Vocabulário, ironia, metáfora: o falante de língua portuguesa em marcha a ré
Elaine dos Santos: ‘Vocabulário, ironia, metáfora: o falante de língua portuguesa em marcha a ré’
Quando concluí a graduação no curso de Letras pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) https://www.ufsm.br/, no final do século passado, além do estágio em sala de aula, diante dos alunos, foi-nos solicitada uma aula expositiva de 50 minutos sobre um determinado conteúdo diante de nossos colegas de estágio, fazendo, claro, parte da avaliação.
Imediatamente, todos os meus colegas sabiam que eu escolheria o poeta Gregório de Mattos Guerra e os seus poemas satíricos. Naquela época, quando findava o curso de graduação, final do século XX, Gregório, o Boca do Inferno, e Manuel Maria Barbosa du Bocage, o poeta português, eram os meus preferidos pela forma totalmente crítica com que viam a sociedade, pela maneira irônica com que manifestavam essas críticas.
Ocorre-me ainda outro texto que sempre teve a minha mais profunda simpatia: ‘Cartas Chilenas‘ https://pt.wikipedia.org/wiki/Cartas_Chilenas, do Arcadismo brasileiro, atribuídas a Claudio Manoel da Costa e Tomás Antonio Gonzaga, em que eles narram as estrepolias do governador de Minas Gerais, como se ele fosse o governador chileno. O Brasil sempre foi um território propício para corrupção, propina, governantes despreparados e sátira / ironia escrachada.
Há uma ironia mais requintada, que exige experiência do leitor, que pode ser encontrada nas obras realistas do português Eça de Queiroz e parece-me que o exemplo mais claro está em ‘O crime do Padre Amaro‘, que é uma crítica contundente à sociedade portuguesa: aristocracia e clero. Mas (cá entre nós e o mundo), o Brasil produziu um esplêndido prosador responsável por obras que são primores em ironia – eu, pessoalmente, amo ‘Esaú e Jacó‘.
O autor/prosador que me refiro, claro, é Machado de Assis e, em particular, o romance ‘Memórias póstumas de Brás Cubas‘, em que um narrador-defunto ou um defunto-narrador assume a fala e dedica as suas memórias ao verme que primeiro roeu as suas carnes. Sabemos todos (Erico Verissimo explorou essa máxima muito bem em ‘Incidente em Antares‘ que mortos e loucos não têm credibilidade e eles podem dizer tudo que lhes aprouver. No caso dos mortos, não se pode matá-los. No caso dos loucos, é preciso comprovar que são, de fato, loucos – de resto, é calúnia, difamação, inveja e afins.
Essa reflexão literária, porém, tem um propósito bem real, nada irônico. Recentemente, retornou à pauta, inclusive, pelas redes sociais, mas também em blogs, jornais e revistas, o termo ‘brainrot‘, que se poderia dizer algo equivalente à podridão cerebral, embora não seja um eventual distúrbio reconhecido por psiquiatras ou neurologistas.
Trata-se, na verdade, de uma espécie de vício em conteúdos fúteis/inúteis, consumidos à exaustão em redes sociais – a mera rolagem de postagens, sem aprofundar qualquer assunto, sem aprendizagem, com qualidade duvidosa. Muitas vezes, uma compulsão por eventos negativos: assaltos, acidentes automobilísticos, assassinatos etc. Qual o ganho individual disso?
Por outro lado, estudos têm apontado (e não precisa nem pesquisar muito para ver as grandes celeumas em redes sociais) a dificuldade para escrever e interpretar textos. Em língua portuguesa, usamos a sequência SVC – sujeito, verbo e complemento para produzir uma oração frasal. Quem respeita? E pontuação? Cadê? Em muitos casos, inexiste.
Chego à questão da ironia e da metáfora. Os mesmos estudos, que já mencionei, referem que há pessoas com uma gigantesca incapacidade para compreender duas figuras de linguagem simplórias para quem, por exemplo, assistia ao programa ‘Os trapalhões‘; um pouco mais elaboradas, talvez, em outros programas televisivos já fora do ar.
Cito pesquisas de Astrides Farias de Lima Oliveira, Aretuza Ladeia de Lima e Vanessa Polli, para não me estender. Preocupa-me o caminho que tomamos se uma pessoa não tem vocabulário para expressar-se com clareza e, para além disso, se uma pessoa se sente ofendida porque não compreende uma figura de linguagem que, incrivelmente, fez sucesso sob a pena do Boca do Inferno, de Bocage, de Eça de Queiroz, de Machado de Assis, passados 400, 300, 200 anos. Estamos andando na contramão, desaprendendo a língua portuguesa?
Prof. Dra. Elaine dos Santos