Estômago – Uma viagem pelos apetites, impulsos e fantasias

COLUNA CINEMA E PSICANÁLISE

Marcus Hemerly e Bruna Rosalem:

‘Estômago – Uma viagem pelos apetites, impulsos e fantasias’

Card da Coluna Cinema e Psicanálise: 'Estômago – Uma viagem pelos apetites, impulsos e fantasias'
Card da Coluna Cinema e Psicanálise: ‘Estômago – Uma viagem pelos apetites, impulsos e fantasias’

“A fome é eterna, como a vida e como a morte”.
Machado de Assis

A interação entre indivíduo e seu espaço de vivência já foi tratada de forma recorrente no simulacro das artes. Não raro, o ambiente atua como um personagem coadjuvante que realça as experiências do main character, seja no ponto de intensidade, seja numa provação que delineia um entendimento de si próprio como uma engrenagem a seu derredor. No neorealismo italiano, a abordagem focada na pessoa, realça o matiz dramático impresso pelo cenário; a trilogia dos apartamentos de Roman Polanski tem sua aura de morbidez e insânia a partir dos lúgubres prédios que atuam como pano de fundo, formando um exemplo de densidade quase palpável daquela interação. 

Na história do cinema nacional, o viés existencial a partir dessa abordagem foi tratado com peculiar sensibilidade nas obras de Walter Hugo Khouri, muitas vezes comparado ao sueco Ingmar Bergman

O espectro, repise-se, de coadjuvação do ambiente como uma ferramenta narrativa já foi utilizado belissimamente, inclusive com uma fotografia melancólica e azulada, no cult ‘Cidade Oculta’, (1986), no qual a urbe parece quase voluntariamente guiar as peças de sua engrenagem rumo ao clímax da ação. 

No filme ‘Estômago’, de 2007, Nonato, (João Miguel) é um migrante nordestino que chega à cidade de São Paulo como muitos outros desde a explosão industrial dos anos 50 e 60, onde descobre um talento nato pela culinária, inicialmente, trabalhando como cozinheiro em um bar, sendo então descoberto pelo dono de um renomado restaurante. Sua história é contada de forma não linear a partir de uma cela na prisão. 

O porquê de sua segregação e o percurso até seu derradeiro destino é intercalado pelo rememorar de descobertas na metrópole, incluindo um dúbio e idealizado relacionamento com a prostituta Íria, interpretada por Fabiula Nascimento.  O tom de ingenuidade e quase pureza de Nonato é aos poucos confrontado com as intempéries e conflitos morais e circunstanciais no meio urbano, sempre impassível a seus habitantes naturais assim como os radicados.

A expressão “pegar pelo estômago” parece ser bem explorada nesta produção brasileira que evidencia a todo instante os prazeres e deleites proporcionados por uma refeição bem preparada. Raimundo Nonato, o cozinheiro, nos deixa claro que sabe o que está fazendo. Suas habilidades no preparo das refeições aprendidas, inicialmente, nos fundos de um bar fazendo coxinhas e afins, foi ganhando cada vez mais requintes de cozinha internacional.

Raimundo conhece os ingredientes, sabe como combiná-los no prato, parece ter o poder nas mãos ao misturar os alimentos e fazer surgir preparos “dos deuses”, exalando odores agradáveis, estimulantes na textura e no visual. Cores, formas, disposição, vibração. A refeição é convidativa, provocante, aguça aos olhos e a boca, se faz desejante, tudo o que se quer é devorá-la.

Uma voracidade ardente, muito bem vivenciada pela prostituta Íria, o grande amor de Raimundo. Ela expressa erotismo e sedução através da comilança. A pulsão oral evidenciada pelas cenas de grande prazer envolvendo o devorar das refeições e o ser devorada no ato sexual.  Genuinamente, uma das pulsões que mais nos marca é a oral. Desde os primórdios do nascimento procuramos satisfazer a necessidade por alimento. Gradativamente, esta necessidade torna-se demanda de amor. Não buscamos apenas saciar a fome, o que desejamos mesmo é o toque da pele, o afago, o calor, o acalento, a segurança de estar sendo cuidado e mais, os regozijos que este momento proporciona para o corpo e para a mente. Raimundo Nonato “pega pelo estômago” a todos a sua volta. 

Ele conquista sabedoria, autonomia, ganhos financeiros melhores, e até arrisca um pedido de casamento a sua amada Íria que, através do cozinheiro, evidencia a boca enquanto zona erógena que a entorpece de prazer. Curiosamente, em alguns momentos do filme, o enquadramento parece focar em outro orifício. Seria algo provocativo do diretor ao sutilmente nos lembrar que “tudo que entra, sai?”. Afinal a analidade também é um fator discutível quando se trata de zonas erógenas, e, propositalmente ou não, tal provocação é induzida a cada foco de câmera, num rememorar conjunto dos “extremos do prazer” e a multitude de estímulos proporcionados pelo corpo e mente.

Certa vez Nonato ouve de seu chefe, dono do restaurante italiano onde trabalhava atualmente, que o filé mignon era como se fosse a nádega da mulher. A melhor parte para se comer. Enquanto ele descrevia este pedaço da carne, apontava a Nonato o lugar exato de onde retirar da peça do boi a verdadeira iguaria. Parece que esta informação fixou como tatuagem no imaginário de Nonato: carne, nádega, melhor parte.

O que acompanhamos nas cenas seguintes é a passagem da metáfora para a coisa em si: Nonato, literalmente, prepara a nádega de Íria como um prato principal.  Inconformado com o que presencia numa noite, após sua amada não lhe dar notícias, vê uma das portas do restaurante entreaberta e ao adentrar o local, depara-se com um cenário indigesto: Iria e seu chefe em pleno romance regado a vinhos e muita fartura. Além desta infeliz visão, a prostituta que dizia a Raimundo nunca beijar seus clientes, enlaça sua língua ao do chefe, parecendo torná-la também parte daquela refeição.

Nonato então ceifa a vida daqueles dois traidores nos brindando com a icônica cena na cozinha fritando a iguaria. Na prisão, o cozinheiro passa a fazer verdadeiros milagres com os parcos alimentos ofertados aos presidiários, além da sujidade e imundície do local onde eram servidos. Notadamente, pelas suas habilidades e conhecimentos culinários passa a ser requisitado pelos colegas, conquistando espaço e prestígio. Mais uma vez a máxima “pegos pelo estômago” entra em cena e Raimundo vai ganhando cada vez mais respeito e admiração. Só restava um feito para que o cozinheiro ganhasse sua estrela: eliminar a chefia. Quase uma reprise do que havia feito outrora. 

Em um banquete final preparado com muito cuidado e dedicação para os encarcerados, Raimundo Nonato coloca seu tempero especial pondo fim a quem o impedia de alcançar patamares maiores. Pelo estômago mata-se a fome, e também mata-se o corpo. O cozinheiro que antes só sabia fazer coxinhas, hoje desfruta, mesmo que nos limites da cadeia, de um peculiar sentimento de glória.  Sua expressão final é de plena satisfação, nos deixando pistas para novos preparos.

O título foi redescoberto pela disponibilização nas plataformas de streaming, que vem servindo inclusive à popularização de filmes então esquecidos ou não destacados de forma merecida quando de seu lançamento, tal como a era das videolocadoras propiciava projeção a fitas cujo sucesso não havia sido expressivo nos cinemas. Recentemente, de forma reversa, uma importante realização nacional recebeu também novos ares a partir de seu relançamento nos cinemas após processo de restauração, ‘A Hora da Estrela’, adaptado da obra de Clarisse Lispector.

Assim como o protagonista, o olhar não fenecido pela dureza da cidade, mas ainda mantido intocado pela dureza da vida sem oportunidades, apresenta ao espectador a história de Macabéa, que de forma similar, é tocada pela indiferença e aspereza da cidade grande, que oferta a promessa ilusória de um aparentemente “dar de mãos” como amoroso receptáculo, mas que cerra os olhos à sorte de seus integrantes. 

Tamanho o sucesso das reflexões paralelamente compostas à comicidade, que o longo ganha nova vida também com o lançamento da continuação, que estreia nos cinemas no dia 29 de agosto. Quais serão os novos sabores ou dissabores criados por Nonato?

Marcus Hemerly e Bruna Rosalem

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Desejos e fantasias: o velado e o revelado em De Olhos Bem Fechados

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Marcus Hemerly e Bruna Rosalem: Artigo ‘Desejos e fantasias: o velado e o revelado em De Olhos Bem Fechados’

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Os conflitos deflagrados por uma miríade de fatores ínsitos à complexidade do homem não passaram ao largo da retratação artística. Mormente, desdobramentos de fantasias e inquietudes sexuais, de igual modo, robustecem o tecido criativo de tramas notáveis na história da sétima arte.

Obsessão, fetiches, (Império dos Sentidos, por exemplo), violação, escapismo ao luto e à morte (O último Tango em Paris), traição, culpa ou a ausência dela (Perdas e Danos, Atração Fatal, Invasão de Privacidade), permeiam a evolução da imagem em movimento desde seus primórdios, direta e indiretamente.

Na própria obra do diretor Stanley Kubrick, as inúmeras camadas humanas foram inseridas na teia diegésica em suas formas mais versáteis. Extremos como a guerra, marginalidade, sátira social, política e econômica de viés histórico, ficção científica, e, no caso em estudo, as nuances da mente humana e suas projeções.

Inclusive, não se olvida da célebre frase atribuída a Rex Reed, pela qual “Deus fez o mundo em seis dias. No sétimo, Stanley Kubrick mandou tudo de volta para modificações”.

Na trama do filme ‘De Olhos Bem Fechados’, (Eyes wide shut, 1999), Nicole Kidman e Tom Cruise interpretam um casal nova iorquino bem sucedido – à época eram casados fora das telas -, transpondo o material original do romance Traumnovelle, Um Romance de Sonho (1926), de Arthur Schnitzler, da Veneza do século XIX para a América do século XX.

Frequentando a alta sociedade e gravitando entre os privilegiados, William “Bill” (Cruise), um médico aparentemente autoconfiante e Alice Harford (Kidman), uma curadora de arte em período sabático, tem a confiança até então inatacável, fragilizada após um despretensioso colóquio.

Ao revelar ao marido um momento de fantasia e quase infidelidade durante uma viagem, Bill é se vê diante de uma esposa possivelmente infiel e insatisfeita com a vida sexual que até então levavam. Nesse rompimento de uma cegueira descortinada em relação à possibilidade de fantasiar com práticas eróticas fora de seu normativo matrimônio, a partir de uma oportunidade, ele permite inserir-se numa jornada frenética, libertadora de seus pudores.

Numa das festas frequentadas pelo casal, a personagem vivida por Cruise encontra um pianista, velho companheiro de faculdade, que lhe revela a existência de um lugar sofisticado no qual seriam conduzidas orgias inimagináveis.

Tentando se infiltrar naquela sociedade secreta, o pacato médico se enverada por uma aventura rumo à sua própria auto (re)descoberta, deparando-se com as mais diversas personalidades e personas marginalizadas em várias facetas e derivações.

Acompanhamos Bill em sua perambulação, ou o que se pode chamar de cinema de deambulação, pelo qual através de planos sequência e travelings, que de modo símile à própria cidade, atuam de modo coadjuvante, intensificando o forte tom onírico de sua imposta peregrinação rumo a libertação sexual.

A riqueza dos desdobramentos psicológicos repousa ainda na segunda parte da fita. Após frustrada incursão àquela agremiação sexual, Bill passa a ser perseguido – ou assim ele acredita – pelos integrantes da confraria a fim de assegurar a manutenção de sua confidencialidade.

O que pode causar inquietação ao espectador, é o fato de que ora pode se concluir que determinado trecho da película se trata de um sonho, contemplação ou projeção da personagem, ora somos confrontados com a certeza de que seu medo é real e que sua experiência com as orgias de fato aconteceram.

Como já dizia Freud em uma de suas obras mais icônicas, A Interpretação dos sonhos (1900), sonho é uma realização de desejo e é também a via régia para o inconsciente.

Através dos conteúdos oníricos, imagens distorcidas, condensação e deslocamento de sentido daquilo que tomaríamos como algo consciente, nos sonhos aparecem enquanto fantasias, desejos, temores, traumas, porém sempre postos de maneira misteriosa, confusa, talvez angustiante ou mesmo prazerosa como se fossem códigos que precisam ser decifrados, para que questões importantes de nosso psiquismo se revelem.

E uma vez sonhado, entregue, não é possível voltar atrás. Parece o momento de Bill quando experimenta sensações nunca antes sentidas e que talvez jamais traga o velho Bill de volta.

Estamos diante mais uma vez de um conflito entre manter-se como o homem de aparência cordial, contida e ponderada ou entregar-se às luxúrias carnais. Talvez as máscaras naquele baile soassem como particulares (e porque não, peculiares) esconderijos de um velado sujeito animalesco, selvagem, sedento por um gozo extremo (se é que isso seja possível).

A própria estética do culto nos remete ao vivo das cores do sangue, da carne, ao mesmo tempo contrastante com o sombrio e quente. Poético e aterrorizante. Nefasto e almo. No mesmo viés daquilo que pulsa à Bill e a repressão de outrora.

Numa sociedade que nos provoca tanto mal-estar _ remetendo mais uma vez à Freud ao escrever Mal-estar na civilização (1930) _  que nos enreda nas tramas das crenças, dos medos, das repressões dos sentimentos e das paixões, do esfalecer das ideias e das possibilidades de criação, dos empecilhos em inventar e reinventar saídas inusitadas para um cotidiano que insiste em nos manter alienados ao máximo; falar em gozo é algo sempre complexo.

Claro que não dá para gozar o tempo todo, porém De olhos bem fechados consegue tocar numa questão ainda muita cara: as nuances da sexualidade, suas diversidades e, inevitavelmente, seus tabus. Principalmente no que se refere ao “casal perfeito” que segue a tradição do casamento nuclear: pai, mãe, filho.

O mal-estar provocado pelas quase três horas de filme, cadenciado, sem pressa em retratar o quão despudorados podem ser os nossos mais sórdidos desejos, Kubrick faz questão de nos incitar a dúvida se tudo não passaria de um longo sonho ou se realmente aconteceu, quase como “botar em panos quentes” para que aquela realidade não seja tão agressiva, justamente vindo de um casal tão “normal”, ordinário, ser capaz de ansiar por tais experiências.

Seria talvez uma crítica “moralizante” do diretor, ou um chiste para aguçar a curiosidade do espectador, ou ainda, uma cutucada para nos apontar até onde podem ir nossas próprias inversões? Será que o recurso do sonho, ao interromper aquelas orgias e por fim à entrega ao prazer seria um corte brusco, quase uma “brochada”, daquilo que poderíamos desejar, mas jamais poderíamos ter? E mais, sustentar uma vida à la Dionísio? Kubrick nos faz pensar.

Voltando o olhar para o cenário do suspense psicológico nas últimas duas décadas, identifica-se um bom presságio no que diz respeito ao gradual retorno do cinema rotulado como autoral. Anualmente, somos brindados com lançamentos de cinebiografias, filmes históricos, dramas e tramas que mimetizam o entretenimento e reflexão intelectiva. Nesse plano, se de um lado, os estúdios, assim como qualquer forma de empreendimento, necessitam de lucro, de outro lado, é interessante observar que os títulos que permeiam os festivais e premiações são os mesmos procurados pelo público tanto nos cinemas como em serviços de streaming.

Por defluência, a sétima arte ainda que povoada por produções meramente comerciais e de apelo artístico reduzido, ainda consegue afagar os olhos e sentimentos daqueles que apreciam o verdadeiro incitar da arte. É o caso da trama aqui analisada, comprova que ainda é possível criar um belo roteiro, cheio de provocações e perturbações ao espírito. Nos incomoda e, talvez, seja este um interessante artifício que faz a produção gravitar até hoje em nosso imaginário.

Marcus Hemerly e Bruna Rosalem

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Solitude, delírio e isolamento: provocações a partir do filme ‘Náufrago’

CINEMA E PSICANÁLISE

Marcus Hemerly e Bruna Rosalem: “Solitude, delírio e isolamento: Provocações a partir do filme ‘Náufrago’”

Folheto da coluna Cinema e Psicanálise
Folheto da coluna Cinema e Psicanálise

É sabido que a experiência de assistir a um filme é multifacetada, envolve a visão, a audição, e, por que não dizer? O tato. As sensações corporais, assim como sentimentais, estão em constante processo de amalgamento na construção e reconstrução da psiquê do sujeito/espectador. Tal é a complexidade da apreciação artística que, não raro, é relegada a um mero “passar de olhos” sobre um filme naqueles noventa a cento e vinte minutos, em média.

Nesses meandros, de igual forma, as elucubrações e reflexões são igualmente estimuladas, principalmente diante do teor etéreo assimilado pelas produções artísticas, direta ou indiretamente. Em algum momento de suas vidas, até mesmo em tom de pilhéria, as pessoas são confrontadas com a ideia:  o que fariam e o que levariam à uma ilha deserta? 

Essa foi a realidade imposta sem a escolha de bagagem ao personagem de Tom Hanks no filme ‘Náufrago’ de 1999. Na trama, Chuck Noland (brincadeira com o nome?)[1] é o funcionário da Empresa de Correios norte-americana, a Federal Express/Fedex, e quando seu avião sofre um acidente ele se vê como o único sobrevivente em uma ilha desabitada, e, aparentemente, inacessível às buscas a partir da angulação do raio de queda do avião.  

Naquele contexto, um indivíduo eminentemente urbano se vê exposto às intempéries da natureza, da conscientização de sua fragilidade em paralelo à força do próprio circundar terrestre, alheio a sentimentos, necessidades (emotivas e práticas), e à sua própria sorte. Esta é a crueza do universo, que apenas gira compondo a passagem do tempo, mecânico, eficaz, austero e contínuo, assim como o envelhecer como transposição ao passo seguinte mais próximo da finitude. 

Decerto, esse “mergulhar”, inolvidavelmente descortina outras derivações naturalistas do ponto de vista filosófico e de autodescoberta, quanto há um confrontamento a realidades ou situações não esperadas.

Reações extremas de personagens em situações igualmente intensas foram retratadas a partir de filmes “sobrevivência”, exploitation, de cadeia. A partir de enredos mais comerciais, ou daqueles imersos em tons mais existencialistas e reflexivos como nos títulos Pappilin (1973) e O homem de Alcatraz (1962). Em ambos os roteiros, a questão da segregação – naqueles recortes, como cumprimento penal imposta pelo sistema legal – contemplamos as formas de escapismo e o modo de lidar com a solitude, seja do ponto de vista de insurgência ou aquiescência, e como tais definições podem apresentar-se de maneiras diversificadas aos olhares.

Os roteiros que gravitam em torno de personagens expostos a situações inóspitas não são raros na produção cinematográfica mundial. Igualmente, no plano literário, impossível cerrar os olhos à aventura de Robinson Crusoe, escrita por Daniel Defoe (1660 – 1731). Contudo, ao reverso do personagem de Defoe, que contava com a companhia do indígena “sexta-feira”, Noland (Hanks), se vê rodeado pela mais absoluta solidão, que é mitigada num aspecto que até mesmo seria expressado em tom cômico nos anos vindouros, ao improvisar a companhia de uma bola de vôlei. Intencional ou algo delirante?

Deparamo-nos com o famoso Wilson, que revela até mesmo um rosto em tom rudimentar, cujas feições são moldadas pelo próprio sangue de Noland em contato com a bola após um acidente em meio àquele ambiente inóspito. Mais uma vez: criatividade ou projeção delirante? Interessante, e um dos inúmeros pontos de destaque do longa, é a capacidade de manter a atenção, “o segurar” do desenrolar do filme apenas pela permanência de Hanks em tela, em bem mais de quarenta minutos nos quais tão somente o desafortunado Noland e, por óbvio, Wilson, que lhe serve de companhia em compenetrados e densos colóquios, são suficientes em manter o suspense e interesse pela trama.

Tom Hanks vinha de uma carreira concisa no cinema, construída a partir de sólidas comédias e incursões dramáticas na década de 80 e início dos anos 90, densificando-se a ponto de tornar sua versatilidade interpretativa uma unanimidade, sendo um dos poucos atores a receber por dois anos consecutivos a estatueta do Oscar, por Philadelphia (1993) e Forrest Gump (1994), feito apenas conquistado anteriormente pelo ator Spencer Tracy. Nesse passo, cientes das particularidades propostas pelo roteiro de Náufrago (Cast Way, 1999), em uma bela direção do cultuado Robert Zemeckis, inúmeras são as interpretações e derivações que se descortinam.

            Para buscar sobreviver à deserta e sufocante ilha, pois tamanha é a solidão de Noland e a ausência de vozes e sons urbanos que até então ele estava acostumado – chegava a ser ensurdecedor ter de escutar apenas os seus pensamentos – vem à tona Wilson para extrapolar os infindáveis e enervantes diálogos internos que o homem mantinha consigo mesmo. Nem seu corpo, nem sua mente são suficientes.

Talvez para não enlouquecer de vez, a bola que pensa e fala, pode ter sido um escape, um mecanismo de defesa que o manteve, de certa maneira, seguro da total perda do contato com a realidade. Embora, algumas vezes nos perguntamos se Noland realmente acreditava naquela espécie de boneco, a exemplo, da separação em alto mar quando ele consegue finalmente sair da ilha com a sua jangada improvisada. Nos emocionamos com seu genuíno sofrimento num choro desesperado ao ver Wilson partindo pelo oceano para nunca mais ser visto. Aos gritos, o homem clama a volta de seu “amigo”. Sem sucesso.

            Enquanto humanos, somos seres gregários. É muito difícil vivermos completamos isolados de tudo e de todos.  Numa época remota da história da civilização, existiram algumas tentativas de isolamento praticadas, muitas vezes por monges, pessoas que desejavam ficar em silêncio, refugiando-se em cavernas ou altos de morros e montanhas, pensadores que queriam fazer uma espécie de “desintoxicação” de pensamentos, amenizando ansiedades, ou ainda, aquietar a mente, fazer jejum, não falar com ninguém, deixar de tomar banho como um ritual para manter o corpo mais natural possível e evitar ao máximo dormir.

Resultado: muitos destes adeptos contraíam doenças por bactérias, desnutrição, comportamentos destoantes de uma certa “normalidade”, discursos messiânicos delirantes, entre outras manifestações curiosas. Outro resultado desta empreitada, gerou efeito contrário. Como a reclusão destas pessoas chamava a atenção de quem as via meditar dia e noite e modificar severamente sua aparência, seja por não se alimentar ou banhar-se, atraíam uma multidão em volta delas, logo, o tal isolamento transformava-se em evento. Dessa forma, os não tão solitários ganhavam fama e passavam a estar em contato novamente com a comunidade.

Noland ansiava por companhia, salvação, afetividade, cuidado, alguém que pudesse olhar para ele, notar sua presença, reconhecê-lo como um ser no mundo que demanda amor e que precisava de reciprocidade. Wilson parece ter cumprido este papel. Ao criar algo “a sua imagem e semelhança”, os olhos de Wilson tornaram-se o espelho que Noland precisava para não perder-se por completo naquele corpo sem borda. É como se aquela bola velha com um rosto o fizesse sujeito novamente. Não só ajudou-o a suportar a si mesmo e impedir um fim proposital, como também impulsionou-o a elaborar meios para sair daquele lugar e retomar a vida na cidade, agora não mais como o simples funcionário da companhia de entregas, mas outra pessoa completamente diferente.

Nova ótica sobre a vida, sobre si, sobre as coisas que o cercam, o lugar onde mora, sobre os relacionamentos, o sexo, o amor, as amizades, o trabalho, com o tempo cronológico (e, porque não dizer, do tempo lógico próprio do inconsciente), com as dores, as doenças, as necessidades naturais do organismo, comer, dormir, defecar e as modificações de seu corpo pelos anos que se passaram. Enfim, uma nova simbolização como ser humano. À sombra dessa provocação, a cada dia, amolda-se uma nova “metamorfose ambulante”.

Uma possível questão suscitada pelo filme pode ser a seguinte: Noland saiu da ilha, mas será que a ilha saiu dele? Ou seja, após anos vivendo em sua própria companhia, é plausível dizer que o retorno à civilização e, consequentemente, às relações interpessoais com todas as suas alegrias, tristezas, frustrações, expectativas, acordos e desacordos, encontros e desencontros, chegadas e partidas, provocariam Noland a regressar a sua singular e subjetiva ilha? Estaria ele realmente livre? Afinal, o que é liberdade, de fato?

Numa cena, vemos que o personagem escolhe dormir no chão, em detrimento da confortável cama de hotel após seu retorno à cidade; mas, qual conforto? E para quem? Afinal, dormir em pedras ou ao relento, talvez fosse muito mais familiar para Noland do que estranho. A maciez se torna dor. A dureza, bálsamo.

Outra questão provocativa seria, se considerarmos a ilha enquanto metáfora, todos nós, em alguma medida, estaríamos ilhados em ideais, crenças, achismos, preconceitos, privações e imposições, repressões… Quem seria o nosso Wilson? E quem construiria a jangada que nos faria sair das nossas próprias ilhas? A pergunta ecoa ao aguardo de possíveis respostas, ou mesmo, de outras indagações.


[1] NO-land, literalmente, “sem terra”.

Marcus Hemerly e Bruna Rosalem

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Marcus Hemerly

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