O leitor participa: Renata Rodrigues, de Sorocaba, nesta 9ª colaboração da série 'Dizia minha tia…', presta uma homenagem póstuma à Tia Nena, falecida no dia 31 de outubro

 Da esquerda para a direita, Renata Rodrigues e Tia Nena

“Todas as imagens dela que me vem à lembrança agora são sorridentes e leves. Ela tinha uma personalidade forte, mas a moldou para o bem da vida. Dizia que tinha uma alma a prestar contas e que cuidava muito de entregá-la de volta da melhor maneira que pudesse. E o fez!”

 

Dizia minha tia quando contava sobre pessoas de espírito pequeno: “deixa pra lá, eles passarão e eu passarinho”.

Com quase toda certeza ela não sabia que o trecho do poema que citava era do poeta gaúcho Mário Quintana, mas sabia com precisão que dessa vida nada se leva, além do bem que fazemos aos outros.

Era a filha mais velha de quatro irmãos. Ela, meu pai e meus tios perderam o pai muito novos, devido a uma apendicite.

Sempre que penso em todos eles penso na dor velada de todos aqueles que ficam órfãos muito cedo e da viuvez precoce da minha avó,  que já vinha de uma infância árdua e foi uma mulher de fibra e o alicerce deles.

Essa simples ciência de suas realidades me faz entender todas as facetas de suas vidas e ter compaixão de suas falhas humanas.

Nos fragmentos de suas histórias sempre vi algo mais forte que todas as dificuldades: o amor verdadeiro entre eles! Um amor não muito expressivo como os da época, mas de uma verdade ímpar.

Mais tarde, pelo coração de minha avó, vieram mais dois ao círculo de irmãos que ela tanto amava como a guardiã do bem-estar de todos.

Ela se casou, teve uma filha, ficou viúva, ganhou um genro e duas netas, que se tornaram mel em sua boca. Perdeu a mãe quando já era avó, mas sua família sempre fomos todos nós.

Ela tinha um amor declarado por todos seus parentes. Falava  de seus tios e tias, de seus primos e primas, de seus irmãos e suas famílias como sendo a dela também.

Seus sobrinhos completavam seu tesouro. Uma prima me disse que ela a chamava de linda e emendava com seu jeito festeiro: “não tem ninguém feio na minha família!”

Ela morreu agora, 31 de outubro, no dia do aniversário de sua mãe.

Em seu velório, pude confirmar como era amada e como muitas pessoas eram gratas a ela.

Ela tinha um dom de caridade e amor honesto, fosse no sentido material, fosse no espiritual. Mesmo nos últimos anos, quando lhe faltou a memória, sempre que você a encontrava ela tinha palavras doces e perguntava se você estava bem.

A última vez que a vi ela elogiou meu cabelo e, quando a beijei e disse que a amava, ela respondeu: “Eu também. E muito!”.

Todas as imagens dela que me vem à lembrança agora são sorridentes e leves. Ela tinha uma personalidade forte, mas a moldou para o bem da vida. Dizia que tinha uma alma a prestar contas e que cuidava muito de entregá-la de volta da melhor maneira que pudesse. E o fez!

Ela foi única e preservou seu ar de criança travessa e adorável até o final.

Contava que sua mãe passava horas trançando seu cabelo para ir à escola sob ameaças caso não se comportasse bem.

Quando saía para a aula e já estava numa distância segura, soltava as tranças e gritava para a mãe ver sua travessura indo correndo e rindo pra escola.

Assim a vejo indo para o céu: menina, correndo feliz de cabelos soltos ao encontro dos seus queridos!




O leitor participa: Renata Rodrigues nos apresenta sua tia Nena em: 'Dizia minha tia…' 6

 Tia Nena

O leitor participa:

Renata Rodrigues nos apresenta sua tia Nena em: ‘DIZIA MINHA TIA…’ 6

 

Dizia minha tia antes nos contar um fato: “Devia ter costurado a língua dentro da boca”.  Já sabíamos que ela tinha dado algum fora e, conhecendo a protagonista, nos preparávamos para algo majestoso. Mas, antes mesmo de narrar o ocorrido, emendava um: “Não tenho culpa se…”

Um dos fatos memoráveis em que ela se meteu aconteceu mais ou menos assim: minha avó adoeceu e ela foi cuidar da mãe por um tempo ficando fora da rotina do bairro.

Um dia, voltando a pé da casa da filha com sua fiel companheira, a sombrinha,  encontrou uma vizinha varrendo a calçada melancolicamente. Assim que passou por ela, ao cumprimentá-la logo perguntou:

─ Por que essa carinha triste?  Para ela não havia espaço para tristeza e levantar o astral do outro era sua especialidade.

A fulana respondeu:

─ Você não soube?

E ela, mais do que curiosa:

─ Não, o quê? Tive esses tempos cuidando da minha mãe e não soube de nada!

E a vizinha, dolorida, lhe contou:

─ Fulano se foi!

Fulano era seu esposo e figura conhecida de todos no bairro. Mais pela amante que tinha há anos que por si mesmo.

No mesmo instante, num gesto que imitava sem perceber ao nos contar o causo, pôs as duas mãos na cintura e soltou:

─ Não acredito que ele foi morar com Cicrana! Que cafajeste! Eu nunca acreditei que ele ia deixar você de verdade por ela! Safado sem vergonha!

A expressão da vizinha se confundiu, como um céu formando nuvens de chuva, e disse:

─ Não, Nena, ele morreu… ─ Ele tinha um caso com Cicrana? Meu Deus! Esses anos todos e eu nunca soube de nada !

Ela nos falava que, naquele momento, teve vontade de se evaporar e deixar as roupas caídas no chão em frente à vizinha, que rezou para que a Terra se abrisse e a engolisse  de uma só vez.

Assim que a viúva derrubou a vassoura para começar a chorar, ela se  apressou em  remendar:

─ Ai, que tonta que eu sou! Não era ele nada! Me confundi! Cuidar da minha mãe me deixou meio lelé. Pensei que você estava falando daquele outro que mora naquela outra rua, casado com aquela outra pobre coitada!

Rapidamente pegou a vassoura ao chão e juntou as mãos da fulana ao seu cabo, dizendo:

─ Sinto muito pela sua perda, mas Deus dá consolo a todas nós, viúvas, você vai ver. E não pare de varrer a calçada, porque vai chover e as folhas entopem os bueiros e causam enchentes. Bom dia! Vou rezar por você e pela alma do fulano !

E antes mesmo de a vizinha responder, já tinha dobrado a esquina com suas perninhas curtas, mas ligeiras como sua língua!

A gente ria e ela dizia:

─ Não é coisa de rir! É coisa de chorar! Bendita língua a minha!

E nós fazíamos a brecha:

─ Mas tia, não foi culpa sua…

E ela aproveitava profundamente o gancho e completava:

─ Não foi mesmo! Quem mandou ele morrer e deixar duas viúvas?! Eu é que não dormi com nenhuma das duas e tô aqui vivinha da Silva pra morrer de vergonha!

Essa era dona Nena, e, apesar de costureira, não aprendia e a língua continuava solta e ligeira  a causar novas confusões que, depois, nos faziam morrer de rir.




O leitor participa: Renata Rodrigues nos apresenta sua tia Nena em: ‘Dizia minha tia…’ 4

Tia Nena

O leitor participa:

Renata Rodrigues nos apresenta sua tia Nena em: ‘Dizia minha tia…’ 4

 

Dizia minha tia em sua língua materna: “El collar saliu más caro que el perro” (A coleira saiu mais cara que o cachorro) quando queria contar que algo foi  além do necessário.

Neste mundo de correrias, travei bons diálogos com meu filho enquanto eu dirigia e ele no banco de trás observava o mundo. Num desses sublimes momentos, aos seis anos, com toda doçura infantil de aprender a vida, me perguntou: “Mãe, o que é jovem?”

Digamos que, como mãe, eu sou intensa (para não dizer exagerada) e vi ali uma grata oportunidade de perpetuar o que aprendi num longo e árduo caminho trilhado por anos. E assim, comecei meu caloroso discurso sobre a fase da vida onde não somos mais criança e, tampouco, adulto, quando fazemos nossas principais (nem sempre as melhores) escolhas, como profissão, amor e amigos, quando temos energia e alegria e somos intensos em nossas atitudes e emoções. Ser jovem é ter 18anos e poder dirigir um carro, apesar de ainda não saber dirigir a vida, mas pensar que pode mudar o rumo do mundo.

Durante todo o trajeto, elucubrei sobre as infinitas possibilidades que temos quando somos jovens e como o mundo nos aplaude em pé ao realizarmos apenas as obrigatórias.

Orgulhosa da minha transfusão de sabedoria, terminei a fala quando estacionei em nossa garagem. Depois de alguns segundos de um silêncio contemplativo, ele respondeu com um fatal e frio: “Tá bom!”.

Inconformada com a conformidade do meu pequeno  discípulo, depois de uma resposta tão rica e saborosa perguntei: “Mas, por que você queria saber o que era jovem?”

E ele me responde em conhecida entonação: “É que eu ouvi no rádio do vô: JOVEM PAN!”

E em minha mente surgiu a imagem de um pulguento vira-lata com uma coleira de brilhantes…