O existencialismo de Ingmar Bergman

COLUNA CINEMA EM TELA

Marcus Hemerly: Artigo ‘O existencialismo de Ingmar Bergman’

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“Neste vazio dentro de mim nasceu algo que não compreendo, cujo nome não sei…”

Através de um Espelho, 1961.

Sorvendo da fonte europeia existencialista, as derivações daquela escola filosófica não passaram ao largo das retratações cinematográficas. Aliás, todas as formas de produção artística desenham as feições, ainda que inconscientes, de seus idealizadores, se não aquilo que é concebido, o que é sentido.

A imersão nas dicotomias e incongruências que compõem a complexidade humana são rica matéria-prima para a articulação da expressão individual. À luz dessa diegese*,  poder-se-ia desembaraçadamente citar a filmografia do diretor sueco Ingmar Bergman, que paralelizou desde os questionamentos metafísicos até as águas revoltosas que permeiam os sentimentos mais animalescos do homem.

Deparamo-nos com o jogo de xadrez com a morte, a partir de seu filme mais famoso, ‘O Sétimo Selo’ de 1957, até o encontro de sua personificação num simbolismo que será recorrente em toda obra do diretor: a existência em sua forma mais substancial para, num segundo momento, amoldar a vida, essência, amalgamando a criação/origem até a forma de interação com o meio circundante/evolução.

Ora, o que é a Filosofia, senão uma eterna inserção de questionamentos sobre proposições tidas como absolutas, ou mesmo, abstratas em sua natureza?

Ainda trilhando a vereda investigativa quanto às formatações humanas em seus liames racionais e sentimentais, é possível concluir que tais conceituações são indissociáveis para o direcionamento inquisitivo existencial tratado na obra de Bergman.

Não raro, se escuta o conceito ‘crise existencial’ em atividades atreladas à vida hodierna, e, de igual modo, quando relacionadas às representações fílmicas. Personagens densos, introspectivos, insatisfeitos em sua inquietação não aparente, e, por fim, comumente rotulados sob a pecha de existencialistas.

Voltando o olhar para seus primeiros trabalhos, nos quais identificamos as emoções e pulsões de forma mais primitiva, como vingança, no caso de ‘A fonte da donzela’, em seus roteiros ulteriores é possível perceber que o trilhar, ou talvez seria dizer, ‘brincar,’ com a inquietude do amadurecimento emotivo de seus personagens é uma intenção recorrente.

Na chamada trilogia do silêncio, somos apresentados a personagens que, numa análise perfunctória, poderiam ser erroneamente classificados de superficiais. Contudo, nada mais enganoso. 

Na produção ‘Através de um Espelho’, 1961, Karin, a jovem retorna ao seio familiar após uma temporada em um hospital psiquiátrico, e vivendo em uma ilha com seu solitário irmão, o marido (Max von Sydow), ator recorrente na filmografia do diretor, e o pai,  se desenha um deterioramento no relacionamento daquele núcleo, quando a instabilidade de Karin ganha força, fazendo com  que os próprios conflitos de seus pares, principalmente de seu pai, aflorem. Identificamos a fragilidade na inteligência racional contraposta à emocional.

 Em ‘Luz de Inverno’, 1963, o amor e suas contradições são experimentados pelo pastor Tomas Ericsson, que sofre uma intensa crise de fé quando relutantemente se apaixona pela professora Märta Lundberg.

Finalmente, em ‘O Silêncio’ de 1963, título mais polêmico e que encerra a trilogia, conhecemos as irmãs, Ester e Anna, que viajam para um país da Europa Central durante a guerra e levam com elas o filho de Anna, o garoto Johan de 12 anos.

Naquele espaço, a trama de desenvolve num hotel quase inabitado, que atua perifericamente à próprias conscientizações de seus tormentos, desejos e pretensões de exploração íntima. Temas/cenas como autoerotismo feminino, sugestão de relacionamento incestuoso e desejo velado pela morte, exsurgem de maneira palpável e desconfortante até mesmo ao espectador.

Assim como a aplicação psicanalítica, o que se desvela num tom flagrante nos roteiros, até mesmo na forma de estilo/conceito cunhados ao que se convencionou chamar de ‘bergmaniano’, de feição adjetiva, é identificada a partir de proposições.

Estas, em uma primeira intenção, simples, mas que estimulam a reflexão e incursão interior por meio de estímulos livres. Conflitos familiares, sexuais, de relacionamento, culpa, entre outros, são emoções basilares que descortinam os elementos mais caracterizadores do ser humano.

A partir dessa ideia, os vieses psicanalíticos permeiam todas as concepções daquele recorte do cineasta, que recebeu o epíteto de pintor do existencialismo. Descrevendo-o, o diretor francês Jean-Luc Godard ponderou: “O cinema não é um ofício, é uma arte. Cinema não é um trabalho de equipe. O diretor está só diante de uma página em branco. Para Bergman estar só é se fazer perguntas; filmar é encontrar as respostas. Nada poderia ser mais classicamente romântico“.

Repise-se, tal como a própria metodologia psicanalítica de discurso e autoconhecimento indutivo, títulos inesquecíveis como ‘Sonata de Outono’, e ‘Gritos e Sussurros’, são exemplos de diálogos fluidos que tocam o cotidiano e roupagens travestidas de abordagens singelas, mas que, em verdade, obscurecem redemoinhos emocionais muito mais arraigados e merecedores de apreciação e retratação. O que se faz de modo preciso e inquietante por Ingmar Bergman.

Talvez, um dos filmes mais característicos de tal ênfase existencial na cronologia de sua cinematografia é apontada em ‘Persona’ – título sugestivo – no qual a dualidade humana e os enigmas da mente são despidos de forma engenhosamente orquestrada.

Decerto, a análise pontual de cada filme citado, bem como acerca dos pontos sobre os quais lastreiam-se o norte psicológico da carreira do diretor, são suficientes a robustecer teses acadêmicas, mas, de igual forma, neste espaço mais sintético, estimular a descoberta aos leitores e apreciadores das imagens – e questionamentos – em movimento.

Se no Brasil, o diretor do cinema marginal Carlos Reichembach se autodenominava o último utopista, Bergman, por sua vez, pode ser identificado com o grande existencialista, intencionalmente ou não. A indagação ecoa à espera de resposta.

Marcus Hemerly

N.E. Diegese é o ato de narrar ou descrever uma história, seja no teatro, no cinema ou literatura. É quando o artista, ou personagem, se torna locutor, assumindo assim sua própria identidade para descrever ou comentar um acontecimento.

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