a estudar, antes de morrer. Na Rússia, por escrito, decretaram um inequívoco nyet

Domingo sangrento : tropas do czar massacram manifestantes.

Considerariam a tese de Mao Tsé-tung ou a do líder vietnamita Ho Chi Minh grotesqueries, porque se basearam no campesinato à exclusão de um inexistente operariado urbano. Logo, a frase – e clichê – revolução marxista, muito usada pela nossa imprensa popular e por polemistas anticomunistas, deveria ser arquivada de vez. É um mito. Na hipótese mais caridosa, permanece inédita.

Lênin, ao contrário da lenda, aceitava a análise de Marx e Engels. Na sua luta contra os mencheviques, o centro da discórdia não era, não importa o que diga a propaganda comunista subsequente, que os bolcheviques pretendiam instalar o comunismo na Rússia e que os mencheviques desejavam primeiramente que o país passasse por uma fase capitalista. 

A briga era entre a concepção leninista do partido único, de revolucionários profissionais, a vanguarda, e a visão menchevique de um partido aberto a todos que simpatizassem com ideias socialistas. O chamado eurocomunismo de hoje é o retorno do reprimido menchevique à arena polêmica do comunismo.

Trotski favorecia os mencheviques no debate com Lênin, prevendo, corretamente, que a vanguarda levaria a uma ditadura, incompatível com o socialismo. Discordava, porém, dos grupos de Lênin e Martov (o líder menchevique) quanto à possibilidade de revoluções comunistas no que hoje chamaríamos de nações subdesenvolvidas. 

Estação Finlândia: a volta de Lênin  à Rússia em 1917.

Em 1905, ele e Parvus (brilhante teórico que depois se auto-degradou, servindo ao Kaiser na 1ª Guerra Mundial) desenvolveram a tese da revolução permanente, que, de relevante ao tema deste artigo, propõe que uma revolução socialista em país tão atrasado como a Rússia seria o estopim que conflagraria todo o mundo desenvolvido, levantando as classes operárias dos ditos, que, no poder, iriam em socorro da atrasada Rússia e, em pouco tempo, unidas, estabeleceriam o socialismo em escala mundial.

Em 1905, isso sugeria quimera ou, no máximo, especulação interessante, típica do brilho inegável de Trotski. Em 1917, porém, com as principais nações capitalistas da Europa arrasadas pela guerra, com levantes de marinheiros alemães e soldados franceses em reação ao morticínio, Lênin começou a dar crédito a Trotski. 

Em todos os livros contemporâneos dignos de créditos (o do menchevique Sukhanov é o melhor), quando Lênin desembarcou na Estação Finlândia, em Petrogrado, cuspindo fogo, o comentário dos outros bolcheviques foi que Lênin se transformara em trotskista. Os líderes bolcheviques, Stálin, Sverdlov, Kamenev e Zinoviev, estavam na linha marxista tradicional, de colaborar com os partidos progressistas que emergiram depois da queda do tzarismo em fevereiro, objetivando a entrada da Rússia na revolução capitalista.

Se Lênin se tornou trotskista, Trotski se converteu em leninista, isto é, aceitou os direitos à exclusividade revolucionária dos bolcheviques. Desse acordo nasceu a liderança real da Revolução Soviética. 

Kamenev e Zinoviev, os fura-greves da revolução.

Vale notar que, até julho de 1917, a maioria do Comitê Central do Partido Bolchevique ainda estava contra a tese de tomada imediata do poder proposta por Lênin e Trotski. Foi uma mudança no comportamento das massas bolcheviques, que se insurgiram nas ruas, que convenceu o resto da liderança comunista. 

Ainda assim, à última hora, Kamenev e Zinoviev, bolcheviques da velha guarda, alcaguetaram o plano de insurreição de Lênin e Trotski, o que levou Lênin a chamá-los de furadores de greve e a querer expulsá-los do Partido, do que foram salvos pela rara concordância e união de Trotski e Stálin. A tese de Trotski pressupunha que o Outubro soviético fosse seguido da revolução alemã.

Isso se tornou axiomático entre os bolcheviques. Ninguém acreditava que a precária Revolução Soviética se mantivesse em pé sozinha. 

Bem, em 1918, o levante spartakista de Rosa Luxemburgo e Karl Leibknecht fracassou na Alemanha, traído pelos sociais-democratas, aliados ao Exército imperial. Em 1923, nova tentativa redundou em semelhante fracasso. 

Até levantes em países subdesenvolvidos (Hungria) deram em nada. Em 1920, a tentativa do Exército Vermelho de levar a revolução sob ponta de baioneta à Polônia terminou em derrota. Data desse período o dilema da liderança bolchevique que terminaria resolvido no stalinismo.

Gênio militar de Trotski salvou a revolução

Lênin e Trotski subestimaram a capacidade do capitalismo vigoroso e intocado pela guerra dos EUA de revitalizar a decadente Europa burguesa. Não esperavam que os imperialismos pobres da Inglaterra e França tivessem forças de organizar uma intervenção na Rússia que terminaria envolvendo 22 países, acabando de arrasar o país, já devastado pela Guerra de 1914 e por viver na idade da pedra. 
Essa guerra civil, cujo cerne era a própria reação interna, custou a vida de 13 milhões de pessoas. Foi a guerra civil mais violenta da história e, no entanto, existe um mínimo de análise e de compreensão sobre o efeito que teve na psique dos bolcheviques. 
Atrocidades foram cometidas de lado a lado, mas está incontrovertivelmente provado que quem as iniciou foi a Legião Tchecoslovaca, a ponta de lança do intervencionismo de Clemenceau e de Lloyd George, os dirigentes da França e Inglaterra. 

Em julho de 1918, os bolcheviques dominavam o equivalente a 10% da URSS atual. Uma social-revolucionária, Dora Kaplan, tentou matar Lênin. Antes, os comunistas se haviam magnânimos. Soltavam generais tzaristas sob promessa de que não pegariam armas contra a revolução (não faziam outra coisa). 

Stalin acumulava poder na burocracia partidária

Aboliram, para escândalo de Lênin, cuja memória das gentilezas da Comuna de Paris era vívida, a pena de morte. Pensavam conciliar com todos os partidos, desde que reconhecessem a supremacia bolchevique. 

Pós-Dora Kaplan, Lênin chamou Félix Dzerzhinsky, revolucionário polonês, discípulo de Rosa Luxemburgo, cuja ambição professa era dirigir um comissariado de bem-estar da infância, e deu-lhe plenos poderes de combate à contrarrevolução, via a famosa Cheka, a antecessora da atual KGBNuma noite, conta Victor Serge, a Cheka matou 150 mil pessoas em Petrogrado, o sangue jorrava como água pelas ruas em direção aos bueiros. Começara o terror vermelho. 
Trotski erigiu do nada o Exército Vermelho e, revelando gênio militar que seus escritos sobre o tema já deixavam antever, derrotou a reação interna e os intervencionistas. A batalha decisiva foi em Leningrado, 1919, em que mulheres comunistas atacavam tanques usando facas de cozinha. 

revolução triunfara, embora a guerra civil só terminasse oficialmente em 1922. Triunfara, porém, sobre o quê? Em 1921, isolada do mundo, devastada internamente, com fome e canibalismo em todos os cantos, à URSS restava o partido único de Lênin, governando massas exaustas e hostis, que não entendiam as sofisticadas esperanças de uma liderança que sonhava ainda com a revolução mundial.

Marinheiros do Kronstadt se revoltam contra o terror.

O partido que se permitia uma “espantosa liberdade de debate”, na frase do historiador (hostil) Robert V. Daniels, se fracionara de tal forma que ameaçava o próprio suicídio. Lênin sugeriu e todos aceitaram que fosse proibida a formação de facções, de que se valeria Stálin mais tarde para esmagar todas as oposições. 

Em 1921, o levante dos marinheiros da fortaleza Kronstadt foi impiedosamente esmagado por Trotski, mas, no comentário de Lênin, iluminou dramaticamente a cena de miséria e sofrimento do povo. 

Lênin criou a NEP, Nova Política Econômica, economia mista, em que as grandes (e falidas) companhias do Estado permaneceriam sob controle estatal, mas aos camponeses e donatários de indústrias médias se permitiria o capitalismo. Foi um período de conciliação de classes que se estendeu até 1929, o período mais pacífico da Revolução Soviética até a ascensão de Kruschev, depois da morte de Stalin, em 1953.

Novamente, Trotski se insurgiu, ainda que disciplinadamente, dentro das reuniões do Partido. Trotski propunha a acelerada industrialização do país, a militarização do trabalho, um regime draconiano de desenvolvimento da indústria pesada (elaborado pelo economista Preobrazhensky), que seria adotado ipsis litteris por Stalin, pós-1929, sem reconhecer a autoria, porque expulsara o autor do país nesse mesmo ano e o mandaria assassinar no México, em 1940. 


As explicações de trotskistas ilustres como Isaac Deutscher, de que o programa de Trotski era para ser adotado voluntariamente pelo povo, que excluiria a inacreditável brutalidade de Stalin ao coletivizar a agricultura, são especulações interessantes, impossíveis de provar ou desprovar.

Preobrazhensky: draconiano.

Lênin não aceitou a tese de Trotski. É uma questão aberta se ele considerava a NEP um fenômeno transitório, o que é, claro, religiosamente afirmado pela propaganda comunista, ou se voltara à concepção social-democrata, menchevique, de que a URSS precisava de um período de desenvolvimento capitalista antes de ingressar no socialismo. 


O bolchevique favorito de Lênin, o benjamim do aartido, Nikolai Bukharin, acreditava na segunda hipótese, tanto assim que se aliou a Stalin para destruir a facção radical de Trotski (enriquecida depois de 1926 por Zinoviev e Kamenev) e caiu em 1929, defendendo os princípios da NEP. Nunca saberemos o que Lênin pensava realmente, pois morreu em 1924, sem deixar explicação, ao menos que tenha vindo a público.

Deixou, porém, o famoso testamento. Se, de um lado, propõe a retirada de Stalin do todo-poderoso cargo de secretário-geral do Partido, prevendo o futuro tirano por implicação, de outro, embora reconhecendo a superioridade de Trotski sobre os demais, critica-o pela “excessiva atração” (sic) por “métodos administrativos” (sic), essa última expressão um eufemismo de imposições de programas ao povo a chicote, o que seria a especialidade do stalinismo. 


Fora da URSS, Trotski, sem nunca rejeitar a tese do partido único e exclusivista, tornou-se um apóstolo do comunismo libertário, mas não era obviamente essa a posição dele nos tempos de Lênin, o que o testamento do líder especifica.

A violência com que Stalin industrializou a URSS na década de 1930 é provavelmente responsável pela vitória da URSS sobre a Alemanha nazista e por sua conversão numa superpotência que só rivaliza com os EUA. 


O custo humano dessas realizações, porém, faz estremecer a mente. Cinco ou dez milhões (os dez milhões são de Stalin, ditos a Churchill) de camponeses assassinados na coletivização entre 1929 e 1932, o assassinato de 1 milhão de comunistas nos expurgos de 1934-1939. sem falar de suas respectivas famílias e amigos, elevando o total a 20 milhões de vítimas. 

Era para exterminar os kulaks como classe, mas…

A destruição da fina flor da cultura russa, de Mandelstam a Babel, e o estabelecimento de uma aridez burocrática na vida cultural do país, que permanece até hoje. Uma tirania policial que antes de sua morte, em 1953, superava a de Adolf Hitler. 


E, finalmente, para manter paridade em armas com os EUA, a submissão do povo a indizíveis sacrifícios em nível de vida que, hoje, 24 anos depois da morte do tirano, continua mais baixo do que o da Bélgica, que a URSS, militar, incineraria em meia hora. 

Muito se discutiu na polêmica Stalin-Trotski sobre a posição do primeiro em favor de socialismo num só país e a visão internacionalista de Trotski. Há exagero de parte a parte. Stalin nunca desistiu da revolução mundial, nem Trotski rejeitou a possibilidade de desenvolvimento autônomo da URSS. Trotski não pôde provar o que faria, porque derrubado e assassinado. Stalin, porém, forçado a fixar-se na URSS graças ao renascimento do capitalismo europeu reabastecido pelos EUA, transformou a política externa soviética num modelo de cinismo e oportunismo que desmoralizou o comunismo tanto quanto o corrupto papado na era de Lutero. 


Em 1927, sob os protestos de Trotski, inaudíveis fora do país, Stalin forçou os comunistas chineses a se aliarem a Chiang Kai-shek, pois temia que uma revolução comunista na China atraísse o ódio capitalista contra a URSS. Chiang massacrou os comunistas. Daí nasceu a revolta de Mao Tsé-tung à tutela soviética. No fim da Guerra de 1945, para aplacar os EUA, Stálin continuou traindo Mao e apoiando Chiang. 


Na Iugoslávia, pelos mesmos motivos, na 2ª Guerra, queria que Tito partilhasse o poder com a monarquia. 

Mao Tsé-tung cansou de ser traído por Stalin 

Em 1938, na Guerra Civil Espanhola, à parte mandar assassinar implacavelmente todos os grupos esquerdistas não comunistas que lutavam contra Franco, iniciou a redução do auxílio ao governo republicano porque já planejava o Pacto de Não Agressão, vis-à-vis Hitler, de agosto de 1939. 


Na Alemanha de 1933, insistiu em que o PC considerasse os sociais-democratas os “verdadeiros fascistas”, cindindo a classe operária, o que facilitou a ascensão de Hitler. 


Também no fim da 2ª Guerra fez os comunistas franceses e italianos baixarem armas em face dos EUA, porque queria preservar a esfera de influência que reservara para a URSS no Leste Europeu (apesar disso, essa esfera lhe foi negada pelos EUA até que a URSS desenvolvesse armas nucleares). 


É difícil imaginar política mais sórdida e estúpida. Sem a cisão da classe operária alemã, Hitler só chegaria ao poder mediante uma guerra civil e é quase certo que, em 1933, se o Exército derrotasse socialistas e comunistas, teria posto no poder uma alternativa menos perigosa e agressiva do que Hitler. 


Da mesma forma, o Pacto de Não Agressão nazicomunista de 1939 é julgado obra de gênio de Stalin, pois desviou as fúrias de Hitler para o Ocidente europeu, o qual tentava persuadir direta e indiretamente ao Führer que a URSS seria o alvo ideal de conquista alemã. 


Esse raciocínio tem algum mérito até a invasão da Polônia por Hitler. Nesse período, a Inglaterra já se comprometera a defender a Polônia.

Pacto entre Hitler e Stalin: uma abominação!


Se Stalin, em vez de acumpliciar-se com Hitler, abocanhando metade da Polônia, lhe tivesse dado combate, haveria sido mais fácil derrotar Hitler então, pois, sabemos hoje, a máquina de guerra alemã era mais mistificação tática do que realidade. 


Já em 1941, quando Hitler atacou a URSS, dominava completamente a Europa, seus recursos e tropas. Colocou 144 divisões de elite vis-à-vis Stalin e 3 milhões de homens. 


Stalin obteve, apesar de tudo, a maior vitória militar do século, mas ao preço de 20 milhões de soviéticos e de devastações no país maiores que as da guerra civil de 1918-1922. 


Milhões de pessoas, no entanto, se sacrificaram por Stalin, idealistas, muitas das quais morreram fuziladas nos campos de extermínio da URSS, bradando triunfalmente o nome do carrasco, no momento em que este as executava, o que prova que o comunismo é a religião secular do nosso tempo.

Resta da URSS de Stalin a superpotência. Seus efeitos benéficos são indiretos. Inexistisse a URSS, os EUA, no seu período de expansão imperialista, que terminou com a Guerra do Vietnã, teria transformado o resto do mundo numa coleção de Cingapuras. Todo movimento insurrecto, ou meramente nacionalista, lançou olhos esperançosos na direção de Moscou, talvez porque o único breque à superpotência americana, e não, certamente, porque Moscou fosse a meca do internacionalismo revolucionário.

É difícil imaginar um único movimento comunista fora da esfera de influência soviética no Leste Europeu que aceite e admire o modelo soviético. E mesmo nessa esfera a indocilidade e ânsias de libertação são sensíveis, não em loucos santos do tipo Soljenítsin, mas em novas gerações de reformistas comunistas, que anseiam por apagar a onerosa herança do stalinismo que lhes foi imposta. 

Múmia do Lênin: “ruborizado, com toda a razão”.

E dentro da própria URSS, tensões nacionalistas, a inexistência de um padrão de vida civilizado, das mínimas liberdades individuais, provocam agonias de que temos meros relances. 


O stalinismo é um monumental leviatã militar e policial. Espiritualmente, é um cadáver. Seus decrépitos líderes não sabem sequer o que fazer. É uma ditadura caduca que se sustenta pela força da inércia e na ponta de mísseis nucleares e nos tentáculos da KGB. 


Não era esse o sonho de Lênin e Trotski e, talvez, nem do próprio Stalin, no início de sua carreira. Mas foi a nação e o movimento que os três construíram e que cabe a gerações futuras reformular, eliminando deformidades e, principalmente, para purgar a alma de um grande povo, contar-lhe a verdade sobre sua história nesses tumultuosos sessenta anos.

Diversas circunstâncias históricas, principalmente a destruição do mundo burguês capitalista em 1914, deram margem à Revolução Soviética. Disso não resta dúvida. A mim, porém, me parece igualmente certo que, se não fosse o gênio de Lênin, Trotski e Stalin, essa revolução teria seguido um rumo muito diferente. A paternidade da URSS moderna é inequivocamente deles. E o que restou, no país que erigiram do feudalismo de 85% de camponeses, o que restou de cada um?

Lênin, homem simples, materialista convicto, está hoje transformado em ícone, ridiculamente mumificado na praça Vermelha, onde me pareceu ruborizado. Tem toda a razão. Deve estar em rotação permanente na cova. 


Trotski não existe na URSS ou é rotineiramente atacado pelos escribas dos burocratas gagás que administram o patrimônio de Stalin. Um crime histórico que dispensa comentários.

Por Paulo Francis


E o próprio Stalin virou assunto que não se discute em casa de famíliaDepois da superficial revisão do período Kruschev, colocaram de novo a mortalha sobre o governo desse novo misto de Genghis Khan e Pedro, o Grande, que reformulou completamente a história do nosso tempo. 


Dizia-se que a revolução devora seus filhos. A soviética repete a máxima em farsa: fez deles objeto de ridículo para os desinformados, que permanecem 99% da humanidade.

. 

EPÍLOGO

.

Profundo, brilhante e até profético, este texto do Paulo Francis não poderia ficar ausente das discussões que o centenário da Revolução Soviética suscitará ao longo deste ano, daí a minha decisão de resgatá-lo do injusto esquecimento.


E são muitas e muitas as lições que podemos extrair, a partir de tal pano de fundo. Destacarei duas:

  • a cisão do Partido Operário Social Democrata Russo, em 1903, se deu porque os fantasmas da destruição da frouxa Comuna de Paris tiravam o sono de Lênin, daí ele considerar imperativa a construção de um partido duro, de revolucionários profissionais submetidos a direção e disciplina rígidas, enquanto Trotski via nisto um ovo da serpente (primeiramente, o partido substituirá a classe operária, depois o Comitê Central substituirá o partido e, afinal, um tirano substituirá o Comitê Central). De certa forma, ambos estavam certos. Só um partido tipo jacobino, como o Bolchevique, conseguiria ter tomado o poder em 1917 e o sustentado nos anos seguintes contra a formidável coalizão de inimigos interno e externos. Mas, seu centralismo quase militar era mesmo terreno fértil para a tirania, como Stalin provaria.

  • Na inflamada discussão interna sobre se os bolcheviques deveriam ou não tomar o poder num país que nem de longe estava pronto para o socialismo, prevaleceu a tese de que a revolução soviética seria o estopim de uma sucessão de outras, começando pela alemã, cujo apoio permitiria construir o novo regime na Rússia em condições menos draconianas. Mas, abortada a sonhada sequência, a URSS contou apenas consigo mesma para superar seu acentuado atraso econômico, acabando por fazê-lo a ferro e fogo. Com isto, o chamado socialismo real soviético se tornou tão odioso e execrável que serviu como exemplo negativo para a máquina de propaganda burguesa dele afastar o proletariado das nações mais avançadas. E, embora a construção do socialismo em nações isoladas esteja completando um século de fracassos, até hoje a esquerda a continua tentando, em vão. Não seria o caso de voltar a apostar suas principais fichas na revolução mundial? Não é paradoxal a economia estar globalizada e os movimentos revolucionários terem praticamente abandonado o internacionalismo de outrora?

Por último, é impressionante como, em novembro de 1977, Paulo Francis já antevia (e ousava colocá-lo no papel!) o colapso do regime soviético. Quase ninguém o fazia na esquerda brasileira, que, depois da primavera de 1968, regredira ao mais tacanho maniqueísmo, com o consequente embotamento do espírito crítico.


(por Celso Lungaretti)




Celso Lungaretti: 'Besteirol feminista'

CELSO LUNGARETTI: ‘BESTEIROL FEMINISTA: O SEXO SIMULADO DO CINEMA VIROU ESTUPRO…’

Eblogue de cinema inflamada discussão sobre o incrível, fantástico e extraordinário estupro que a atriz Maria Schneider teria sofrido durante as filmagens de O último tango em Paris (1972), a obra-prima de Bernardo Bertolucci.


Comecemos pelo que realmente importa no filme, a história (pois as controvérsias que ele desde o início despertou se ativeram a um trecho ínfimo no contexto da obra).


Logo após o suicídio da esposa, viúvo (Marlon Brando) procura onde ficar por uns tempos, pois no antigo domicílio do casal as lembranças dolorosas o deprimem ainda mais. Ao visitar um apartamento disponível, cruza com uma jovem (Maria Schneider) que também o está avaliando. Depois de trocarem umas poucas palavras, fazem amor furiosamente.

Brando: no auge da depressão.

Paul (Brando) aluga o apê e Jeanne (Schneider) passa a frequentá-lo para transarem e curtirem suas fantasias. Ele lhe impõe a regra de não revelarem seus nomes, nem falarem sobre suas vidas.

Ela, portanto, não tem consciência do quanto a relação entre ambos está sendo determinada pelos remorsos e tormentos de Paul. Ser viúvo(a) de suicida é atroz para qualquer ser humano sensível. 

Como na época ainda havia muita hipocrisia com relação ao sexo, produziu-se um sucesso de escândalo. E quem fez de tudo para surfar nessa onda foi Maria, atriz francesa que estava com 20 anos e nada fizera de importante na carreira.

Ela passou, nas entrevistas que concedia e nas frases enviadas à imprensa por seus divulgadores, a dar declarações próprias de uma piranhinha, ou seja, nelas havia sempre uma intenção evidente de chocar leitores e espectadores com espalhafato sexual . 

Que, p. ex., trombeteasse toda hora haver transado com mulheres, vá lá, embora  fosse oportunismo utilizar relações homoeróticas (verdadeiras ou inventadas) como um trunfo para seu marketing artístico. 

Bertolucci dirigindo o par central

O tempo passou, a moeda que caiu em pé não se repetiu na carreira de Maria (depois do Tango, só foi atriz principal de mais um filme importante, o Profissão: repórter de Michelangelo Antonioni, o qual, contudo, obteve sucesso artístico mas não comercial) e ela foi ficando cada vez mais esquecida.

Em 2007, quando só lhe restavam esporádicos papéis secundários em produções de segunda linha, foi entrevistada pelo jornal britânico Daily Mail e saiu-se com esta:

.

Trocando em miúdos, propuseram-lhe que filmasse uma cena inicialmente não prevista, na hora ela aceitou, não passou de sexo simulado como tantos que atores e atrizes rotineiramente interpretam, mas, 35 anos depois, veio lamuriar-se de haver sido humilhada. 

As pessoas vão estranhar? É o que queremos!

Por que não disse isto antes? Porque, naquele tempo, a imagem que o público tinha dela ( e seus agentes se esforçavam ao máximo para projetar) era de uma moça sem pudor, desbocada a ponto de fazer comentários grosseiros sobre o pênis do ator famoso com o qual contracenara. Seu chororô de humilhada, naquela época, teria sido recebido com gargalhadas.

Maria morreu de câncer em 2011. Dois anos depois, Bertolucci comentou o episódio na Cinemateca Francesa, com a franqueza de quem falava com outros artistas, não adivinhando que sua declaração impactaria fortemente nos patetas do inferno pamonha, se dela tomassem conhecimento.

.

Mas, nestes tempos bicudos, a indústria cultural está sempre atenta às oportunidades para fazer com que seus produtos bombem entre os patetas, alavancando o faturamento. Então, coube à revista Elle dar enorme quilometragem a tal besteirinha. 

Mas que, confundidas pela picaretagem e desonestidade intelectual, muitas pessoas crédulas acabaram tomando como real.

.

clique aqui para ver o filme com legendas em inglês; 

aqui para baixá-lo com legendas em português..