Amar o próximo, talvez respeitá-lo…

Elaine dos Santos

Crônica ‘Amar o próximo, talvez respeitá-lo…’

Elaine dos Santos
Elaine dos Santos
"Paris dos becos, das vielas, em que se mesclavam a pobreza extrema e a aristocracia"
“Paris dos becos, das vielas, em que se mesclavam a pobreza extrema e a aristocracia”
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Quando Napoleão III e Georges-Eugène Haussmann resolveram ‘limpar’/higienizar Paris, fazendo-a a Cidade Luz que é hoje, entre os anos de 1853 e 1870, veio abaixo a Paris dos becos, das vielas, em que se mesclavam a pobreza extrema e a aristocracia.

Naquele momento, os dois “demolidores” da velha cidade pensavam que era preciso retirar os pobres do núcleo central, conduzindo-os a morar a quilômetros de distância dos ricos, evitar levantes populares, assim como conter a disseminação de doenças (era muita sujeira, de fato, entre pobres e entre ricos).

Em 1857, um poeta expressou o mal-estar que tudo isso causava. Charles Baudelaire, que se tornou um dos grandes ícones da literatura mundial. Um dos seus poemas em prosa, “Os olhos dos pobres“, define um pouco do que se vê por aqui ainda hoje.

Temos visto inúmeras cenas em que pessoas – que se acham – ricas demonstrarem asco, nojo e expressarem violência contra os pobres.

Em “Os olhos dos pobres”, Baudelaire trata dessa suposta superioridade que alguns mais abastados financeiramente acreditam ter: um jovem casal transita pela Paris em reformas e mostra-se encantado.

Eis que eles resolvem adentrar em um café, em que se destacam sinais de reforma, mas que já apresenta traços de modernidade – é um local, pois, em transição. O casal senta-se em um espaço que dá acesso ou que permite ver a rua.

Surgem, então, um homem na faixa dos 40 anos, que traz um menino pela mão e carrega outro pelo braço. Todos em farrapos. Eram seis olhos que contemplavam a grandiosidade do café, o que incomoda seriamente a jovem.

Tem-se então a voz do homem apaixonado (o eu lírico do poema): “Dizem os cancionistas que o prazer torna a alma boa e amolece o coração. Não somente essa família de olhos me enternecia, mas ainda me sentia um tanto envergonhado de nossas garrafas e copos, maiores que nossa sede.”

Ele prossegue os seus versos: “Voltei os olhos para os seus, querido amor, para ler neles meu pensamento; mergulhava em seus olhos tão belos e tão estranhamente doces, nos seus olhos verdes habitados pelo Capricho e inspirados pela Lua, quando você me disse: ‘Essa gente é insuportável, com seus olhos abertos como portas de cocheira! Não poderia pedir ao maître para os tirar daqui?’

Como é difícil nos entendermos, querido anjo, e o quanto o pensamento é incomunicável, mesmo entre pessoas que se amam!”

Ao iniciar o poema, o eu lírico já havia avisado que passara a odiar aquela mulher “impermeável” à dor do outro.

Gente insensível, gente omissa, gente sem noção sempre existiu. De tempos em tempos, eles apenas tomam coragem e erguem a voz.

Algumas pessoas, no Natal, distribuem presentes, brinquedos, alimentos para saciar a consciência e seguem as suas vidas.

Algumas pessoas esquecem que pessoas humildes, pessoas solitárias também sentem fome, medo, solidão, tristeza, saudade e ignoram-nas não apenas nas festas do final de ano, mas o fazem durante todo o ano.

O período que se seguiu às principais publicações de Baudelaire foi marcado por grandes evoluções tecnológicas, mas pouca valorização humana, tanto que, na Europa, emerge o chamado Decadentismo, um desconforto literário diante do descompasso entre o progresso econômico e a pobreza das gentes.

Pensei nisso porque, na véspera de Natal, houve um afogamento numa prainha na minha cidade. O rapaz, 19 anos, era arrimo de família. As buscas somente alcançaram êxito na manhã do dia 26 de dezembro, ou seja, o dia de Natal foi marcado pela angústia da família e pela animação na prainha.

Meu sincero desejo que 2024 nos encontre mais permeável aos sentimentos do outro, tanto aquele que nos é caro, como nossos familiares, com o estranho, que tem família, que tem pessoas que lhe amam.

Elaine dos Santos

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Autores fantásticos, leituras exigentes

Elaine dos Santos:

Artigo ‘Autores fantásticos, leituras exigentes’

Elaine dos Santos
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Grande sertão: veredas
Grande sertão: veredas
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Quando trabalhava com turmas de ensino médio – exonerei-me da escola pública em 2009 -, os meses de outubro e novembro eram destinados a abordar três ‘monstros sagrados’ da Literatura brasileira: João Cabral de Melo Neto, Guimarães Rosa e Clarice Lispector.

Dispunha para tais atividades de 16 ou 18 horas-aulas, de modo que o tempo precisava ser ‘milimetricamente organizado para que houvesse uma abordagem racional das obras mais significativas ou em voga.

Principiava com um trecho do seriado Morte e vida severina, de João Cabral, para que houvesse a contextualização: o território da seca e a dificuldade de sobrevivência naquele ambiente.

Analisava trechos do poema. Eu estava diante de alunos entre 16, 17, no máximo, 18 anos e refletir sobre “É de bom tamanho./ Nem largo nem fundo./ É a parte que te cabe./ Deste latifúndio./ Não é cova grande./ E cova medida./ E a terra que querias”, no trecho que apresenta o funeral do lavrador, costumava ser um exercício dolorido sobre posse da terra em um estado da federação em que as campinas verdejantes dão exatamente a sensação de propriedade, liberdade, amplidão.

Alguns alunos – raros, é bem verdade – faziam uma analogia, neste caso, com os escravos de ‘O navio negreiro‘, poema de Castro Alves: a opressão, a miséria física, a desesperança, como se fosse uma linha de continuidade que nos acompanha no tempo, na História, na sociedade.

De Guimarães Rosa, os alunos tinham uma experiência prévia com Contos gauchescos, de Simões Lopes Neto. Refiro-me à linguagem regionalista que marca a produção dos dois autores – ainda que Simões Lopes Neto seja gaúcho, os jovens já não dominam o vocabulário do homem rural.

Não havia possibilidade de analisar Grande sertão: veredas, por isso, trabalhava, em geral, dois contos, buscando características, ambientação, vocabulário. Evidentemente, que referia as obras romanescas, um autor da magnitude de Guimarães Rosa é ‘marcado’ por seus textos mais famosos.

E, finalmente, havia Clarice Lispector e sua introspecção.

Ela nasceu Chaya Pinkhasivna Lispector em 10 de dezembro de 1920 na Ucrânia e morreu Clarice Lispector em 09 de dezembro de 1977.

Naquele início do século XXI, a leitura exigida pelas universidades da região era A hora da estrela, a história da Macabea e a sua epifania à beira da morte. Analisava a obra, mas antes contextualizava uma parte da biografia da autora.

Como esposa do diplomata Maury Gurgel Valente, ela foi cidadã do mundo, colhendo experiência em outras culturas. O filho Pedro nasceu em Berna, na Suíça; o filho Paulo veio ao mundo em Washington D.C., Estados Unidos. Pedro era esquizofrênico, o que lhe exigiu muita atenção.

Bem antes do nascimento dos filhos, lançou um dos livros que mais furor causou na Literatura brasileira pela temática, pela forma de escrita foi Perto do coração selvagem, em 1942.

A crítica teceu inúmeros elogios comparando-o a escritores como James Joyce, Marcel Proust e Virgínia Woolf, o que teria irritado a autora, que afirmaria à época não ter lido os supostos influenciadores de sua obra.

Macabea era o fechamento das aulas naqueles já quentes dias do mês de novembro. Muitos alunos comparavam-na a Fabiano do romance Vidas secas, de Graciliano Ramos. Dois infelizes.

Sob certo aspecto, essas comparações faziam-me satisfeita, estavam sendo estabelecidas interrelações entre o conhecimento adquirido e o novo saber, as novas informações. Também era frequente que eles afirmassem que Clarice Lispector e Machado de Assis, particularmente em Dom Casmurro, ‘dessem um nó’ ao longo de seus romances, exigindo concentração.

Para um professor de ensino médio, eu costumava dizer: se o aluno leu a obra, compete-me fazê-lo entender. Se ele não entendeu, cabe-me fazê-lo interessar-se por ela. Cidadãos críticos são formados justamente pela capacidade de estabelecer relações entre o que é lido, o que verificam na realidade e pelo ‘nó’ que lhes confere a realidade em que vivem: a indagação.

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‘Aparição’, uma reflexão sobre a vida em nossos dias

Elaine dos Santos:
Crônica: ‘Aparição’, uma reflexão sobre a vida em nossos dias

Elaine dos Santos
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"Quantas incompreensões que somente são aprendidas e compreendidas com a maturidade, arte digital"
“Quantas incompreensões que somente são aprendidas e compreendidas com a maturidade”
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Existem algumas obras literárias que marcam a nossa experiência como leitores. Ainda durante a graduação, por conta e risco da professora de Literatura Portuguesa, eu li o romance ‘Aparição‘, do escritor português Vergílio Ferreira. Confesso que, naquele semestre, eu estava cursando quatro disciplinas de Literatura, o que determinava a leitura de, no mínimo, uns 20 romances e uma infinidade de contos, assim sendo, institui um caderno de resumos: autor, obra, personagens, tempo, espaço, resumo do enredo.

Mas ‘Aparição’ me derrubou. Situado no período que se chama Neorrealismo português, o romance foi publicado, pela primeira vez, em 1959 e traz, evidentemente, a crítica social que caracteriza aquele período literário. No entanto, é a história de um filho que volta às terras paternas após a morte justamente do seu pai – o que seria um acerto de contas, por questões de herança, mas acaba se tornando um acerto de contas com o próprio passado.

Dias atrás, li, em um site qualquer, a história de um menino equatoriano que foi até o cemitério, junto ao túmulo da mãe e ‘mostrou-lhe’ as notas obtidas na escola. Depois, deitou-se ao lado, como se buscasse um afago.

As duas ideias juntas despertaram uma reflexão: temos vivido tempos de morte, mortes físicas – e o meu Rio Grande do Sul tem presenciado tragédias inimagináveis: ventos, raios, enchentes, sem contar que as lavouras de arroz ainda não foram plantadas -, mas também mortes simbólicas. Quantas supostas amizades foram desfeitas nos últimos anos? Quantos irmãos, filhos do mesmo pai e da mesma mãe, deixaram de se falar, não conseguem estabelecer um diálogo? Quanta indiferença entre pessoas que conviveram uma vida inteira!

Sou filha de um pai extremamente bem-humorado e, ao seu bom humor, uni a ironia de Machado de Assis e tantos outros literatos que acrescentei às minhas leituras como professora de Literatura. Não se pode mais ser irônico na atualidade, as palavras, as frases, as expressões precisam ser ditas/escritas em seu sentido denotativo, assim como estão no dicionário, para que sejam compreendidas e não gerem dúvida, mal-entendidos e causem desgastes desnecessários.

Qual a relação com o menino equatoriano? Tenho a percepção cotidiana que se banalizou a morte e que todos devem estar ‘plenamente recuperados’ logo após o sepultamento de um ente querido. Saudade? Passa! Luto? Passa! Não passam e os consultórios de psicólogos e psiquiatras estão lotados de pessoas que tentam refrear sentimentos para “acomodarem-se” a uma sociedade da ‘felicidade tóxica’, do viver o hoje sem consequências.

Neste aspecto, insere-se Alberto, o protagonista de ‘Aparição’. Quantas palavras silenciadas, quantos abraços não dados ficam pelo caminho. Quantas birras, quantas teimosias impedem o diálogo. Quantas incompreensões que somente são aprendidas e compreendidas com a maturidade. O homem Alberto não é mais o menino ou o jovem Alberto, mas um homem que enfrentou dissabores, vicissitudes e colheu sofrimentos, porém também conheceu o prazer das alegrias.

O que ficará depois de nós e dessa ‘imperiosa necessidade’ de mostrar alegria para gerar ‘likes’? Quantas crianças estão ficando pelo caminho sem pai e/ou sem mãe, em que medida o sofrimento delas nos afeta? Quanto tempo temos dedicado para ouvir o outro, para saber sobre as dores do outro, quanto tempo temos negado ao outro, determinando que ele “se encontre por si próprio” ou recorra a terapias, psicoterapias? Ou simplesmente chore? Ou…

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Redação ENEM/2023: quando os olhos brilham e o coração aquece

Elaine dos Santos: Artigo ‘Redação ENEM/2023:
quando os olhos brilham e o coração aquece’

Elaine dos Santos
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Não me detenho em aspectos formais referentes à proposta de redação do Exame Nacional de Ensino Médio (ENEM) aplicada no domingo, 05 de novembro, quero, aqui, refletir sobre a importância da temática – ainda que ela não fosse esperada.

Somos uma sociedade conservadora, patriarcal, em que diferentes ‘ismos’, isto é, dogmas e doutrinas, oprimem a mulher em sociedade e isso é uma herança da colonização portuguesa que se consolidou no Brasil Império, no Brasil República e, mesmo no século XX (20), com a inserção cada vez maior no mercado de trabalho, não sofreu alterações.

O tema da redação foi os desafios para enfrentar a invisibilidade do trabalho de cuidado das mulheres no Brasil e qualquer pessoa, minimamente, atenta percebe que a carga extra atribuída à mulher em nossa sociedade sempre foi e é maior que do homem. A mulher – de um modo geral, há exceções para confirmar a regra – é responsável pelos cuidados no lar: roupa, alimentação, higiene, filhos.

Começo, pois, pelos filhos. Como professora que exerceu a docência também no ensino médio, acompanhei e acompanho ex-alunas tornarem-se mães e enfrentar a dor e a delícia dos primeiros anos de maternidade, frequentemente, exercida solitariamente. Nasce um filho e nasce uma mãe, mas a vida do pai pouco se altera. Há a tradicional desculpa que ele precisa descansar porque é o provedor do lar. Sim, claro! A mãe nunca trabalhou, não precisa retomar as suas atividades.

Na outra ponta, está situado o cuidado com pessoas idosas ou doentes. Quando o meu pai teve o seu quinto AVC (acidente vascular cerebral), em abril de 2007, algumas pessoas gritaram nos meus ouvidos que eu deveria colocá-lo em um asilo, porque ele passaria a atrapalhar a minha vida profissional. Eu disse que não o faria e que cuidaria dele, nem que fosse sozinha. E, de fato, o fiz: sozinha. Todos se afastaram, ninguém quer ter, por perto, um idoso confuso, ninguém quer ter, por perto, um idoso e a responsabilidade acaba recaindo sobre esposas, filhas ou netas, portanto, mulheres.

Quantas conhecidas nossas renunciam ao trabalho ou mesmo da vida pessoal para cuidarem de irmãos/irmãs com algum tipo de deficiência, enquanto irmãos e irmãs da mesma pessoa ignoram a situação?

Poderia ainda enfocar as professoras que acolhem crianças, em muitos casos, vítimas de violência intrafamiliar, ou técnicas de enfermagem e enfermeiras que são o último elo entre um paciente terminal e a vida. Mas me detenho aqui.

Pode ser que muitos participantes da prova tenham tido dificuldade para elaborar um texto sobre o tema – eles são, em sua maioria, adolescentes recém egressos do ensino médio, talvez sem a capacidade reflexiva que a vida nos confere, mas espero que o material motivador que acompanha a prova possa tê-los inspirado.

Se afirmo que os olhos brilharam e o coração aqueceu-se ao tomar conhecimento do tema da redação do ENEM, na verdade, a minha reflexão segue outra via: traz-se uma questão social relevante para a cena, pelo menos, por uma semana, ela será discutida. Tomara que enseje mais discussões e ações.

Além disso, uma sociedade muda pelas ações de seus membros, entre eles, o poder público, almejo que haja políticas públicas de valorização do trabalho da mulher. Sem entrar na seara econômica e de valorização do trabalho da mulher, é sabido que a disparidade salarial entre homens e mulheres é vexatória.

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Ler liberta (faz pensar!)

Elaine dos Santos: Artigo ‘Ler liberta (faz pensar!)’

Elaine dos Santos
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Traço reflexões sobre amor, fidelidade, infidelidade, felicidade e perenidade amorosa, tomo, como mote, alguns textos literários e parto do pressuposto que a leitura pode nos desenraizar de conceitos conservadores, que partem de um a priori que não pertencem ao nosso tempo, à sociedade que vivemos.

Atenho-me, claro, à minha área de formação – Letras – para refletir sobre um tema que, quase sempre, volta à tona nas discussões sociais e que emergiu entre amigos por conta do aniversário de Vinícius de Moraes

No conhecido ‘Soneto de Fidelidade’ , há dois versos repetidos à exaustão por quem gosta de poesia, refiro-me a ‘Que não seja imortal, posto que é chama / Mas que seja infinito enquanto dure’.

O poeta (ou seu eu lírico) parte de um pressuposto que a nossa sociedade tem dificuldade para enfrentar desde que o Romantismo inventou o célebre final em seus romances ‘Casaram-se e foram felizes para sempre’. Então, nem sempre o amor permanece?

De imediato, questionamo-nos sobre os pares fidelidade x infidelidade; amor finito, amor infinito.

Arnold Hauser , em seu livro História Social da Arte da Cultura , recompõe os passos da sociedade humana, lembra que, em determinado momento, as sociedades foram matriarcais, porque se acreditava que a gravidez fosse uma conjunção entre a mulher e os deuses. Não era. Haveria ali um primeiro indicativo que o adultério era possível? Eu posso “dourar” a ideia: haveria ali um primeiro indicativo que a traição amorosa era possível?

Em Medeia , tragédia grega escrita por Eurípedes , temos a história de Medeia e Jasão, ele, depois de terem tido filhos, repudia a mulher e decide casar-se com Glauce, filha de Creonte, rei de Corinto. O plano de Jasão não nos é estranho: seria o marido de Glauce e manteria Medeia como amante. Medeia rebela-se, envenena as vestes de Glauce, mata os filhos que tinha com Jasão, com vistas a provocar-lhe dor, sofrimento.

O Realismo francês brinda-nos com um caso de infidelidade que se tornou famoso: Emma Bovary. Trata-se da mulher que trai, que sente necessidade quase orgânica de ser infiel ao marido, que tudo faz para administrar os dissabores que a situação provoca. Madame Bovary, de Gustave Flaubert , fez suas descendentes na literatura ocidental.

A portuguesa Luisa, de O primo Basílio , de Eça de Queirós , é outro caso de infidelidade matrimonial. Caracterizada como uma clássica heroína romântica, frívola e tola, ela entrega-se ao primo, recém-chegado do Brasil, enquanto o marido, Jorge, estava fora da cidade. O caso amoroso é descoberto pela serviçal, Juliana, que a chantageia. Na conservadora sociedade portuguesa, o crime de Luísa – o adultério – é punido com a sua morte.

O amor geraria, assim, o compromisso da união oficial diante da sociedade, mas não representaria uma efetiva “união de almas” que se (re) encontram e são felizes para sempre? Vinícius – o eu lírico – parece crer que o amor pode ser finito. Pelo sim, pelo não, costumava dizer aos meus alunos: “Nem tanto ao céu, nem tanto a terra”. Emoção e racionalidade andam lado a lado, convém saber mediá-las.

Não podemos garantir que “devorar” livros, sem reflexão, possa gerar mudança de comportamento, alterações na compreensão que temos da sociedade e das relações humanas, mas nos fará menos dogmáticos, admitindo que, como humanos que somos, tudo é imperfeito.

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Professora Elaine dos Santos é a mais nova integrante da Equipe IJ de Jornalismo!

Elaine dos Santos, também colunista do Jornal ROL, abrilhantará ainda mais o Internet Jornal

Elaine dos Santos
Elaine dos Santos

Natural de Restinga Seca/RS. Filha de Mario Cardoso dos Santos e Vilda Kilian dos Santos (in memoriam). Licenciada em Letras, Mestre e Doutora em Estudos Literários pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

Tem formação em espanhol pela Universidad de La Republica, Montevidéu. É revisora de textos acadêmicos, articulista, cronista e antologista.

Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/9417981169683930

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Dicas de língua portuguesa em:
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Professora Elaine dos Santos
Doutora em Letras/UFSM
Revisora de textos acadêmicos
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Tempo de lutas, de conquistas e de mortes

Elaine dos Santos: Artigo ‘Tempo de lutas, de conquistas e de mortes’

Elaine dos Santos
Elaine dos Santos
Ruínas de São Miguel. Criador: Picassa. Flórida: Wikimedia Fundation, 2023. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Ru%C3%ADnas_de_S%C3%A3o_Miguel_-St._Michael_of_the_MissionsRio_Grande_do_Sul-_Brazil_01.jpg. Acesso em: 20.09.2023

Era Finados novamente e a família de Pedro Terra estava no pequeno cemitério de Santa Fé para honrar os seus mortos. Agachada, Bibiana acendia velas. De repente, como um gavião, Rodrigo Cambará circundou-a; ainda que o fizesse pelo lado de fora do ‘campo santo’, ambos podiam enxergar-se por completo. A moça encabulou, ele deliciou-se.

Bibiana era filha de Pedro e Arminda Terra. Bibiana era neta de Ana Terra e Pedro Missioneiro. Bibiana trazia o sangue dos tropeiros paulistas, do bisavô, pai de Ana, o velho Maneco Terra, mas trazia também o sangue guarani, o sangue dos Sete Povos das Missões, que lhe legara o avô, Pedro Missioneiro, ‘el hijo de la Vírgen’.

Rodrigo vinha de outras guerras e, como todo o gaúcho daqueles tempos, trazia um dólmã militar ao peito, bota e bombachas para garantir-lhe a máxima gauchesca: militar em tempo de guerra, peão em tempo de paz.

Rodrigo trazia um violão às costas e uma carta de recomendação de Bento Gonçalves a quem servira na Guerra da Cisplatina quando se concedeu autonomia ao Uruguai.

Contrariado, uma noite, Pedro Terra concedeu a mão da filha, Bibiana, a Rodrigo Cambará: emergia, no pampa, a lendária família Terra Cambará, sustentáculo da narrativa de ‘O tempo e o vento‘, de Erico Verissimo.

O casal teve três filhos: Bolívar, Leonor e Anita, a ‘coitadinha’, que morreu numa noite fria e chuvosa, enquanto o pai jogava cartas e bebia num ‘bolicho‘ qualquer.

A vida matrimonial de Bibiana e Rodrigo foi assim, cheia de altos baixos, amavam-se loucamente, mas ele traia obstinadamente. Demorava-se na estrada quando ia a Rio Pardo para comprar suprimentos para a venda que estabelecera com o cunhado Juvenal ou enrabichava-se por alguma mulher na própria vila.

Bibiana, em casa, sofria. Bibiana, em casa, cuidava dos filhos. Bibiana, em casa, esperava pelo marido. Um dia, Rodrigo chegou com um brilho matreiro nos olhos, soubera que estourara uma nova guerra, Bento Gonçalves e outros fazendeiros haviam declarado oposição ao Império do Brasil – General Neto a República Rio-Grandense, era o fim da Monarquia, da escravidão.

Em solo sul-riograndense, de um lado, gaúchos lutando pela causa dos farroupilhas, revoltosos; de outro lado, gaúchos lutando pela causa do Império. Irmãos contra irmãos. Ideais contra ideais. Rodrigo seguiu em busca das batalhas, das refregas, dos embates.

Noticiou-se, na Vila de Santa Fé (vila fictícia em que se desenvolve o romance de Erico), que os revoltosos estavam em volta, haviam cercado a vila. Bibiana sabia que Rodrigo estava próximo. Preparou-se para recebê-lo e ele veio. Amaram-se sofregamente e ele partiu, prometeu que tomaria o casarão da família Amaral e voltaria. Não voltou.

Em 20 de setembro de 1835 iniciou-se a chamada Revolução Farroupilha ou Guerra dos Farrapos, movimento organizado pela elite estancieira gaúcha contra o Império brasileiro, entre outros motivos pela preferência do governo central em relação ao charque uruguaio, preterindo, portanto, o produto produzido no Rio Grande do Sul.

Além disso, os gaúchos reclamavam a sua condição de ‘estaleiro do Império’ – durante as guerras contra os inimigos de origem castelhana/espanhola: uruguaios, argentinos ou mesmo paraguaios, o Rio Grande do Sul fornecia tropas, gado para alimentação e cavalos, sem receber indenização do Império, desorganizando a sua economia.

Os combates duraram dez anos, encerrando-se em 1845, com a chamada Paz de Ponche Verde. O dia 20 de setembro é feriado no Rio Grande do Sul, dia de desfile de cavalarianos e prendas, representando os seus CTGs. Por sua vez, a chamada Guerra dos Farrapos tem sido tema da literatura produzida no estado desde 1849, com o romance ‘O corsário’, de José Antonio do Vale Caldre e Fião.

Contudo, aos olhos do leitor, certamente, a figura mais emblemática da prosa romanesca sul-riograndense que participa, ficcionalmente, dos combates durante a Revolução Farroupilha é Rodrigo Cambará, um dos grandes nomes do romance ‘O tempo e o vento’, de Erico Verissimo, sobre o qual se assentam as principais características da figura do gaúcho.

Elaine dos Santos

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