Bruna Rosalem: "Um menino que quer ser menina: uma análise do filme belga 'Minha vida em cor de rosa'”
COLUNA: PSICANÁLISE E COTIDIANO
Um menino que quer ser menina: uma análise do filme belga ‘Minha vida em cor de rosa
E quem estaria certo ou errado? Não cabe a nenhum de nós julgar
A sexualidade humana sempre foi tema de grandes debates, divergências, tabus, interpretações e entendimentos. No longa metragem belga lançado em 1997, “Minha vida em cor de rosa”, não é diferente, ele carrega consigo a narrativa de como a sexualidade, ou melhor dizendo, as sexualidades podem ser um terreno fértil de discussões e embates. O filme conta a história de Ludovic, um garoto que, aos sete anos de idade, começa a se perceber como uma menina e passa a se vestir e se comportar como tal.
Sua família era bem relacionada com toda a vizinhança, composta pela mãe Hanna, seu pai Pierre, uma irmã e dois irmãos. Os pais ficavam confusos com as atitudes de Ludovic: ora o repreendiam por usar o vestido de uma amiga, ora o permitiam que fosse de saia a uma festa aos arredores do bairro.
Certa vez, na festa de aniversário de Ludovic, seus familiares e amigos o aguardavam no quintal de casa, quando então ele surge usando vestido rosa, maquiagem, brincos e salto alto. O susto de todos que estavam presentes foi imediato. A situação vai ganhando novos contornos quando Ludovic persiste nessa identificação feminina, questionando até o que significaria ser um garoto e reivindicando casar-se com Jerome, seu colega de classe. Em sua inocência de criança, acreditava que um dia se tornaria uma menina, que seria apenas uma questão de tempo. Enquanto aguardava, vivia fantasiando uma linda amizade com uma fada chamada Pam, uma personagem de propagandas de televisão, muito semelhante à boneca americana Barbie.
Diante dos acontecimentos, a família de Ludovic toma uma série de providências acreditando que o menino pudesse abandonar estes comportamentos, então o leva ao psiquiatra, conversa com o garoto sobre a impossibilidade de se casar com meninos e corta o seu cabelo. Neste ensejo, os pais começam uma discussão buscando compreender onde eles erraram na criação do menino. A mãe aponta que a figura do pai era ausente, pois dizia que a falta de um referencial masculino leva à homossexualidade dos filhos meninos. A solução proposta pela família foi fazer Ludovic ficar mais próximo de seu pai, então começa a jogar futebol e fazer só “coisas de menino”, o que quer que isso signifique.
Um momento bem marcante que o filme nos traz é como Ludovic, em seu entendimento de criança, interpreta o que aconteceu com ele: ao ouvir de sua irmã explicações biológicas sobre as diferenças entre meninos e meninas, ele conclui que Deus pretendia que ele nascesse menina, mas um dos seus cromossomos X ao invés de passar pela chaminé de sua casa, quando vindos do céu, o X bateu e caiu para fora, portanto se perdera pelo caminho, ficando então XY. No pensamento do menino, algum dia esse erro seria concertado. Esta singela explicação fazia todo o sentido na cabeça de Ludovic, que a considerava “puramente científica”. Assim, ele se dizia um “menino-menina”, aguardando ansiosamente as suas cólicas menstruais, sinais de que ele estaria se tornando uma “menina de verdade”. De fato, a esperança era tanta que, diante da primeira dor de barriga, Ludovic já saia feliz pela casa.
Durante o desenrolar do longa, é possível refletir o quanto a persistência de Ludovic em construir sua identidade enquanto menina gera conflitos em todos. A família não compreende, a vizinhança, os colegas e a comunidade escolar lançam olhares de reprovação e julgamento, as singularidades (criança ou adulto) são colocadas à prova o tempo todo, e lidar com a diversidade e as formas de sexualidade não é nada trivial.
A relação entre psicanálise e homossexualidade dificilmente pode ser considerada estável. Freud, muito à frente de seu tempo, já dizia que a homossexualidade não é motivo de vergonha, não é uma degradação, não é um vício e não pode ser considerada uma doença. Apesar disso, durante décadas as instituições psicanalíticas promoveram uma visão moralizante da conduta sexual, preconizando a heterossexualidade reprodutiva como destino de uma sexualidade supostamente normal.
Antes mesmos de nascermos, ainda no útero, Freud já propunha o conceito de bissexualidade estrutural para todo ser humano. Não sabemos para qual será nosso objeto de desejo até então. Portanto, a origem da homossexualidade não pode ser taxativa, atribuída a um ou outro fator, como por exemplo, ausência da figura paterna, como pregava a família de Ludovic. Tanto a homo quanto a heterossexualidade se apresentam de maneira polideterminada, seja de natureza biológica, sociocultural, psicológica, e assim por diante.
Diante dessa discussão, é interessante refletir o quanto o ser humano apresenta singularidades com relação ao seu desejo, e considerar essa característica é crucial para uma ética pautada nos desejos, objeto da psicanálise. Nesse sentido, David Zimerman, médico psiquiatra e psicanalista, sugere que o termo seja tratado enquanto “homossexualidades” pois leva em consideração à diversidade do ser humano e de suas manifestações, longe de qualquer tentativa de normalização. Contudo, estes fenômenos, sejam naturais ou patológicos, são igualmente complexos, e buscar simplificá-los ou reduzi-los a explicações momentâneas e rasas, perde-se importantes conteúdos de escuta.
As sexualidades se estruturam para além de classificações sexológicas convencionais, como a distinção entre hetero, homo e bissexualidade e, portanto, cada vez mais o trabalho de investigação analítica se faz uma constante para desnudar os nossos mais multifacetados desejos e emoções. No caso da família de Ludovic, seria interessante escutá-los como sujeitos, pois cada membro tem suas próprias convicções, visão de mundo, interpretações.
E quem estaria certo ou errado? Não cabe a nenhum de nós julgar.
A vida de Ludovic pode ser cor de rosa, como diz o título do filme, mas a minha pode ser roxa, a sua azul, a do colega amarela, a da vizinha verde. E está tudo bem.
Bruna Rosalem
Psicanalista Clínica
@psicanalistabrunarosalem
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