Carlos Carvalho Cavalheiro: 'Derrubar as estátuas, as prateleiras…'

Carlos Cavalheiro

Derrubar as estátuas, as prateleiras…

            Em 2001 o grupo extremista talibã explodiu duas estátuas de Buda, esculpidas em um paredão de arenito, no Afeganistão. As esculturas, produzidas em 507 a.C., eram consideradas as mais altas estátuas de Buda do mundo. A justificativa dos talibãs foi a de que tais imagens ofendiam a religião muçulmana. Em 2016, em Salvador, vândalos depredaram o monumento à ialorixá Gildásia dos Santos e Santos, conhecida por Mãe Gilda, também por motivos de “ofensa” às crenças religiosas “cristãs”. No dia 15 de julho de 2020, novamente, o mesmo monumento, um busto colocado no Parque do Abaeté, foi vandalizado por um homem que se apresentava como “evangélico”, representante de Deus.

Em dezembro de 2018, uma estátua do líder pacifista indiano Mahatma Gandhi foi retirada da Universidade de Gana sob a acusação de ter proferido pensamentos racistas quando da sua juventude. No dia 24 de julho foi a vez da estátua a Borba Gato, em Santo Amaro (São Paulo), ser novamente depredada. Dessa vez ela foi incendiada.

A princípio, o único elemento que unifica todos esses eventos é a hostilização a monumentos. O “bandeirante” Borba Gato é acusado de racista e de escravizador. Ao contrário, Mãe Gilda era uma liderança religiosa do candomblé e que teve seu templo atacado no ano 2000, o que contribuiu para o agravamento de seus problemas cardíacos que a levaram a óbito. Sidarta Gautama, o Buda, foi uma liderança religiosa que pregava a paz e o desapego. Com relação a Gandhi, antes de se tornar um líder pacifista, teria dito que os indianos eram “superiores” aos africanos.

Pois bem, apesar de não haver muitos elementos em comum a todos esses atos, não se pode negar que todos foram movidos por uma aversão ao outro. Ainda que se coloque que alguns dos casos acima estejam escorados em “justiça” ou “reparação histórica”, o fato é que foram estimulados pela rejeição ao que o outro representa.

Há uma confusão do senso comum entre fato histórico, memória e História, uma vez que todos se alimentam, de certa maneira, do passado. Mais ainda: das ações humanas realizadas em outros tempos. Assim, o fato histórico se refere à ação ocorrida ao longo do tempo e cujo acontecimento seja indiscutível: o príncipe Dom Pedro estava em São Paulo quando proclamou a Independência do Brasil. A memória vai trabalhar com a forma como esse fato será lembrado pelas futuras gerações. A imagem do quadro de Pedro Américo que pretende retratar aquele fato histórico não é nada além de um exercício de memória. Dom Pedro está vestido com trajes de gala, montado em imponente cavalo, cercado por soldados ricamente fardados… A História é aquela criatura que vem para problematizar as coisas. Ela faz inquirições em demasia, vasculha gavetas a procura de documentos (ela é curiosa), pergunta para um e outro, conversa com outros cientistas sociais, e, ao fim, dá o seu veredicto: o príncipe e sua pequena comitiva estavam montados em mulas e não em imponentes corcéis (menos eficientes para uma viagem longa e em terrenos acidentados, como é o caso da Serra do Mar, de Santos a São Paulo). Além disso, não há registro da presença da guarda dos “dragões da independência” acompanhando o príncipe regente nessa viagem.

No entanto, enquanto memória a cena pintada por Pedro Américo ainda rouba suspiros de emoção em muita gente. Há quem não consiga imaginar que o evento tenha sido diferente do que retrata o quadro. Assim sendo, os monumentos são lugares de memória e símbolos que carregam significado a parcelas da população. Enquanto existir essa relação do símbolo com as pessoas, qualquer ato de depredação será considerado como agressão.

É diferente quando o resultado de um conflito se configura na aceitação da vitória de uma parte sobre a outra. No filme “1492 – A conquista do Paraíso” há uma cena emblemática de Colombo adentrando Granada após a vitória dos cristãos. A entrada na cidade é impedida por alguns momentos porque os “vencedores” estão derrubando o símbolo muçulmano da lua crescente e colocando em seu lugar a cruz dos cristãos. Os mouros derrotados aceitam tal ofensa porque não há mais condições materiais para a resistência.

A fogueira que se fez aos pés da estátua de Borba Gato foi justificada pelo fato de ele, enquanto “bandeirante”, ter supostamente escravizado indígenas e africanos. Ocorre que Borba Gato estava muito mais ligado ao chamado “bandeirismo” de prospecção, caracterizado pela extração de metais e pedras preciosas. Até o início do século XVIII, a preação de indígenas era algo lucrativo, pois as fazendas produtoras de açúcar do Nordeste compravam constantemente esses escravizados. Era o que dava lucro aos sertanistas de São Paulo, tanto que, segundo o escritor Paulo Setúbal, em seu livro “O Ouro de Cuiabá”, o “bandeirante” Paschoal Moreira Cabral teria desdenhado do ouro descoberto durante uma expedição em que se buscava aprisionar indígenas coxiponés: “Nada de bobagem, moçada! A gente veio neste sertão para prear índio, isso sim, que índio é ouro” (pág. 25). Isso em 1718. Mas antes disso, em 1681, Borba Gato já estava no sertão em busca de prata, juntamente com o sogro Fernão Dias Paes Leme.

Os metais e pedras preciosas efetivamente começam a ser explorados no final do século XVII e no século XVIII, depois que o comércio de indígenas escravizados decai pela entrada de africanos. Até então, os paulistas não se interessavam pelos metais e pedras porque sabiam que isso significaria perder sua autonomia, eis que o aparelhamento de fiscalização do Estado português seria instalado tão logo surgisse a notícia do ouro, da prata, das pedras preciosas. Foi assim que na antiga Araritaguaba, atual Porto Feliz, instalou-se próximo ao porto da chegada das monções a Casa da Alfândega que cobrava o imposto do quinto real.

Sobre esse fato, o eminente Sérgio Buarque de Hollanda diz no seu livro “Visão do Paraíso”: “A mobilização da gente do planalto visando à captura de fantásticas riquezas para a Coroa constitui, sem dúvida, uma ameaça à vida livre e sem sujeição de quem se tinha habituado, de longa data, a tamanha soltura” (pág. 63). E conclui, logo adiante: “Para os moradores de São Vicente, faltos de escravaria de Guiné, o grande atrativo que podiam oferecer aquelas regiões, tão cobiçadas de início como portas de fabulosos tesouros, concentrava-se nos lucros proporcionados eventualmente por tão largo viveiro de índios submissos e prestativos. A inclinação para as jornadas de caça ao gentio desponta assim nos ânimos dos habitantes da capitania, que aos poucos não quererão saber de outros cabedais senão do que representavam aquelas peças da terra” (pág. 104).

Borba Gato tornou-se afamado sertanista por sua ligação com a descoberta das jazidas em Minas Gerais. Em 28 de agosto de 1682, Borba Gato assassinou Dom Rodrigo Castel Blanco ou Castelo Branco, um fidalgo castelhano que tinha nomeação do rei português para tomar posse das minas administradas pelo paulista. É que a autorização anterior era de seu sogro, Fernão Dias Paes Leme; e Borba Gato achava-se no direito de herdar a nomeação.

O fato é que com esse assassinato, o “bandeirante” paulista tornou-se um fugitivo, vivendo no meio do mato escondido. Dizem que viveu entre indígenas e que chegou a estabelecer com eles a criação de gado vacum. Também há informações – estas mais seguras – de que continuou na prospecção tendo encontrado minas de ouro e prata. Com essa informação, negociou o seu perdão junto ao rei, o qual a concedeu em 15 de outubro de 1698. Borba Gato foi nomeado Guarda-mor desse distrito do Rio das Velhas em 6 de março de 1700. Participou, ainda, da Guerra dos Emboabas em 1708. Faleceu em 1718 aos 69 anos de idade.

Assim, Borba Gato esteve quase toda a sua vida envolvido com a procura e exploração de minas de metais e pedras preciosas. O comércio de indígenas escravizados esteve a cargo de outros sertanistas como atividade primordial, tais como Manoel Preto, André Fernandes, Raposo Tavares entre outros. Não se trata aqui de tentar redimir a imagem de Borba Gato, mas, antes, de trazê-la para uma visão mais alicerçada em fatos históricos. Afinal, o debate que se pretendeu levantar com a queima de sua estátua em Santo Amaro, conforme descreveu a imprensa, estava relacionado com a sua suposta ação de escravizador de indígenas e africanos.

Na História do Brasil é difícil dissociar qualquer monumento ou símbolo de memória dos séculos passados à exploração da escravidão. Afinal, a maior parte dos trabalhos realizados era por mãos escravizadas. Poder-se-ia dizer, então, que os prédios da antiga Real Fábrica de Ferro de São João do Ypanema, a primeira siderúrgica do Brasil, é um “monumento” que remete a um passado escravocrata. Bem como praticamente toda a cidade de Ouro Preto, Mariana, e Sabará (esta última, coincidentemente, associada a Borba Gato que foi seu primeiro Guarda-Mor). Seria muita coisa para se queimar e se destruir. Mas qual a vantagem de um ato como esse?

Não é de hoje que muita gente se empolga com eventos pontuais acreditando que sejam embriões de uma revolução. Sim, precisamos de mudanças e urgentes. Mas como tudo o que ocorre neste mundo tridimensional de Euclides, não há espaço para “milagres”. As passeatas de junho de 2013 e as ocupações das escolas estaduais do Estado de São Paulo em 2015 não impediram a eleição de políticos ligados aos setores mais reacionários. E muita gente acreditou que estávamos à beira de uma revolução social. A mesma euforia – um tanto ingênua e um tanto infantil – é vista agora quando as redes sociais viralizam cenas de vandalismo a monumentos no mundo todo.

Todos aqueles que foram considerados racistas, escravagistas, machistas, sexistas, autoritários, etc., estão tendo seus monumentos pichados ou depredados. Mas, não seria anacronismo buscar em personalidades do passado as atitudes próprias do nosso tempo? Isso não quer dizer que não devamos condenar a escravidão, a ditadura, o sexismo e toda a opressão. Ao contrário, como seres humanos do século XXI é nosso dever repudiar a tudo isso. Porém, essas atrocidades não desaparecem quando derrubamos as estátuas.

Metaforicamente, Caetano Veloso cantou esses versos em “É proibido proibir”. Mas, sinceramente, não sei se a proposta do compositor baiano, naquela época ou hoje, seria a de literalmente derrubar estátuas. Especialmente quando tais monumentos ainda possuem algum significado para uma parcela da população. O ato sempre será visto por esse grupo como um vilipêndio.

Foi o que ocorreu com a queima da estátua de Borba Gato em Santo Amaro. Não demorou a aparecer monumentos e símbolos progressistas que receberam o mesmo ódio e depredação. Uma imagem de Marielle Franco num escadão em Pinheiros apareceu pichada com a frase: “Viva Borba Gato”. O monumento que marca o local da emboscada e morte de Marighella também foi vandalizado. Em Sorocaba, a tentativa de roubo da placa de bronze com o nome dos pracinhas da 2ª Guerra Mundial foi classificada por uma leitora de um jornal local como “coisa de comunistas”.

Acirrou-se o ódio e, de quebra, elevou-se Borba Gato a herói reivindicado pela extrema-direita. Antes, o “bandeirante” paulista nem era lembrado pelos reacionários. Agora, virou herói por algo que nem estava entre as suas principais atividades: a escravização de indígenas e negros africanos.

As estátuas cairão por si só quando perderem seu significado. E nem precisarão ser derrubadas. Converter-se-ão em imagens pálidas de um passado ressignificado. Serão como os monumentos faraônicos: não para admiração pela figura do faraó, mas para conhecimento das ações humanas num tempo distante. Mas para que isso tudo ocorra é necessário que repensemos hoje a visão que temos sobre os fatos pretéritos. Somente a pesquisa histórica pode dar novos significados ao nosso passado.

 

Carlos Carvalho Cavalheiro

02.08.2021