Gabriela Lopes: 'A diferença não tem face'
A diferença não tem face
Dentro do ônibus, o rapazinho Valentim resolveu puxar assunto com Beatriz… Pena que foi em uma situação tão adversa, no final da tarde de sexta-feira, trânsito caótico da capital, ônibus lotado e muitas pessoas cansadas. O jovem perguntava onde ela morava, quantos anos tinha e qual era o telefone de contato. Tão invasivas eram as perguntas quanto sua ânsia de viver. Beatriz, já cansada em função da rotina, sequer observou no rosto do jovem e, por isso, não notou que ele possuía síndrome de Down. Tinha respondido de forma apática que desejava ficar quieta naquele momento. Talvez reagisse diferente se houvesse olhado para ele com mais calma.
E Valentim assim seguiu ao longo do trajeto até descer. Ele perguntava para um, perguntava para outro e todos incomodados ficavam. Aflitos, desconcertados, alguns com olhares de receio, buscando artificialmente tratá-lo.
Naquele dia, após chegar a casa, Beatriz pensava que as pessoas não sabem lidar com algo diferente do esperado.
Iniciada nova semana, no mesmo ônibus, na segunda-feira, lá estava Valentim, perguntando as mesmas coisas aos passageiros. Dessa vez, Beatriz notou o porquê das perguntas específicas; ele, logo em seguida, respondia onde era o próprio endereço, qual era o seu telefone e quantos anos tinha. Se acaso ele se perdesse, aquele estranho poderia ajudá-lo a ir para casa. O desconforto maior das pessoas era o de serem incomodadas, mas algo interessante desponta dessa situação. Afinal, o que incomodava tanto? Responder às perguntas ou tentar recepcionar o outro que não se encaixa no seu padrão de interações humanas? Seja quem for esse outro e a sua singularidade.
Valentim fez amigos e, mais uma vez, seguiu até o ponto final.
Aprender sobre as situações que nos desconcertam diz muito sobre nós. Ocasionalmente, talvez possamos dialogar com um Valentim, para ver que ele é mais coerente, livre e ‘normal’ que muitos.
Em várias situações, ajustar a vida dentro da ‘caixa’ é a opção escolhida. Perde-se a chance de olhar no ‘rosto’ do outro e ver que a face com alguma síndrome talvez seja a sua.
Conto presente no livro: Primeiros Contos publicado em 2019.
Gabriela Lopes
gabils3377@gmail.com