Carlos Carvalho Cavalheiro: 'A política sem partido'

“(…) Em suma, para os propagandistas da ‘Escola sem partido’ os professores são militantes partidários que realizam propagandas de fundo ideológico e eleitoral, quando tais educadores deveriam ensinar com ‘neutralidade.'”

 

A proposta de lei da chamada “Escola sem partido” chegou até Porto Feliz. Quem se dispõe a pesquisar um pouco sobre o assunto – chamado de “programa” – surpreende-se com o discurso que propõe “tão somente” a afixação de um cartaz em salas de aula contendo informações sobre deveres dos professores em relação aos seus alunos. Dentre esses “deveres” – que no total são 6 – estão alguns como: “o professor não se aproveitará da audiência cativa dos alunos para promover seus próprios interesses, opiniões, concepções ou preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias” e, ainda, “O professor respeitará o direito dos pais a que seus filhos recebam e educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”.

Apesar de discutível, a princípio não haveria nada de mais nos dizeres do cartaz. Porém, como todo farsante que se esconde por detrás de uma máscara, o site do referido programa o convida a “saber mais sobre o assunto” (https://www.programaescolasempartido.org). É nesse momento que se descortina o verdadeiro interesse por detrás de tal proposta. Sórdida proposta que utiliza a pele de cordeiro para esconder o lobo.

Ao clicar no link “saiba mais”, aparece o seguinte: “A doutrinação política e ideológica em sala de aula ofende a liberdade de consciência do estudante; afronta o princípio da neutralidade política e ideológica do Estado; e ameaça o próprio regime democrático, na medida em que instrumentaliza o sistema de ensino com o objetivo de desequilibrar o jogo político em favor de um dos competidores”. E ainda: “A pretexto de “construir uma sociedade mais justa” ou de “combater o preconceito”, professores de todos os níveis vêm utilizando o tempo precioso de suas aulas para “fazer a cabeça” dos alunos sobre questões de natureza político-partidária, ideológica e moral”.

Em suma, para os propagandistas da “Escola sem partido” os professores são militantes partidários que realizam propagandas de fundo ideológico e eleitoral, quando tais educadores deveriam ensinar com “neutralidade”. Ora, a neutralidade da educação é algo que não existe, é um conceito ultrapassado do século XIX dado pelos positivistas que acreditavam em uma ciência “neutra”.

Suponha-se uma aula de Matemática onde o professor ensine o Teorema de Pitágoras… Como falar em neutralidade quando se está ensinando o modelo matemático desenvolvido na Grécia antiga, portanto, eurocêntrico?  Seria, dentro da concepção dos defensores da “Escola sem Partido”, necessário que o professor de matemática soubesse profundamente sobre etno-matemática, conhecesse “com a mesma profundidade e seriedade” a matemática desenvolvida pelos antigos povos americanos, pelos povos asiáticos, pelos povos africanos etc.

Em assim não sendo, e não é mesmo, o professor seria acusado de doutrinação, pois estaria ensinando apenas uma versão, perspectiva, opinião e teoria da matemática. E poderia ser processado por algum aluno que se sentisse “constrangido” por ter aprendido apenas a matemática desenvolvida por europeus!

Outra questão: respeitar o direito à educação moral que recebeu dos pais. Nesse sentido, a escola tem por obrigação, de acordo com as convicções da “Escola sem Partido”, de aceitar que o filho de um traficante utilize-se do espaço escolar para o comércio ilegal de drogas. Afinal, foi essa a educação “moral” que recebeu de seus pais! Não se fala em ética, apenas em “moral”.

Em verdade, a “Escola sem partido” é uma falácia de quem pretende partidarizar a escola, evitando o surgimento de mentes críticas dispostas a transformar a sociedade. A mudança pressupõe a alteração do status quo e há muita gente interessada em que isso não aconteça. Afinal, o desgaste político só pode gerar novas crises dentro do sistema eleitoral.

A máscara cai quando os atores favoráveis à “Escola sem Partido” mostram a sua face: grupos como “Direita São Paulo”, “São Paulo Conservador” e “MBL” não estão interessados na “neutralidade” (que como dito, não existe), mas tão somente em manter as coisas como estão, ou seja, como sempre estiveram.

Mais útil do que propor a “Escola sem Partido”, seria limpar a nossa política dos interesses partidários. Isso sim seria algo decente a se propor. Não é possível que ainda tenhamos que suportar o esmagamento dos interesses da coisa pública em detrimento dos escusos interesses partidários com seus projetos de poder e domínio. Não se pode mais suportar manchetes como “Governo começa a entregar cargos por votos contra denúncia de Temer” (http://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/07/1902572-governo-comeca-a-entregar-cargos-por-votos-contra-denuncia-de-temer.shtml).

A “Escola sem Partido” exige dos professores que apresentem a seus alunos, “de forma justa – isto é, com a mesma profundidade e seriedade – , as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito”.  Por que, então, ao fazer afirmações como a de que os professores fazem a cabeça de seus alunos para questões partidárias, não apresentam pesquisas científicas de institutos reconhecidos informando a veracidade (ou não) de tal afirmação?

Pois é, tratar com respeito a inteligência alheia e informar com dados precisos e corretos é prerrogativa de professores. Já entre os políticos filiados a partidos e com mandatos…

 

Carlos Carvalho Cavalheiro

24.10.2017




Carlos Carvalho Cavalheiro: 'A escola sem partido'

“(…) Somente esse fato já sugere que a proposta, se acaso fosse boa e legítima, vem em péssima hora, quando os ânimos estão exaltados e a intolerância contamina o ar.”

 

Cresce de forma vertiginosa a proposta nas Casas Legislativas do Brasil da criação de leis que buscam coibir um suposto “caráter ideológico” das instituições escolares. Essa proposta recebeu o nome de “Escola sem partido” e não é criação brasileira, mas apenas uma cópia de ações similares ocorridas em outros países, em especial os Estados Unidos.

Em Sorocaba, cidade vizinha da região, um vereador apresentou projeto de lei nesse sentido. O desenrolar dos fatos desembocou na organização de duas audiências públicas: uma chamada pelo vereador postulante e a outra por vereadora que se opõe a tal medida.

Diferentemente do que ocorre em outros assuntos, o da discussão sobre a viabilidade da “Escola sem partido” teve de ser feita em duas etapas, separando-se praticamente os dois lados da questão. Somente esse fato já sugere que a proposta, se acaso fosse boa e legítima, vem em péssima hora, quando os ânimos estão exaltados e a intolerância contamina o ar. Em resumo, não é o momento adequado para um debate democrático, mas antes para um embate ideológico que não faz bem a ninguém.

Basta verificar que grupos organizados têm reforçado os estereótipos do conservadorismo versus progressismo, da “direita” contra a “esquerda”. O problema maior é que entre essas brechas o radicalismo cresce. Com isso, gritos histéricos e depoimentos extremamente apaixonados, cuja linguagem corporal permite perceber o reflexo sísmico das tremedeiras comuns nos debates calorosos carregados de fanatismo.

No entanto, o que se pergunta é: qual o benefício que a “Escola sem partido” traz para a educação? Durante as discussões sobre o projeto de lei sorocabano, os que defendem a aplicação dessa lei apresentaram como argumentos que os professores são, em sua esmagadora maioria, marxistas comunistas e que doutrinam os estudantes de forma a afastá-los dos princípios morais do cristianismo e dos bons costumes. Um dos participantes chegou a tirar da cartola a cifra de 80% dos professores como filiados ao “Partido Comunista do Brasil”!!!!

Creio que nem se juntar todos os filiados do PC do B não se alcança tal cifra entre os professores. Nem em Sorocaba, nem em Porto Feliz e em nenhuma cidade brasileira. Argumentos pífios, baseados em “nada”, recheados de suposições estereotipadas e intolerantes não oferecem qualidade ao debate. Seja de um lado, seja do outro.

               Entretanto, a mobilização de grupos organizados como “Direita São Paulo”, “São Paulo Conservador”, “MBL – Movimento Brasil Livre”, “Vem pra rua” entre outros, gastando energia e envenenando bílis, somente para pressionar professores a se converterem em simples transmissores de informação acrítica chega a ser estranho. Afinal, se ao professor não for permitido o trabalho do despertar crítico do estudante, formando verdadeiros cidadãos, conforme preconiza as diretrizes educacionais, a que se reduzirá essa profissão já tão desprestigiada socialmente? Porque, para ser um simples transmissor de informações “neutras” – o que não existe – a internet criou os buscadores como o Google.

Ademais, a obrigação de transmitir todas as versões e pontos de vista possíveis e imagináveis sobre determinado conteúdo programático é inexequível. Basta imaginar a seguinte situação: numa aula sobre o Evolucionismo. Ao professor cabe a tarefa de realizar a transposição didática de um conhecimento científico acumulado pelas gerações. Versões outras sobre o assunto sabemos existir. Porém, não faz parte de nossa formação enquanto professor aprofundar a visão bíblica sobre a origem humana. Isso porque, num país plural como o nosso, tal professor precisaria ser um profundo conhecedor de outras religiões – afinal, como pensam os candomblecistas, por exemplo, acerca do surgimento dos seres humanos – além de um exímio mitólogo, antropólogo, sociólogo, historiador, geógrafo… Enfim, levaria uma vida toda estudando, sem poder nunca exercer a sua profissão de educador.

 

Carlos Carvalho Cavalheiro – 11.10.2017

carlosccavalheiro@gmail.com

 

 

 




O leitor participa: prof. Rodolfo Jacob Hessel, de Porto Feliz/SP: 'Visões turvas em um Brasil desconexo'

(…) Em nenhum momento o ofício do professor visa doutrinar, muito pelo contrário, mas dar suporte aos seus alunos em sua inserção no mundo.

 

O Projeto Escola Sem Partido surgiu em momento de crise moral e ética na História brasileira, onde a falta de bom senso na esfera política decaiu em patamares nunca antes atingidos. Como estratégia para se desviar o foco se procurou em eleger os culpados de uma prática endêmica desde o início da formação do Brasil, mas de uma maneira simplista e irreflexiva. Nesse contexto, abriram-se espaços para setores da sociedade mostrarem seu extremo conservadorismo e destilarem seus discursos de ódio. A História já nos mostrou aonde podemos chegar com isso, posto que esta prática ajudou a levar ao poder a intolerância, o ódio e a perseguição como a solução para erradicar os problemas de um país e foi responsável pela maior catástrofe da história da humanidade. O nome do projeto pressupõe que a escola siga uma tendência partidária, argumentação esta que se pauta em uma total falta de análise cognitiva e de desconhecimento do papel da escola e do professor na formação cidadã e profissional dos alunos. Esse nome contradiz a sua real definição, pois na prática servirá de instrumento de censura, perseguição, repressão, controle e limitação dos profissionais da educação. Nessa perspectiva, os alunos seriam inseridos em uma prática educacional onde visa transmitir valores, ideias e contextos limitados a explicações simplistas e desconexas com a realidade vigente.

Um dos papéis do professor é aferir e fazer associações com o passado, presente e futuro nas análises a respeito das estruturas sociais, políticas, econômicas e culturais do mundo a sua volta, bem como promover o debate crítico e ampliar o arcabouço intelectual dos alunos para que possam tecer argumentos coerentes e reflexivos sobre seu papel na sociedade. Sendo assim, a proposta sugerida se coloca como um retrocesso em relação às práticas educacionais que se aperfeiçoaram a partir da segunda metade do século XX, ou seja, quando anteriormente o ensino das Ciências Humanas era trabalhado de maneira factual, harmônica, fixa e idealizada.

Posto isso, podemos verificar que na verdade esse projeto de lei, que é inconstitucional diga se de passagem, nasce de uma incoerência absurda, pois a sua proposta é instaurar aquilo que ele quer combater. Na prática o projeto Escola Sem Partido sugere uma narrativa linear dos acontecimentos, impedindo o diálogo e restringindo o acesso a determinados temas, limitando a aquisição do conhecimento amplo e dialógico.   A proposta a ser apresentada na Câmara dos Vereadores de Porto Feliz surge como algo tendencioso e de um oportunismo político que se apega na onda conservadora que assola nosso país, onde os embates giram em torno de polarizações políticas e a multidisciplinaridade cultural é atacada. Todavia, percebemos que essa prática visa retirar do foco os reais problemas que afetam a vida das pessoas hoje e em um futuro próximo, como por exemplo, as problemáticas referentes as questões previdenciárias, trabalhistas, tributárias, ambientais e com relação ao respeito ao outro.

Em nenhum momento o ofício do professor visa doutrinar, muito pelo contrário, mas dar suporte aos seus alunos em sua inserção no mundo. O que se pretende com esse projeto de lei, este sim, de formar um cidadão segundo os interesses políticos e ideológicos de um determinado grupo instaurado no poder, ou seja, um indivíduo alienado e desconexo com a realidade, que não saiba seu papel político e seja manipulado a transferir parte da sua liberdade para um “representante” que se aproprie desse poder e use conforme interesses próprios. O que mais me intriga é saber que as pessoas mais pautadas, estudiosas e experientes na área da educação condenam veementemente esse projeto, enquanto os “pseudos especialistas” por meio de suas abstrações e abominações cognitivas se apoiam em um discurso ultrapassado e se intitulam os defensores da moral e dos bons costumes.

Para finalizar gostaria de usar uma reflexão do filósofo e educador Mário Sérgio Cortella, onde sugere que o próximo passo desses grupos poderia ser defender projetos como: ‘Congresso sem Partido’, ‘Religião sem Partido’ ou ‘Câmara sem Religião’.

 

Rodolfo Jacob Hessel é professor, Mestre em História Social e Doutorando em História Social pela PUC-SP