Marcelo Paiva Pereira: 'A construção da cidade: o mito fundador'

Marcelo Augusto Paiva Pereira

A CONSTRUÇÃO DA CIDADE: O MITO FUNDADOR

Desde os primórdios da Idade Antiga, as cidades são construídas para satisfazer as necessidades e interesses das sociedades. Os fundamentos ontológicos das cidades são a natureza (ou origem), o tempo, o espaço, a condição humana e as regras instituídas, as quais resultam da identidade e da complexidade das várias culturas que as ergueram.

As concepções metafísicas (essência das coisas, como são os conceitos, noções, crenças, afetividades, imagens e expectativas) são a identidade histórica de cada cultura e servem de suporte para conhecer e compreender o passado. Neste contexto, as concepções de espaço dependem do conceito de mito – crença na existência do surreal – para justificar as cidades.

O mito era elemento psicológico e cultural dos povos antigos. Na Idade Antiga, mitos e ideologias eram fontes de normas de ordenação do espaço na arquitetura e no urbanismo. À cidade ou à construção de qualquer edifício atribuíam o “status” de ato ritual. Edificar era ato de poder e os ritos de implantação do espaço eram ritos de soberania.

Os ritos com os quais se erguiam as cidades e edifícios eram cumpridos por reis e sacerdotes em obediência a modelos ancestrais ou celestiais e conectavam o mundo material das cidades com as concepções metafísicas (transcendentes). Dentre os modelos celestiais havia o princípio do curso do sol, que definiu as primeiras bases do espaço regrado e as normas específicas de distribuição do espaço (dividiam o espaço e definiam a hierarquia social). Palácios e templos eram fontes de produção normativa e das realizações urbanas.

Nas sociedades gregas a esfera do sagrado – templos e altares – definia o espaço na delimitação do núcleo simbólico e o separava da área de habitação, comércio, serviços e dos limites urbanos. Em razão da esfera do sagrado organizar somente o núcleo simbólico, as outras áreas urbanas eram mal distribuídas, sem ordem ou racionalidade na organização espacial.

No século V a.C., o arquiteto Hipódamo de Mileto redesenhou o Pireu (porto de Atenas) sob plano ortogonal com quadras ordenadas em forma de grade, que em seguida o utilizou para reformar as cidades de Mileto, Priene e Olinto (estas se tornaram modelos urbanos hipodâmicos).

Hipódamo entendia o projeto urbano como fonte de uma ordem social racional. Nele influiu a ideologia da isonomia (simetria e proporcionalidade), ideal geométrico da igualdade que, institucionalizado, legitimou a democracia clássica e mensurou a ordem social. As escolas dele e de Hipócrates (“pai” da medicina) acolhiam as propriedades do corpo, a ordem do espaço e a circulação dos elementos. Com estes conceitos Hipódamo entendia a cidade ordenada como o lugar do corpo sadio.

Da atuação de Hipódamo resultou uma nova teoria urbanística, pela qual o plano urbano é desenhado em medidas de proporção entre elas (isonomia geométrica), ao encontro da nova ideologia da cidade (isonomia social e institucional), que Alexandre Magno a difundiu.

Na sociedade romana o mito da fundação de Roma – rito fundador – era a norma pela qual o rei (“rex”) realizava com linhas retas o traçado do território nacional (reino do sagrado) e o separavam do estrangeiro (reino do profano).

O centro da cidade era definido por duas retas ortogonais, em que uma fixava a orientação norte-sul (“cardus”), enquanto a outra fixava a orientação leste-oeste (“decumanus”). No cruzamento de ambas estava o “umbilicus” e sob ele estava o “mundus”, câmara subterrânea na qual enterravam-se oferendas em favor dos deuses. Os limites das cidades chamavam-se “promerius”. O rito fundador era imitado para definir o centro urbano, a distribuição das quadras e ruas e posicionar as habitações (“domus italica”).

As habitações romanas – “domus italica” – eram um modelo de origem etrusca, constituíam-se do “impluvium” (repositório das águas pluviais), o “peristilo” (espaço aberto contornado por colunas); o “atrium” (corredores circundantes do “impluvium”) e a “villa” (conjunto de células habitacionais ao redor do “atrium”e do “impluvium”). O desenho arquitetônico era introspectivo (voltado para o centro das habitações), recebia água e luz naturais (fontes da vida) e as distribuía pelos espaços de circulação e de moradia.

Séculos se passaram desde a Idade Antiga até a atualidade. Neste período, em muitas foram as descobertas (como as novas rotas comerciais), muitas inovações artísticas, científicas e muitas cidades foram erguidas, principalmente no novo mundo que surgia, a América. Neste continente encontra-se nosso país e Brasília (capital federal), que também tem o próprio mito de fundação.

Em relação à Brasília, o mito de fundação é a visão profética de Dom Bosco, padroeiro da cidade, que previu a construção da capital federal no planalto central do Brasil. Sem óbice deste mito, a legislação pátria previa a construção da capital no centro do país para protege-la de invasões estrangeiras, desenvolver e integrar todas as regiões, inclusive as mais longínquas.

Foi na administração de Juscelino Kubitschek – 1956 a 1961 – que a expectativa se realizou, na forma do plano piloto desenhado por Lúcio Costa e preenchido com os edifícios desenhados por Oscar Niemeyer. Ambos pertenceram à escola modernista, que veio ao Brasil em fevereiro de1922 com a Semana de Arte Moderna, ocorrida em São Paulo.

O modernismo reorganizou o espaço para suprir as necessidades oriundas da Revolução Industrial e do capitalismo. Diante da nova sociedade que surgia, os objetivos do planejamento urbano foram a moradia, o trabalho, a circulação e o lazer. Pretendia-se por um novo estilo de vida, igualitária, que modificou por inteiro o tecido urbano e introduziu novos (conceitos de) edifícios (por exemplo, o uso do aço e, posteriormente, do concreto).

O projeto e a construção de Brasília seguiram esses objetivos, princípios informadores do modernismo na primeira metade do século XX, e prometia ser o símbolo da ordem, progresso e desenvolvimento os quais o país estava conhecendo. Assim como nas sociedades da Idade Antiga, no Brasil de meados do século XX havia as crenças e expectativas de surgir uma nação forte e soberana.

CONCLUSÃO

Na Idade Antiga as cidades eram construídas conforme os mitos e ideologias que compunham modelos ancestrais ou celestiais, versões apriorísticas da tipologia urbana a ser seguida pelo rei ou sacerdote. Gregos e romanos pensaram a construção da cidade sob o modelo ancestral, mas os gregos as redesenharam com suporte na isonomia geométrica, enquanto os romanos as desenharam com suporte nas linhas que demarcavam os limites da cidade (“promerius”), do centro (“umbilicus” e “mundus”) e das habitações (“domus italica”).

Na Idade Contemporânea, Brasília surgiu como a realização de uma profecia em concomitância aos interesses políticos e econômicos de desenvolver o país à luz do modernismo, que em 1922 se instalou no Brasil e atendeu aos desejos de modificar os projetos urbanos e os costumes sociais, com vistas à uma nova ordem social e ao progresso do país.

Em suma, a construção da cidade tem origem nos primórdios da Idade Antiga e desde aquele período havia regras de elaboração que emanavam dos poderes de soberania ou da ordem social, com o objetivo de criar um Estado forte, rico, desenvolvido e soberano. A diferença para a época atual está na justificação: enquanto naquele tempo eram os mitos e ritos suas bases, atualmente são os interesses econômicos, sociais e políticos. Nada a mais.

Marcelo Augusto Paiva Pereira.

(o autor é arquiteto e urbanista)

FONTES DE PESQUISA

https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/31509/000289093.pdf?sequence=1. Acessado aos 23.06.2016.

http://docplayer.com.br/12212327-Arquitetura-modernista-e-a-transformacao-do-espaco-urbano-uma-reflexao-sobre-a-construcao-de-brasilia-e-suas-contradicoes.html. Acessado aos 27.06.2016.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Hip%C3%B3damo_de_Mileto. Acessado aos 27.06.2016.

 

“SITE” DA IMAGEM

https://pt.slideshare.net/AngySilva/roman-houses-131954442. Acessado aos 24.06.2019.




Artigo de Marcelo Paiva Pereira: 'PRUITT-IGOE: O MITO DA REALIDADE'

PRUITT-IGOE: O MITO DA REALIDADE

 

MarceloAo conjunto habitacional de Pruitt-Igoe (1952 a 1972) o historiador e crítico da arquitetura Charles Jenks atribuiu o símbolo do fracasso da arquitetura moderna, por ter sido mal sucedido na realização do espaço pelos moradores e frequentadores, tendo (esse resultado) causa no projeto e não na administração. O presente texto, mesmo superficialmente, mostrará o contrário.

A mencionada obra foi construída ao N de Saint Louis (Estado do Missouri), nos Estados Unidos, para atender a política social do governo federal americano de retirar famílias das favelas e cortiços e integrá-los no ambiente urbano com infraestrutura consolidada.

Resultou da Lei da Habitação, promulgada em 1949 pelo governo federal, a qual também permitiu a construção de bairros planejados para a classe média nos subúrbios das cidades, das quais a Administração Pública de Saint Louis a executou sem as devidas cautelas.

A cidade de Saint Louis estava recebendo migrantes de várias cidades e de outros Estados-membros, que se instalavam nas periferias pobres, mas avançavam em direção ao centro e causavam a redução do valor do solo urbano.

Para conter esse avanço, em 1950 a prefeitura de Saint Louis obteve verba do Estado para demolir favelas e cortiços próximos do centro e vender as áreas à iniciativa privada, com vistas a assegurar a ocupação do trecho urbano por atividades comerciais e pela classe média, e construir conjuntos habitacionais verticalizados para abrigar a população pobre da cidade.

Aquele conjunto habitacional foi projetado pelo arquiteto Minoru Yamasaki (1912 – 1986) e era formado por 33 edifícios de 11 andares e 2870 apartamentos, distribuídos em 57 acres. Em relação aos edifícios, cada qual possuía corredores comuns a cada três andares para lavanderia, depósito de materiais, lixo e cômodos compartilhados. Em relação à implantação, havia ruas separadas para a circulação de pessoas e de veículos, e também espaços para diferentes funções (playground, creche e lavanderia).

O interesse da Administração Pública era abrigar 12.000 pessoas de famílias selecionadas, após entrevistas com os assistentes sociais designados. As famílias escolhidas assinavam contratos de aluguel, submetendo-se a regras muito severas, que limitavam os direitos de uso do imóvel.

Os contratos de aluguel eram celebrados com as mulheres; seus maridos (desempregados ou procurando emprego) não podiam habitar em nenhum dos imóveis sob pena de rescisão contratual. Os inquilinos também não podiam ter telefone nem televisão. As benesses urbanas concedidas aos moradores eram limitadas e a Administração Pública era a proprietária do conjunto habitacional.

A Administração Pública arrecadava o dinheiro dos aluguéis, com vistas a cobrir as despesas do condomínio; mas, por serem muito elevadas e não as subsidiar, a diferença foi transferida aos moradores, que a rateavam. Ainda assim os problemas de manutenção e assistência técnica continuaram porque precisavam da autorização da aludida proprietária para os reparos.

No mesmo período a classe média mudou-se do centro para viver em bairros planejados nos subúrbios de Saint Louis, distanciando-se dos moradores de Pruitt-Igoe, que trabalhavam em diversas atividades e serviços e para essa classe social. O distanciamento dos locais de trabalho os prejudicou, causando desemprego para uns e salários baixos para outros.

Com as dificuldades financeiras que avançavam, tornou-se muito onerosa a manutenção do condomínio, levando várias famílias a mudar de endereço, abandonando os imóveis e deixando Pruitt-Igoe para trás.

O ambiente social tornou-se hostil, os traficantes e usuários de drogas invadiram os imóveis abandonados e a violência tomou conta do lugar: a polícia, os bombeiros e as ambulâncias não podiam entrar lá, assim como aos moradores remanescentes o risco à vida era muito grande (estupros, furtos, roubos, assassinatos, etc). Em 1972 foi demolido o primeiro dos edifícios, em 1976 foram demolidos os que sobraram e no local atualmente encontram-se implantados edifícios de escolas e de cursos técnicos.

O conjunto habitacional de Pruitt-Igoe era um projeto de habitação popular, com vistas a realizar o bem estar social a ser cumprido pelo Estado, que tem o dever de tutelar a sociedade. Ele estava inserido em uma política urbana bem intencionada, mas executada sem as cautelas necessárias para integrar a população desse condomínio no ambiente urbano que se transformava, devido às diretrizes da Lei da Habitação de 1949.

O nome dado ao conjunto habitacional vem de dois cidadãos americanos, Wendell Pruitt, que era negro e foi piloto de avião; enquanto William Igoe era branco e foi político. O nome Pruitt-Igoe foi em homenagem a ambos e aos imigrantes e migrantes pobres – brancos e negros – que se instalaram na cidade de Saint Louis.

O mito sobre o conjunto habitacional de Pruitt-Igoe faz crer que o fracasso experimentado resulta do projeto desenhado pelo arquiteto[i], que acolheu o modernismo como modelo arquitetônico e urbanístico para realiza-lo. Não se pode acolher este posicionamento, porque referido projeto foi encomendado pela Administração Pública para o alcance do bem estar social, que não se operou como deveria em razão da má administração por ela realizada.

O fracasso de Pruitt-Igoe tem causa na má administração pela Administração Pública, que ignorou ou menosprezou várias situações que ocorriam:

  1. Não observou a migração da classe média, do centro para os subúrbios;
  2. Os inquilinos ficaram muito distantes dos locais de trabalho;
  3. Limitou os direitos de moradia aos inquilinos;
  4. Diminuiu as benesses urbanas a eles;
  5. Cobrou aluguel muito elevado;
  6. A manutenção do conjunto habitacional era muito onerosa e não foi subsidiada.

Em suma, o fracasso do conjunto habitacional de Pruitt-Igoe resultou da má administração operacionalizada pela Administração Pública em face da Lei da Habitação, e não pelo projeto do arquiteto nem pelo modernismo[ii]. Nada a mais.

 

Marcelo Augusto Paiva Pereira.
(o autor é aluno de graduação da FAUUSP)

 

BIBLIOGRAFIA

ARAVECHIA, Nilce; BRITO, Flávia; CASTRO, Ana. Evolução do Equipamento da Habitação. FAUUSP. De 02.03 a 08.06.2015. Anotações de aulas. Não publicadas.

BASSANI, Jorge; CYMBALISTA, Renato. História do Urbanismo Contemporâneo. FAUUSP. De 07.08 a 04.12.2013. Anotações de aulas. Não publicadas.

 

SITE DA FOTO

ARCHDAILY.COM.BR. Disponível em: www.archdaily.com.br. Acessado aos 08.06.2015.

 

SITES

PORTALARQUITETONICO.COM.BR. Pruitt-Igoe. Disponível em:

http://portalarquitetonico.com.br/pruitt-igoe/ Acessado aos 11.03.2015.

ACADEMICCOMMONS.COLUMBIA.EDU. Disponível em: academiccommons.columbia.edu/download/fedora…/94-156-2-PB.pdf. Acessado aos 11.03.2015.

ARCHDAILY.COM.BR. Exibição do filme “O Mito de Pruitt-Igoe” na X Bienal de Arquitetura de São Paulo. Disponível em: http:/adbr001cdn.archdaily.net/wp-content/uploads/2012/01/1326476605_1500px_aerialview_pruitt_igoemyth_credit_stathistsocofmo.jpg. Acessado aos 08.06.2015.

YOU2REPEAT.COM. The Pruitt Igoe myth – an urban history (trailer oficial legendado). Disponível em: http:/www.you2repeat.com/watch/?v=xdeZpPws8lo&s=0&e=152I=i. Acessado aos 08.06.2015.

[i] Assim diz Clara Irazábal: “(…). Seu projeto, assinado por um dos mais preeminentes arquitetos do país, Minoru Yamasaki, seguiu os princípios de planejamento de Le Corbusier e dos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna e foi saudado como um exemplo do novo iluminismo. O PI chegou a ganhar prêmios do Instituto Americano de Arquitetos quando foi desenhado, em 1951.”. IRAZÁBAL, Clara. Do Pruitt-Igoe ao World Trade Center. Disponível em: <academiccommons.columbia.edu/download/fedora…/94-156-2-PB.pdf> Acessado aos 11.03.2015.

[ii] Assim diz Guilherme Ruchaud: “A arquitetura moderna falhou em alguns aspectos, mas parece-me um grande equívoco associá-los ao fracasso de Pruitt-Igoe. (…)”. RUCHAUD, Guilherme. Pruitt-Igoe: o mito em torno de um conjunto habitacional. Disponível em: <http://portalarquitetonico.com.br/pruitt-igoe/> Acessado aos 11.03.2015.