Carlos Carvalho Cavalheiro: 'Cururu: o canto do Médio Tietê' (parte 2)

Carlos Cavalheiro

Carlos Carvalho Cavalheiro: ‘Cururu: o canto do Médio Tietê’ (parte 2)

 

O desafio cantado do cururu ainda encanta, mesmo depois das profundas transformações pela qual passou. De manifestação intimamente ligada à religiosidade – com canto e dança – a espetáculo “profano”, o cururu ganhou as mais diversificadas formas de divulgação e, com isso, alcançou outros públicos.

Estações de rádio e canais de televisão passaram a veicularem programas dedicados ao cururu. O desafio foi gravado em discos (LP), em fitas K-7 e em CD. Hoje existem DVDs de desafios de cururu e, ainda, um considerável número de documentários e vídeos expostos em canais da internet como o Youtube. O cururu está também nas redes sociais, nos blogs, em revistas, em matérias veiculadas na televisão. A despeito de toda essa exposição, ainda existe a percepção de que o público cativo do cururu diminuiu nos últimos anos.

Em 2009 o Conservatório de Tatuí lançou o Torneio Estadual de Cururu, que reunia cantadores de todo o Médio Tietê numa disputa de 3 dias. Na maior parte das edições desse Torneio Porto Feliz foi defendida pela dupla Nardinho e Gilmar Ignácio. Em 2014, a cidade foi defendida por Cássio Carlota e Batistinha.

Parece que esse Torneio já não existe mais, sendo a última edição por volta de 2014 ou 2015. Seria importante se a Região Metropolitana de Sorocaba, nas ações conjuntas das secretarias de cultura, realizasse novamente um Torneio nesses moldes. Poderia haver competições por microrregiões que, ao final, definiriam quais seriam as melhores duplas para concorrer no grande torneio final. Além de incentivar o turismo, a geração de renda, ainda contribui para o processo de criação (e recriação) cultural, fortalecendo os laços de identidade de região do Médio Tietê e suas adjacências.

Ademais, o Torneio de Tatuí movimentava o comércio, a produção artesanal, gastronômica, cultural, enfim, auxiliava no desenvolvimento sócio-econômico e identitário.

O programa “Nossas Raízes”, apresentado por João Carlos Martinez pela TV Porto Feliz, apresentou em mais de uma oportunidade o cururu, entrevistando cantadores e violeiros. João Carlos Martinez tem seu nome ligado ao cururu, pois, como apaixonado que é por essa tradição, converteu-se num dos mais exaltados defensores e cultores do desafio. Além de programas de rádio e televisão, Martinez ainda se dedica a pesquisar e obter informações sobre o cururu. Também é apresentador de shows e divulgador da arte do cururu.

Este ano Martinez “batizou” um grupo de cantadores da cidade como “Cururueiros de Araritaguaba”. O grupo já existia, mas faltava um nome. A oportunidade veio com a participação na 2ª Feira da Cultura Caipira de Itu, realizada na Chácara do Rosário. Os “Cururueiros de Araritaguaba” são: Batista das Neves, Jairo das Neves e Cássio Carlota. Geralmente, Martinez faz a apresentação do desafio e uma explanação sobre as origens e histórias do cururu.

Cássio Carlota é um nome que tem chamado a atenção dos canturiões mais experientes. Jovem de seus vinte e poucos anos, Cássio já angariou para a sua biografia, enquanto cururueiro, participações com cantadores afamados. Nesta sexta-feira, dentro da programação da Semana do Folclore, realizada pela Diretoria de Cultura, Cássio Carlota fará uma homenagem à Porto Feliz cantando um cururu, com versos de improviso, na carreira do bandeirante (para quem leu a primeira parte deste texto, sabe que “carreira” é o nome que se dá, no cururu, à rima). Haverá ainda apresentação de catira, moda de viola e homenagem a um dos mais ilustres e conhecidos portofelicenses: Pedro Bento que cantava em dupla com Zé da Estrada, tendo uma carreira de mais de 50 anos como cantor sertanejo. Zé da Estrada faleceu em junho deste ano.

Cássio Carlota, João Carlos Martinez e outros difusores do cururu portofelicense estão citados em diversas reportagens e em trabalhos acadêmicos. A revista Globo Rural, edição eletrônica, publicou este ano uma extensa matéria feita por Vinicius Galera em que Porto Feliz é citada por intermédio de Cássio Carlota (http://revistagloborural.globo.com/Noticias/Cultura/noticia/2017/07/cururu-o-canto-tipico-que-resiste-no-interior-de-sp.html). Da mesma forma, a pesquisadora Elisângela de Jesus Santos, da UFSCar, publicou o artigo RELATOS DE EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA JUNTO A CURURUEIROS DO MÉDIO TIETÊ PAULISTA, em que cita tanto o Carlota quanto Martinez (http://www.semanasociais.ufscar.br/wp-content/uploads/2014/03/4.pdf).

Dessa forma, o cururu de Porto Feliz vai atravessando fronteiras.

 

 

Carlos Carvalho Cavalheiro

22.08.2017

 

 

 




Carlos Carvalho Cavalheiro: 'Cururu: o canto do Médio Tietê' (parte 1)

Carlos Cavalheiro

Carlos Carvalho Cavalheiro: ‘Cururu: o canto do Médio Tietê’ (parte 1)

 

O Rio Tietê possui uma característica interessante: na sua teimosia natural, em busca de notoriedade, ele corre para o interior – caminho longo e que atravessa quase que completamente o Estado de São Paulo – em vez de seguir o curso que seria natural, qual seja, o mar. No entanto, se tivesse buscado o litoral, seria um rio insignificante e não teria marcado a história paulista como a principal via que empurrou o homem ao sertão.

Mas as águas do Rio Tietê (conhecido também como Anhembi) não sulcaram somente terra. Elas produziram povoamentos e com isso auxiliaram na criação de uma cultura específica e, portanto, numa identidade cultural. O Rio foi dividido em partes: Alto, Médio e Baixo Tietê.

Das proximidades de Araçariguama até Barra Bonita, constitui-se, mais ou menos, a região do Médio Tietê que inclui, portanto, a cidade de Porto Feliz. Nessa região, algumas manifestações culturais são características como a Festa do Divino Espírito Santo (com os encontros de canoas, os pousos na zona rural, com os cânticos característicos…), o Batuque de Umbigada e o Cururu. Este último é o objeto da nossa atenção neste momento.

O cururu é um desafio cantado característico do Médio Tietê. Diferentemente dos outros estilos de desafios espalhados pelo Brasil – como a trova gaúcha, o desafio calangueado do Espírito Santo e o repente nordestino – o cururu se estrutura da seguinte forma: 1) o cantador (aquele que faz os versos improvisados) não é o mesmo que toca a viola. Ou seja, cantador e violeiro são pessoas distintas, embora ajam com comunhão; 2) um primeiro cantador desenvolve sua narrativa em versos durante um considerável tempo (podendo variar, mas que geralmente é algo em torno de 15 a 30 minutos). Somente depois é que o oponente tem seu turno para resposta; 3) as toadas de viola são variadas e com significativa multiplicidade de tipos que auxiliam no andamento da cantoria; 4) os versos de todo o canto devem possuir uma só rima, chamada de carreira. Se a rima das palavras for “ao”, diz-se que o cantador está se utilizando da carreira de “São João”. Se o término das palavras for em “ino” (corruptela do dialeto caipira para “indo”), então, a carreira será do “Divino” e assim por diante.

O cururu nasceu dentro da religiosidade que se formava no início do povoamento paulista, segundo acredita um dos maiores pesquisadores do assunto, o maestro Eduardo Alberto Escalante, cuja dissertação de Mestrado – “A música no cururu do Médio Tietê paulista” – tornou-se uma referência. A partir dos anos 1910, o cururu deixou de figurar exclusivamente nos pousos do Divino e passou a ser incorporado como espetáculo em rádios, teatros e, posteriormente, discos por obra do tieteense Cornélio Pires.

Piracicaba e Sorocaba tiveram cantadores que se evidenciaram na arte do desafio de cururu. Quando se tornou espetáculo, esse desafio começou a aparecer em praças, em clubes, em comícios políticos e também em outras festas que não a do Divino. Em Porto Feliz, por exemplo, há notícia da ocorrência de desafio de cururu na Festa de São Benedito, com a presença dos afamados João Davi, Sebastião Roque, Pedro Chiquito e Zico Moreira. De acordo com a reportagem da época, os quatro cantadores ocuparam o Largo da Igreja de São Benedito e foram assistidos por um público estimado em 3 mil pessoas (um número bastante elevado de assistentes).

Nessa época, os desafios de cururu lotavam os lugares onde eram realizados. Uma curiosidade: o cururu ao se “profanar”, ou seja, ao se afastar do aspecto especificamente religioso, tornou-se um “produto” cultural, cujo cachê era estimado de acordo com a fama do cantador. No caso acima, os quatro eram bem conhecidos como cururueiros.

Em sua origem religiosa, o cururu era dançado. A dança, de acordo com alguns depoimentos, realizava-se de forma simples, em roda e girando o corpo sobre o próprio eixo. Parece que no Mato Grosso ainda se preserva algo dessa dança, já que lá existe também o cururu (um pouco distinto da forma paulista), cantado ao som de violas de cocho.

A apreciação do cururu pelos portofelicenses fez surgir na cidade alguns cantadores e violeiros que tiveram seu nome. Alguns deles estão citados no livro “Cururu – Retratos de uma tradição”, de Aparecido Garuti, o famoso cururueiro Cido Garoto, residente em Sorocaba, e que lançou a sua obra em 2003. Dentre os nomes de portofelicenses que aparecem nesse livro estão João Carlota (João Batista Rodrigues), Evaristo Checa, Benedito Medeiros, Mizael de Medeiros (Medeirinho), Wagner Xavier da Silva (violeiro), João Batista das Neves Filho (Batistinha), Geraldo Cristo, Natálio Vivaldo das Neves (Jairo das Neves), Antonio José Tomé (Zé Tomé), Antonio Aparecido da Cunha (Toninho Cunha), Aristides Marciano (Tide Marciano), Santo de Souza (Santo), José das Neves, Roque Antunes de Campos (Roque do Reco-reco); este último, como diz a alcunha, tocador de reco-reco, um dos instrumentos que podem acompanhar o cururu. É comum encontrar, também, violão e pandeiro, além da já citada viola.

Por intermédio de apoio cultural do PROAC (Programa de Ação Cultural da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo), o Grupo de Cururueiros de Sorocaba, do qual faz parte o Cido Garoto, promoveu o projeto “Cururu no coreto”, com apresentações gratuitas em coretos de diversas cidades, incluindo Porto Feliz, que recebeu a caravana em 27 de maio de 2017.

 

(Continua)          Carlos Carvalho Cavalheiro (16.08.2017)