Cláudia Lundgren: 'Peripécias de um cérebro hiperativo'

Cláudia Lundgren

Peripécias de um cérebro hiperativo

Quando me sentei para escrever essa crônica, eu estava totalmente sem inspiração. Na verdade, acho que nem era exatamente isso. O que acontecia é que meu cérebro estava hipermovimentado, as ideias circulando, eram muitas.
Era madrugada, e eu já estava horas na cama. Meu corpo cansado desejava dormir;  os músculos e nervos tensos pelos movimentos e estresses do dia a dia precisavam relaxar. Só que o cérebro, esse ser à parte, parecia ter vontade própria e impedia todo o resto do corpo de dormir. Indivíduo inconveniente!
Era um tal de ‘virar para cá e para lá’; levantar para beber água; por consequência, para ir ao banheiro; uma peregrinação entre os cômodos da casa e entre sites buscando ainda mais informações. Algo incontrolável. Já notei até certos fatos bem interessantes: que 5:30h, por exemplo, é o horário mais frio da madrugada. Pelo menos para mim.
Em noites assim, ouço o galo cantar, e pasmem! Ele não canta somente ao raiar da aurora. O que tem perto da minha casa também canta as 2:00h, 3:00h; na verdade, não tem hora certa. A passarada sim, começa a aparecer com o clarear do dia.
Ouço também barulho em outro cômodo: meu filho adolescente na quarentena, com os jogos no smartphone. Espirros, nariz escorrendo: ele tem rinite alérgica; busca o papel higiênico no banheiro, o gato mia pedindo ração. Às vezes trocamos umas poucas ideias, o outro filho se incomoda pedindo silêncio, já que acorda cedo para trabalhar. E a culpa é todinha do meu cérebro.
Ao fechar meus olhos, as letras dançam num vai e vem desenfreado; os temas aparecem como flashes; frases que sou obrigada a anotar, porque o cérebro não sossega enquanto não realizo a sua vontade. Cores também. Muitas cores. E antes que alguém pense mal de mim: não uso drogas!
Pior mesmo é quando ele cisma com aquele assunto. Quer ler sobre aquilo, ouvir sobre aquilo, vídeos, pensamentos a mil, a noite se vai, o dia amanhece. Escrevo colunas para jornais, e ele é quem decide a hora. Aí já viu!  Eu lá, prisioneira cativa do meu cérebro, no meio da madrugada, desenvolvendo assuntos e enviando textos. Indivíduo sem noção!
Eu quero dormir, por favor! Mas ele não. Minha mãe me passou receitinhas caseiras: chazinho de cidreira, leite quente; mas tudo isso para o meu cérebro não passa de água com açúcar.

Claudia Lundgren 

tiaclaudia05@gmail.com

 

 

 

 

 




Sergio Diniz da Costa: 'Insônia, Mussorgsky e Durrenmatt'

Sergio Diniz da Costa

 Insônia, Mussorgsky e Dürrenmatt

Modest Mussorgsky (1839 – 1881)

Sou um insone inveterado, como já declinei em outra crônica desta revista.* E, como tal, nas infindáveis horas de vigília, nas madrugadas, as minhas opções são assistir a filmes ou escrever.

Filmes em geral, porém ─ e infelizmente –, apresentam excesso de violência. Uma péssima companhia para conciliar o sono! E, de violência em violência, gasto as pilhas do meu controle remoto, trocando de canais.

A saída, nesse caso, é buscar algum canal com músicas. Preferentemente, de qualidade. E, na TV paga, deparo-me com o canal Arte 1.

São quase 3h da manhã e uma agradável e saudosa surpresa: no Arte1 In Concert, uma orquestra executa a peça Quadros de uma Exposição, de Mussorgsky, um compositor e militar russo, nascido em 21 de março de 1839, em Toropets, Rússia, e conhecido por suas composições sobre a história da Rússia medieval, que me transporta ─ emocionado ─ para o ano de 1975, quando então, com 18 anos de idade, participava do teatro amador de Sorocaba, sendo membro do Grupo TEMA (Teatro Moderno de Amadores), sob a direção de Moisés Miastkowosky, um dos diretores mais importantes do teatro moderno brasileiro que, infelizmente, em 2014 cumpriu sua missão terrena.

Friedrich Dürrenmatt  (1921 – 1990)

E, nesse transporte temporal, revejo um jovem aprendiz de teatro, encenando a peça A Pane, do autor e dramaturgo suíço Friedrich Dürrenmatt (Konolfingen, 5 de janeiro de 1921), um proponente do teatro épico, cujas peças, mais do que propiciarem simples diversão passiva, implicavam um debate teórico. Essa peça, na verdade, um conto, publicado em 1955, apresenta uma alegoria da Justiça como cena teatral e induz a conclusões desorientadoras.

Nele, o carro de um caixeiro-viajante (Alfred Traps) quebra no meio da estrada e ele é obrigado a procurar auxílio num pequeno vilarejo, onde acaba decidindo pernoitar. Como a estalagem está lotada, recorre a um velho juiz aposentado que aluga quartos em sua casa. Durante o jantar, um verdadeiro banquete para o qual também foram convidados três outros velhos amigos do anfitrião, ao caixeiro-viajante é proposto um jogo: participar como réu da encenação de um julgamento em que os quatro velhos aposentados interpretarão as suas antigas funções de juiz, promotor, advogado de defesa e carrasco. E, no meio de uma verdadeira orgia gastronômica, Traps se julga verdadeiramente autor de um crime que não cometera, o que o leva ao suicídio.

A peça, com figurino e cenário riquíssimos, foi emoldurada por Mussorgsky, com Quadros de uma Exposição, uma suíte escrita para piano, em junho de 1874, que descreve, em metáforas, um passeio em uma exposição de quadros, e foi composta como uma homenagem do compositor a um amigo falecido em 1873, o arquiteto e pintor Viktor Hartmann, cujos quadros  estavam expostos numa galeria de São Petersburgo.

Essa peça, de certa forma, induziu-me a seguir a carreira advocatícia. E, depois de trabalhar por 12 anos como técnico químico, nela ingressei e permaneci por pouco mais de duas décadas, imaginando que poderia defender muitos Alfred Traps, das ciladas que algumas pessoas impõem a outras.

O advogado de Traps – na peça – não conseguiu absolvê-lo, o que o levou ao suicídio. Da minha feita, os anos me fizeram constatar que eu fui um Dom Quixote, lutando contra os moinhos de uma Justiça excessivamente formal, lenta, desaparelhada. Ao contrário de Traps, todavia, não me suicidei; aposentei-me e encerrei a carreira jurídica para, a partir de então, abraçar, plenamente, a carreira literária.

Hoje, sou outro tipo de Dom Quixote. Todavia, ao contrário do personagem de Cervantes, não luto contra moinhos de vento; luto contra uma tela em branco que, muitas vezes, recusa-se a ser preenchida por letras pretas e ideias coloridas. Até que, de repente, no meio da madrugada, Mussorgsky e Dürrenmatt me livram dessa pane inspiratória e me levam para visitar os quadros de uma exposição.

* O que eu vim fazer neste mundo?

(Revista Bemporto. Edição de maio/ 2015)