Carlos Carvalho Cavalheiro: “'Fuga & Sobrevivência': uma narrativa viva sobre uma família judia"
“’Fuga & Sobrevivência’: uma narrativa viva sobre uma família judia”
Relatos de história de família costumeiramente empolgam os leitores. A narrativa de histórias reais, transpostos ao papel de acordo com a memória do narrador, tende a trazer referências que nos são comuns. A maioria das pessoas conviveu com seus familiares e juntos tiveram momentos de prazer, de risos, de afeto, mas, também, de angústias, de separações, de tristezas.
O interesse do leitor aumenta quando a história contada em livro é a de uma família de imigrantes, com costumes e hábitos que vão se moldando aos nossos. Os brasileiros se recordam do livro “Anarquistas, graças a Deus”, escrito por Zélia Gattai, e que conta a história de sua família, composta por italianos que imigraram para o Brasil. A história contada por Zélia recebeu inúmeras edições – até hoje – e se converteu em minissérie de TV.
Um pouco desses elementos todos encontramos também no livro recém publicado e escrito por Oscar Goldzmidt Don, intitulado “Fuga & Sobrevivência”. Aos 83 anos de idade, Oscar Goldszmidt resolveu escrever esse livro para registrar a história de sua família, mas, ao mesmo tempo, para eternizar uma história de judeus que enfrentaram – e conseguiram escapar – do holocausto.
E lembrar-se dos horrores do Holocausto e do nazismo é coisa urgente em nossos tempos. Basta recordar que o atual presidente do Brasil foi eleito a despeito de ter dito frases como “O Estado é cristão e a minoria que for contra, que se mude. As minorias têm que se curvar para as maiorias” ou “Eu fui num quilombo em Eldorado Paulista. Olha, o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada! Eu acho que nem para procriador ele serve mais. Mais de R$ 1 bilhão por ano é gasto com eles”. Esta última, infelizmente, dita numa reunião do Clube Hebraica em 2017.[1]
Com esse discurso de ódio, o atual presidente do Brasil recebeu os seus votos. Ao contrário disso, o livro de Oscar Goldzsmidt soa muito mais como um alerta sobre tais horrores – para que não se repitam – do que um libelo de ódio. Afinal, Oscar é um artista e um educador, um homem voltado para a esperança do retorno da humanidade nas pessoas por meio da arte dramática. Conhecido artisticamente como Gepeto, Oscar Goldszmidt tem sido reconhecido nos últimos anos no Brasil pela contação de histórias para crianças e jovens, encarnando o personagem que deu vida ao boneco Pinocchio.
“Fuga & Sobrevivência” narra a história de sua família, desde a Lituânia até a chegada à América do Sul. A história de sua mãe Esther, que da vida dura da infância, carregando latas de leite, passa, por consciência própria, a escrever outra história de sua vida, aprendendo a costurar até se tornar modista de alta costura, é um exemplo de perseverança e de resistência. A história de seu pai Abraham, que lutou por anos até se tornar um empresário na produção de bolsas femininas, corrobora e explica, de certa maneira, a fibra que constitui a alma de Oscar Goldszmidt Don.
Alguns fatos interessantes do livro. Oscar sempre que pode está presente em manifestações antirracistas na cidade de Sorocaba, no Brasil. Porém, essa ligação dele com o combate ao racismo é mais profunda do que a empatia de um judeu, cuja etnia historicamente sofreu discriminações. Oscar conta em seu livro que a vida de seu irmão Moisés foi salva no Brasil graças a um médico negro, entre a década de 1920 e 1930. E Oscar, então, confessa: “Uma noite, Moisés estava muito doente. Meu pai não estava em casa, e a febre do bebê subiu muito. Minha mãe, desesperada, saiu correndo, no meio da noite, e foi até um hospital público. Um médico negro salvou a vida dele. Ela sempre contava essa história, e eu tenho hoje uma afinidade muito grande com vários artistas e diretores de teatro negros, talvez resultado dessa história”.
Em outra passagem, muito emocionante, Oscar Goldszmidt explica o motivo pelo qual os judeus tendem a se concentrar em atividades liberais ou ligadas ao comércio. Essa relação dos judeus com as profissões liberais e o comércio ajudou a criar um preconceito, reforçado durante a vigência do nazismo, associando-os a avareza. Em verdade, Oscar explica que para um povo errante, que comumente foi expulso e perseguido, a fuga era mais do que uma possibilidade. Era quase um fato concreto, embora não se pudesse determinar o momento em que ocorreria.
Assim, de acordo com a narrativa de Oscar, “até hoje, os pais judeus insistem que seus filhos tenham uma profissão liberal. Em caso de ter que deixar o país, como tantas vezes já ocorreu na nossa história, levam seu capital na sua cabeça e, portanto, podem iniciar tudo de novo em outro país”.
Essa afirmação é permeada por partículas de tristeza, pois demonstram que a intolerância e a discriminação ainda assombram, como espectros noturnos, a vida do povo judeu, bem como de tantos outros que são obrigados a realizar verdadeiras diásporas para se vir a salvos de governos autoritários, sanguinários e hediondos.
Em “Fuga & Sobrevivência”, Oscar Goldszmidt traça ainda perfis de seus outros parentes, como tios, primos, avós, testemunhando para as gerações futuras as raízes em que se sustentaram a história dessa família. E é impossível não comparar essa história com a da nossa própria família. É esse o elemento primordial que faz desse livro uma leitura obrigatória. Ao menos para as almas que se pretendem ser grandes. Como nas palavras do poeta Fernando Pessoa: “Tudo vale a pena, se a alma não é pequena”.
O livro “Fuga & Sobrevivência” pode ser adquirido pela Amazon, por meio do link: https://www.amazon.com.br/Fuga-sobreviv%C3%AAncia-Oscar-Goldszmidt-Don-ebook/dp/B0968XVL5J
[1] Disponível em: https://istoe.com.br/frases-de-bolsonaro-o-candidato-que-despreza-as-minorias/ Acesso em 5 fev 2022.
Carlos Carvalho Cavalheiro
05 fev 2022