3 lições do livro ‘1984’

Wanderson Reginaldo Monteiro: Artigo ‘3 lições do livro ‘1984’

Foto do autor e colunista Wanderson R. Monteiro
Wanderson R. Monteiro

O livro ‘1984’ é um clássico mundial que ainda hoje chama a atenção de muitos leitores. O livro, através da história contida em suas páginas, chega a nos fazer temer que tal história venha, algum dia, a se tornar realidade em nosso mundo, ou em nossas vidas.

O livro é repleto de lições para refletirmos e pensarmos, mas, nesse texto, quero destacar três lições específicas dessa história para que possamos pensar e refletir, de maneira que possamos aprender com essa narrativa que ainda continua sendo impactante e, assustadoramente, tão atual.

A primeira lição do livro que venho destacar é sobre o perigo do totalitarismo.

O livro ‘1984’ retrata uma sociedade distópica governada por um regime totalitário, conhecido como Partido. O Partido tem controle sobre tudo e sobre todos, de maneira que suas vontades são soberanas, e todos aqueles que se colocam contra esse sistema são tomados como inimigos do Partido. Esses dissidentes, tomados como inimigos, quando descobertos pelo Partido, simplesmente “desaparecem”, e sua existência é, literalmente, apagada da história, de maneira a parecer que eles nunca existiram.

Ao ler ‘1984’, tomamos conhecimento sobre os perigos e as consequências nefastas do controle excessivo do Estado sobre a vida dos cidadãos. De maneira que, mesmo sendo uma obra de ficção, a partir de sua narrativa, podemos ter um vislumbre dos perigos de dar ao Estado o poder e o controle sobre todas as coisas, inclusive, de nossas vidas.

A segunda lição, que pode ser facilmente percebida na história, consiste no perigo da manipulação da informação.

Através do personagem principal, Winston Smith, o livro nos mostra o perigo da Informação nas mãos do governo, do Estado, e como esse tema é de suma importância para o controle da população.

No decorrer da narrativa, podemos ver e aprender como a distorção e o controle das informações sobre os acontecimentos cotidianos e da História, podem ser usados para moldar e controlar a percepção das pessoas, mudando completamente a forma como elas vêem e percebem o mundo e os acontecimentos à sua volta.

No livro, o ‘Partido’ controla toda a informação, de maneira que todas as informações são favoráveis à ele. Pensem em um governo que tenha o controle sobre os canais de TV, sobre as rádios, sobre a internet, controle sobre tudo o que pode vir a ser publicado nas redes, ou não. O ‘governo’ que tiver esse poder poderá controlar tudo o que é dito ao seu respeito, assim como dizer o que quiser a respeito de qualquer um, como, por exemplo, seus opositores, e mudar toda a ideia de ‘verdade’, assim como a percepção da realidade. Essa ideia é expressa pelo slogan do Partido, que diz que: “Quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o passado”. E isso nos leva a próxima, e última, lição dessa nossa reflexão.

A terceira lição, também facilmente de ser percebida no livro, consiste no perigo, e na realidade, da luta pelo controle da narrativa.

Através de suas páginas, ‘1984’ aborda a importância da luta pelo controle da narrativa e da informação. O Partido, tendo todos os meios de informação nas mãos, usa desses meios para estabelecer a sua própria verdade.

Através do controle dos meios de comunicação, o Partido reescreve a História segundo a sua vontade, sempre se colocando como defensor e benfeitor do povo.

No livro, até mesmo as artes são usadas como meio de propaganda pelo Partido, de maneira que, os filmes, revistas, livros, músicas, etc, eram utilizados para passar mensagens de louvor e engrandecimento ao Partido, e ao Grande Irmão, seu líder supremo, assim como para influenciar as pessoas a terem os hábitos que o Partido queria que elas tivessem. Assim, as artes também eram um dos meios utilizados para o controle da população, e para a exaltação dos feitos do Partido, e do Grande Irmão, onde toda a História era reinventada.

Ao ler ‘1984’, aprendemos que a liberdade de imprensa, a liberdade de informação, a liberdade de poder criticar os atos dos governantes por todos os meios possíveis, e a busca pela verdade, são cruciais para resistir à manipulação e à propaganda governamental, e para a preservação da democracia.

Em um mundo onde todos buscam ter o maior controle possível sobre os outros, onde o conflito de narrativas ainda é uma realidade, onde governos e governantes buscam moldar a sociedade de acordo com suas vontades, utilizando de todos os meios possíveis para isso, a leitura desse livro e o despertar para essas três lições se fazem úteis, e até urgentes.

Que todas as lições de ‘1984’ nos sirvam de alerta. E que possamos estar sempre dispostos a aprender as lições que os clássicos têm a nos ensinar, e que nos tornemos cada vez mais sábios através de sua instrução e conhecimento.

Wanderson R. Monteiro

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Carlos Carvalho Cavalheiro: 'Entre as Lendas, a Negação e a História'

Carlos Cavalheiro

Entre as Lendas, a Negação e a História

Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo (Walter Benjamin).

A História é permeada de contradições, de diferentes abordagens e versões, carregada de ideologia. Mas, não existe Povo sem História. O uso que se faz da interpretação das ações humanas ao longo do tempo, se é para questionar ou para justificar um estado de coisas, não anula a necessidade que os seres humanos têm em contar os seus feitos e suas tragédias, de preferência com alguma aura de verdade.

Aqui aparece outro problema: o que é a verdade? A lua tem uma face escura ou iluminada? Parece que a resposta depende de quem a está olhando e por qual ângulo exercita a sua visão. O mesmo se dá com os fatos históricos, apesar de termos a tendência a perscrutar as minúcias a fim de extrair delas o que de mais crítico nos possam revelar. A criticidade faz parte do trabalho do bom historiador. Por isso, nos alerta Walter Benjamin acerca da necessidade de se dar à tarefe de “escovar a história a contrapelo”, ou seja, encontrar as contradições e aquilo que – ainda – não está aparente.

A história chamada “oficial” muitas vezes se apropria de lendas e de informações pouco plausíveis para criar o seu próprio alicerce, sustentando-se, dessa maneira, em bases que, ainda que bem concatenadas e estruturadas, são frágeis à investigação rigorosa. No entanto, vivemos em tempos estranhos. O historiador, que de acordo com Eric Hobsbawn tem a função de “lembrar aquilo que os outros esquecem, ou querem esquecer”, hoje em dia se vê questionado em sua produção por quem não tem a mesma formação. Infelizmente, falar do passado converteu-se em chancela de “autenticidade” e de autoridade em História para qualquer um. Desse modo, aparecem os revisionistas e negacionistas, que apresentam suas “teses” sem que discuta ao menos as questões de heurísticas envolvidas nas supostas “pesquisas”.

Daí, surgirem afirmações como a de que a escravidão dos africanos foi mais benéfica do que maléfica, ou a de que se os europeus não tivessem tomado posse da América, já não teríamos mais uma árvore sequer em pé, dado o desmatamento promovido pelas inúmeras tribos aqui existentes!

Entre a História “oficial” – e com isso eu quero dizer acrítica – e essa nova onda de pseudo-história produzida por falastrões (que convencem, infelizmente, por seu discurso aparentemente descompromissado com qualquer ideologia, o que seria um absurdo), tem que se recuperar o trabalho de pesquisa sério e crítico que nos aponte uma saída no meio da profunda crise que vivemos. Crise essa que atinge vários âmbitos da vida humana, incluindo aí a produção intelectual. E nesse momento recorremos novamente a Benjamin: “Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de fato foi”. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”.

E é essa a importância do trabalho de Ademir Barros dos Santos e Nuno Rebocho em “Entre Lendas, Mitos e Verdades”, que traz uma abordagem profunda sobre as consequências da fundação da Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão no Brasil e em Cabo Verde, mas também passeia por tantos outros assuntos, todos eles amarrados, de certa forma, à tragédia que foi a história da escravidão. Seja como consequência ou como efeito colateral, os assuntos abordados neste livro procuram esmiuçar algumas histórias relacionadas com a diáspora africana na busca de peneirar o que foi construído como informação inverídica e o que poderia estar por detrás dos mesmos dados.

É interessante, por exemplo, a articulação dos efeitos ocasionados tanto no Brasil quanto em Cabo Verde com a constituição da Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão. Muitas vezes não percebemos – ou nos esquecemos disso – de que a escravidão estava ligada à lógica mercantilista e, portanto, ao Pacto Colonial, de maneira que qualquer acção ocorrida numa das pontas (seja na África, na América ou na Europa) reflectiria consequentemente nas outras. A criação de uma Companhia de Comércio, ainda que dentro do contexto de despotismo esclarecido de Pombal, não transcendia a lógica do mercantilismo e, portanto, servia para o reforço do monopólio ou exclusivismo comercial que garantia a riqueza da metrópole em detrimento da exploração da colônia.

Nesse sentido, se percebe que Cabo Verde, por exemplo, estava mais ligada ao Brasil do que se enxergou até então. Como salientam os autores, as ilhas de Cabo Verde ficaram praticamente vinte anos sob o controle da Companhia de Comércio, modificando toda a dinâmica econômica, política e social do lugar.

Em outra parte do livro, os autores continuam a trazer à lume as relações entre as colônias, no caso a articulação entre o Brasil, Argentina e Cabo Verde na consolidação do misticismo religioso desenvolvido em torno da devoção a Nossa Senhora de Luján e a beatificação de Negrito Manuel, zelador da imagem mariana. Ocorre que, como explicam os autores, a imagem de Nossa Senhora de Luján, que se tornou padroeira da Argentina, foi encomendada no Brasil (talvez, venha daí a semelhança com a imagem de Nossa Senhora Aparecida) e que teve por cuidador Manuel Costa de Los Rios, conhecido por Negrito Manuel, escravizado que esteve em Cabo Verde, Brasil e Argentina.

A par das estratégias utilizadas por Negrito Manuel, para permanecer como zelador da imagem e garantindo, assim, condição melhor dentro do sistema de escravidão, ressalte-se o longo caminho percorrido por esse personagem em sua diáspora. Esse aspecto evidencia mais uma das violências da escravidão: a ausência da liberdade de escolha.

O texto ainda desvenda a história pouco divulgada do império Mali e do imperador Sundiata Keita, o Leão do Mali. Aqui eu reservo o direito de discordar da abordagem dada ao mito como oposto a “verdade”, no momento em que os autores dizem “é preciso esmiuçar um tanto mais esta estória para tentar segregar, dela, o que é verdade e o que é mito”. Isso porque aprendi com Joseph Campbell que “mitos são histórias de nossa busca da verdade, de sentido, de significação, através dos tempos” e que “são pistas para as potencialidades espirituais da vida humana”. Desse modo, entendo o mito como a linguagem metafórica de verdades indizíveis por outros meios. O mito é a poesia contando História.

Porém, de maneira alguma essa discordância macula a obra ou os achados dos autores. Passando pela história da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Cabo Verde e, depois, pela vida de Araminta Ross, o livro é coroado por um mosaico de peças que representam múltiplos aspectos decorrentes da diáspora africana.

Com isso, podemos perceber de maneira mais objetiva, o quanto a presença africana na América modificou os rumos e a História desse continente, mas, também influenciando Europa e África, uma vez que interligados estavam por um triângulo comercial, político e econômico.

O livro “Entre Lendas, Mitos e Verdades” de Ademir Barros dos Santos e Nuno Rebocho contribui sobremaneira para o entendimento dessas relações, auxiliando, também na compreensão da História lida a contrapelo. Nesses tempos em que vivemos, serve de importante contraponto ao negacionismo e ao revisionismo, o que, por isso, já cumpre um hercúleo trabalho.

 

Carlos Carvalho Cavalheiro