Ivan Fortunato: 'Corpo, conhecimento, cidade… Universidade!'

Ivan Fortunato

Corpo, conhecimento, cidade… Universidade!

Este texto foi escrito como proposta de reflexão de uma disciplina cursada no primeiro semestre de 2019, no Programa de Pós-Graduação em Humanidades, Direitos Humanos e Outras Legitimidades, ofertada na Universidade de São Paulo. Apresenta-se como um ensaio, no qual se apresentam apenas lascas de ideias que precisarão de tempo para amadurecimento, florescendo ocasionalmente desde que, como um jardim, sejam cultivadas com zelo.

Na disciplina “Corpo: Conhecimento e Compreensão na Cidade”, fomos provocados a olhar o, ao e para o corpo de diversas maneiras, seja retornando semioticamente a um princípio da existência humana no plano terrestre, seja retomando barbáries da eugenia, ou tão somente mirando para coisas mais prosaicas, como pegar um metrô na metrópole paulista ou produzir em casa, artesanalmente, um tonel de cachaça…

Fragmentos múltiplos e complexos de uma existência igualmente múltipla e complexa, mas que não se traduz em uma linha do tempo pronta e acabada. Afinal, passado/presente/futuro tornam-se um único momento, ao mesmo tempo em que as experiências (ou lições) que se passaram se vertem em motivações para um outro futuro… ou apenas conformismo.

Logo no começo dessa disciplina, vários desafios foram lançados na metafórica arena de debates que se criou quando se organizou uma sala de aula em círculo, fazendo os olhares se entrecruzarem, possibilitando/permitindo aproximações que não se explicam a não ser pelo afeto… Eis os reptos fundantes da disciplina:

Somos o que pensamos?

Somos o que comemos?

Somos máquina ou corpo relacional?

Corpo e mente, inimigos ou aliados indissociáveis?

Quem sou eu? De onde venho? Para onde vou? [1]

Mas, é claro, não há como responder tais questionamentos a não ser de forma contingencial, no aqui-e-agora circunstancial que se cria no instante em que se materializam as perguntas. Por isso, pode-se até conjecturar que essas (e tantas outras) interrogações são perenes, acompanhando a própria existência humana. E, pelo fato de que não se respondem, exceto no flagrante é que devem, amiúde, serem lançadas ao ar, individual e coletivamente. Afinal, suas respostas revelam propósitos existenciais, perfazendo com que a existência seja muito mais singular e relevante que a mera existência terrestre.

Ao longo do curso da disciplina, em que se discutiam avidamente propósitos coletivos de existência, alguns fragmentos se tornaram mais evidentes, fossem angustiantes ou jubilosos. Esses, portanto, engrenam este texto.

Para alcançar tal objetivo, foram selecionados dois excertos, representando, respectivamente, angústia e júbilo, sendo: (I.) a relação entre o ser humano e as máquinas, e (II.) uma dúvida a respeito da função social da Universidade.

Assim, a respeito da relação humano/máquina, Raul Seixas já cantava, em 1974:

A civilização se tornou complicada

Que ficou tão frágil como um computador

Que se uma criança descobrir

O calcanhar de Aquiles

Com um só palito pára o motor [2]

Cantor de vanguarda, Raul parecia divisar anos vindouros nas suas canções. Nada de “profeta do apocalipse”, como diz ter sido chamado por imbecis, pois ele já prenunciava um dia de eclipse vindouro que deixaria a nu tudo o que cantava. Não obstante, pode-se inferir que Raul tinha um aguçado senso crítico, sendo capaz de prenunciar coisas futuras a partir de uma leitura profunda do pregresso da civilização. Por isso, dentre outros, já conseguia perceber a fragilidade que há em uma sociedade subordinada às máquinas.

Mas, os computadores e sua capacidade de conectar tudo e a todos virtualmente foram cada vez mais seduzindo a vida, promovendo facilidades, agilizando negócios e a comunicação, encurtando o tempo de tudo, tornando todos os prazos “para ontem” ou, melhor, para “anteontem”. Tudo é virtual, tudo vai pra nuvem. No concreto, no visceral, só há máquinas e não se consegue ir ou chegar sem elas, apesar delas. Há um dito em tom de anedota, cuja autoria desconheço, cuja narrativa é axiomática e sintomática: as máquinas servem para resolver alguns dos problemas que não existiam antes delas.

Nessa conjuntura, entendo que o célebre filme hollywoodiano “O Exterminador do Futuro” é apenas uma alegoria sobre nosso tempo vivido em função do digital, virtual e outros gadgets: se algum recruta do futuro não retornar ao início do século XXI para impedir a proliferação das máquinas, a existência da vida logo estará em xeque.

Toda essa preleção a respeito da fragilidade social diante o domínio maquínico foi colocado em destaque ao longo das semanas de estudo na disciplina na Pós-Graduação. Isso porque as aulas aconteceram na Cidade Universitária, em São Paulo, distante cerca de algo parecido com duas horas de viagem de carro desde a cidade de Itapetininga, no sudoeste paulista, onde minha vida acontece.

Certa quarta-feira, por conta de um acidente na Rodovia Castelo Branco, o trajeto que poderia durar até menos que duas horas, em condições ideais de pressão e temperatura (obviamente), já estava ultrapassando a angustiante marca das três horas. Praticamente estacionado na estrada, apenas conseguia pensar na ironia que há em se ter um velocímetro que alcança impressionantes 200 quilômetros por hora e, após quase uma hora cronometrada por mais um dispositivo que nos controla, menos de 5% dessa capacidade havia sido conquistada. Ao olhar para frente, só era possível observar uma infinidade de veículos igualmente parados, impotentes.

Eis, então, que uma metáfora se apresenta. Seria ao acaso, se não tivesse envolvido pelas questões fundantes, provocadas pela disciplina: trata-se da paisagem percebida pelo retrovisor do automóvel. Para trás, uma fila interminável de carros, demonstrando que não seria possível retroceder, nem se quisesse, conforme capturado na fotografia a seguir (paradoxalmente flagrada pela câmera digital do meu aparelho celular).

 

Assim, pensei na vida regida pelas máquinas e entendi que tanto para trás (ou passado) quanto para frente (ou futuro) dependem de uma compreensão complexa das circunstâncias da vida (ou presente). Seria possível, então, evitar o domínio das máquinas? Ou estamos todos fadados a viver “Um dia de fúria”, tal qual Michael Douglas [3]?

Perguntas que não cessam, mas ressoam, ecoam, permanecem incomodando… Tudo isso enquanto, certamente, os prazos continuam pressionando corpo e alma, as tarefas seguem acumulando, virtual e concretamente na palma da mão, e o tempo não para. Ou para? Sendo medido não por um calendário que segue adiante, mas, por uma ampulheta, sendo cíclico?

Deixando tais perguntas pairando no tempo e espaço da escrita e da leitura, é possível avançar (na linearidade do texto) para o segundo e derradeiro fragmento/momento da disciplina, que foi eleito para esse livre pensar/escrever: uma pergunta feita, na casualidade do debate sobre a “Breve história da humanidade [4]”, trazendo à metafórica arena da disciplina ideias bastante consubstanciadas a respeito do papel da universidade.

Acalorada pela conjuntura nacional a respeito do anuncio de cortes (ou contingenciamentos) das verbas da educação pelo governo federal, a discussão sobre o papel da universidade é profundamente complexa. Perpassa, sem dúvida, pela histórica formação de elites intelectuais que sobrepujam a classe trabalhadora. Mas, mais importante, atua na produção de conhecimento humano sobre o mundo vivido e sobre a própria humanidade. Seja esse conhecimento pronto e acabado para modificar algo urgente e emergente, seja um conhecimento que provoca as certezas, colocando em xeque as estruturas sociais, culturais, econômicas, produtivas etc. etc.

Em essência, a universidade “serve” à sociedade, pois é o espaço legitimado para produção e promoção de saberes de forma plural, séria, profunda. Deve-se ligar à sociedade em seu entorno, agindo em conjunto na solução de problemas, mas também na sua antecipação e na produção de um mundo melhor (no sentido mais prosaico que se possa imaginar). Por outro lado, deve, também, desligar-se da sociedade, promovendo o livre exercício da reflexão, da criatividade, da inovação, da arte…

Dessa forma, a universidade cumpre legitimamente com seu papel social quando, por exemplo, uma disciplina da pós-graduação traz à superfície provocações e problematizações a respeito da própria condição humana, suscitando o pensamento crítico.

Assim, ao tratar do corpo e sua complexa relação com o conhecimento e a compreensão na cidade, temos o Programa de Pós-Graduação em Humanidades, Direitos Humanos e Outras Legitimidades revelando uma maneira bastante substancial de servir à sociedade. Afinal, seus egressos já não podem mais alegar desconhecimento ou ingenuidade a respeito de temas profundos, sejam as origens da própria espécie, seja como a eugenia pode ser silenciosa nas relações cotidianas, seja a saúde coletiva que piora com o capitalismo industrial etc. etc.

 Enlevar o pensamento, a reflexão, a crítica, o conhecimento… Eis, então, a universidade, na cidade, no corpo, na humanidade!

 

Ivan Fortunato  

Aluno regular do Programa de Pós-Graduação em Humanidades, Direitos Humanos e Outras Legitimidades. Professor do Instituto Federal de São Paulo, campus Itapetininga e docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Federal de São Carlos, campus Sorocaba. Contato: ivanfrt@yahoo.com.br

Notas

[1] MOTA, André; NERLING, Marcelo Arno; ROCHA, Eucenir Fredini. Plano de Atividades – Corpo: conhecimento e compreensão na cidade. São Paulo: Diversitas, 2019, Mimeo.

[2] Canção “As aventuras de Raul Seixas na cidade de Thor”, composição de Raul Seixas, álbum Gita, Philips Record, 1974.

[3] Em referência a cena inicial do filme de 1993, cujo título original é “Falling Down”. Nessa cena, o protagonista está preso em um engarrafamento provocado pelo excesso de veículos e obras na pista. Cansado da situação, decide, por impulso, abandonar a máquina e seguir se caminho usando seu corpo, a pé.

[4] Em referência ao livro “Sapiens: uma breve história da humanidade” de Yuval Noah Harari, usado como bibliografia básica na disciplina, publicado no Brasil em 2016 pela LP&M, tradução de Janaína Marcoantonio.

 




Ivan Fortunato: dossiê sobre 'Formação de Professores e História da Educação'

Ivan Fortunato:
dossiê sobre ‘Formação de Professores e História da Educação’

Formação de Professores e História da Educação

A Revista Internacional de Formação de Professores acaba de publicar o dossiê “Formação de Professores e História da Educação” organizado em parceria com o professor Imbernon da Universidade de Barcelona.

A edição está disponível em: https://itp.ifsp.edu.br/ojs/index.php/RIFP/issue/view/29




Defesa de monografia no IFSP de Itapetininga dia 16 de maio

‘Simulador PhET e o ensino da tabuada na educação básica: relato de experiência é o tema’

No próximo dia 16, terça-feira, haverá a primeira defesa de monografia de um curso de especialização do Instituto Federal de São Paulo (IFSP), campus Itapetininga.
A apresentação versará sobre a pesquisa ‘Simulador PhET e o ensino da tabuada na educação básica: relato de experiência” e será realizadas por Lilian Falchi e Ivan Fortunato (foto), ele, professor orientador da pesquisa da pós-graduação em Informática Aplicada à Educação.
O evento é aberto e toda a comunidade está convidada a assistir esse importante momento cultural do IFSP
A defesa será no auditório da Informática, na terça-feira, dia 16 de maio, às 20h45.
A banca será composta pela Profa. Dra. Linda Catarina Gualda (FATEC/Itapetininga), pelo Prof. Me. Ragnar Hammarstrom (Diretor Geral do IFSP Itapetininga) e pelo Prof. Dr. Ivan Fortunato, colunista do ROL.



Ivan Fortunato: 'Feliz ROLniversário'

 

 Ivan Fortunato: ‘Feliz ROLniversário’

  

Minha estreia neste JORNAL (em letras garrafais, sim!) aconteceu em maio do ano passado. Naquela época, mal sabia que estava tomando assento em um grupo histórico de envolvimento sociocultural, que celebra, este mês, 23 anos de idade!!

Ao colocar em evidência este fato, somente posso ufanar fazer parte do “rol” de colunistas deste espaço, cujo fim é a liberdade de expressão. Aqui, posso escrever o que quiser e como quiser. De certa forma, isso aumenta minha responsabilidade, pois tudo o que publico pelo Rol é meu, exclusivamente meu.

Neste período que aqui estive, já tive o privilégio de poder comunicar algumas ideias a respeito do controverso tema de “ideologia de gênero”, sobre o estupro como barbárie, sobre educação para o trânsito, sobre rótulos de produtos enganosos, sobre uma associação protetora de animais da cidade de Itapetininga, um tributo ao saudoso Professor Girafales e sobre o uso indiscriminado e sem propósito de radares nas estradas. Pude, ainda, publicar um conto literário e meu discurso de posse como primeiro-secretário da Academia Itapetiningana de Letras, proferido em fevereiro deste ano.

Com tudo isso, acho que o aniversário deste veículo deve ser celebrado por mim como um espaço ímpar que me foi cedido para poder compartilhar um pouco das minhas ideias e percepção de mundo. Assim, neste momento de cantar parabéns, somente posso replicar o bordão “e para o Rol, nada?”, com um sonoro TUDO!

 

Ivan Fortunato, doutor em geografia pela UNESP, professor do Instituto Federal em Itapetininga, membro do IHGGI e secretário da Academia de Letras de Itapetininga (2017/2018). Contato: ivanfrt@yahoo.com.br

 




Ivan Fortunato: 'Particularmente, penso que o mesmo é um problema'

Particularmente, penso que o mesmo é um problema (*)

            Para introduzir este breve ensaio, devo esclarecer o leitor mais arguto, e os críticos de plantão, que não sou um escritor livre de erros – de qualquer natureza. Por isso, caro ledor, venho aqui contrapor não os erros de escrita que se dão na dubiedade da própria língua, na falta de atenção de quem publica um texto com uma palavra mal digitada, ou apresenta uma sentença com erros de concordância. Aqui, tenho a intenção de abordar erros de linguagem que surgem propositadamente na tessitura de uma ideia, escrita ou falada, quando se busca a erudição.

Um desses erros, que têm incorrido com certa frequência, é o uso da palavra mesmo(a). Claro que não me refiro à sua utilização como adjetivo, tendo o sentido de igual (p. ex.: eu quero o mesmo lanche que o meu amigo pediu) ou repetido (p. ex.: fui atendido pelo mesma funcionária de sempre).

O erro acontece quando o mesmo é utilizado como sujeito ou predicado, na intenção de substituir um desses termos utilizados na frase anterior. Raramente essa prática é falada, mas reiteradamente aparece na comunicação escrita. Os exemplos são facilmente encontrados: placas, comunicados, memorandos, ofícios, notícias, circulares, e-mails, e assim por diante. Da mesma forma, praticamente todos os trabalhos acadêmicos que recebo de meus estudantes para correção, carregam o mesmo erro em sua redação. Não raro, a justificativa pela opção do mesmo ou da mesma, é que a repetição do termo anterior deixaria a redação feia, empobrecida e/ou repetitiva. A explicação é válida, contudo, o mesmo não resolve o problema: piora.

Eis um pequeno exemplo:

  • Um cartaz manuscrito em letras garrafais tinha o nobre propósito de alertar que as vagas em frente a um condomínio de classe média não deveriam ser utilizadas. Isso porque o veículo correria risco de danos materiais, pois o prédio estava, naquele momento, sendo pintado. O cartaz dizia: Motorista, cuidado! Não estacione na frente do prédio, porque o mesmo está sendo pintado. Vê-se uma linguagem complicada, utilizada em uma mensagem que poderia e deveria ser simples: Motorista, cuidado! Não estacione na frente do prédio, porque o mesmo que está sendo pintado. Ou, ainda, mais simplificado: Motorista, não estacione. O prédio está sendo pintado.

O mesmo, além de reduzir a qualidade da escrita, dificulta a comunicação. Por isso, a saída é bem simples: deixar de escrever mesmo ou mesma para substituir termos já utilizados no texto.

Enquanto o mesmo é um problema da linguagem escrita, a linguagem oral tem sofrido com a combinação de duas palavras que incorrem num erro tautológico básico. Trata-se dos dizeres “eu, particularmente”. Ora, tanto o pronome eu, quanto o modo particular (particularmente), dizem respeito à pessoa que fala. Nesse sentido, “eu, particularmente”, é tão redundante (e errado) quanto dizer descer para baixo, ou subir para cima.

Em conclusão, eu, particularmente, tenho alertado meus estudantes e colegas a respeitos desses erros que, cada vez mais, se tornam comuns nos escritos e nas falas. Muitas vezes, os mesmos parecem penduricalhos, que somente atrapalham a compreensão e a comunicação. Ao fim e ao cabo, este último parágrafo apresenta dois erros. Que tal tentar reescrevê-lo?

 

(*) Ivan Fortunato é doutor em geografia pela UNESP, professor do Instituto Federal em Itapetininga, membro do IHGGI e secretário da Academia de Letras de Itapetininga (2017/2018). Contato: ivanfrt@yahoo.com.br

 

 




Discurso de posse do colunista Ivan Fortunato na AIL emocionou o público

Ivan Fortunato: ‘ACADEMIA ITAPETININGANA DE LETRAS: UM ORGULHO’

Pela qualidade da escrita, pelo conteúdo exemplar e pelo exemplo de amor à cultura, o discurso do novo secretário da AIL-Academia Itapetiningana de Letras, professor doutor Ivan Fortunato emocionou a todos quando foi lida durante a cerimônia de transmissão de cargo da diretoria da entidade, dia 2 de fevereiro último.

Por Ivan Fortunato, doutor em geografia pela UNESP, professor do Instituto Federal em Itapetininga, membro do IHGGI e secretário da Academia de Letras de Itapetininga (2017/2018)

Poucas são as cidades que podem contar com uma Academia de Letras própria. Itapetininga, aqui no sudoeste paulista, é uma dessas cidades.

Bem, desta constatação decorrem algumas perguntas, tais como: o que faz uma Academia de Letras? Qual a sua importância? Quem são seus membros?

Neste momento em que assumo um cargo na diretoria da Academia Itapetiningana de Letras, quero esboçar algumas respostas. Mas, estas, estão longe de serem os melhores argumentos. Isso porque minha intenção é apenas apresentar ideias supostamente organizadas, pois deixei a emoção guiar este discurso.

Assim, não vou retomar a história das Academias, cujo início provavelmente remonta ao iluminismo francês e, no Brasil, à entidade fundada no ano de 1897 por ilustres literários, como Machado de Assis, Olavo Bilac e Ruy Barbosa. Ainda assim, é importante anotar que seu início foi espontâneo, gestado por um grupo de escritores que bem queriam sua língua pátria. Em princípio, é isso a que se propõe uma Academia de Letras.

Em princípio apenas, pois, com o passar do tempo, o óbvio foi observado, e outras vertentes culturais foram sendo incorporadas nas reuniões, publicações e ações das Academias. Por isso, uma Academia de Letras pode levar o nome de Letras e Artes, porque ela deve oferecer à população um rol de atividades que vão da publicação de pequenos contos, a grandes eventos culturais, com música, dança, pintura, escultura e tantas outras formas de conhecimento, com destaque para sua atividade principal: promover a Literatura e agir em defesa da língua pátria.

Ao mesmo tempo em que apresento o que faz uma Academia, busco explicar sua importância.  Afinal, uma cidade que tem uma instituição organizada por pessoas apaixonadas pela cultura, pode esperar nada menos que uma aproximação regular e constante das mais diversas manifestações artísticas.  Não obstante, é preciso trazer à tona algo que é ululante: uma Academia de Letras nada faz. Não é a Academia que promove saraus, rodas de conversas literária, exposições, teatros e momentos de boa música.

Não!

Quem faz isso são as pessoas que ocupam suas cadeiras e que aceitaram a honra de ser tornar um imortal, pois, uma vez tendo sentado em uma das 40 cadeiras, seu nome fica eternamente registrado na história da cidade.

Por isso, quando eu, um jovem forasteiro, tomei ciência de que meu nome havia sido apresentado à academia itapetiningana e meu ingresso aprovado pela assembleia geral, fui tomado de grande contentamento. Júbilo que veio acompanhado de certo receio: afinal, tal láurea só pode ser ufanada se a responsabilidade de fazer a diferença pela cultura desta cidade for assumida em sua plenitude.

Eis, então, que neste momento de tomar parte da diretoria da Academia Itapetiningana de Letras, fica a esperança de conseguir retribuir à altura a prerrogativa de ser um dos 40 a ocupar tão distinta cátedra.  E, para encerrar, aceno a todos os confrades e confreiras, advogando para que nos acompanhe nesta jornada, tratando com apreço sua cadeira – que é tão rara!

É isso!




Ivan Fortunato: conto 'Solidão e Cura'

Ivan Fortunato publica seu primeiro conto: ‘Solidão e Cura’

Apresentação

Este ano retomo as atividades como colunista do jornal ROL.
Para começar, apresento um conto que foi escrito há alguns anos, mas, por motivos que desconheço, permaneceu na gaveta.
Espero que a leitura seja tão agradável quanto foi sua escrita!

 

Conto: Solidão e Cura

Saiu de meu consultório disposta a mudar sua vida. De novo. Era o oitavo analista, psicólogo, curandeiro que visitava. Todos lhe diziam a mesma coisa em palavras sinônimas, sugeriam-lhe ações similares e recomendavam-lhe que voltasse na semana seguinte. Ela nunca voltava.

Casada há 35 anos, sozinha há mais de vinte. A paixão por Floriano rendeu-lhe dois filhos prematuros, um aborto espontâneo e outro natimorto (seriam meninos também). Ainda, foi ameaçada a ser expulsa de casa se não consumasse o matrimônio antes do nascimento do primogênito. Tinha quinze anos e jamais terminou os estudos.

Sua história era muito parecida com dezenas de outras mulheres de meia-idade que entravam e saiam da clínica, cuja solução, quase sempre, era cuidar esteticamente de si mesma, iniciar uma atividade física e procurar um amante, caso o marido insistisse em não lhe procurar. Mas havia algo em Ana muito mais interessante do que uma crise pós-menopausa, época em que os filhos já criados saem de casa, o esposo na idade do lobo chega constantemente atrasado em casa porque está em busca de meninotas que irão resgatar-lhe a mocidade e, assim, a constante e assustadora solidão e o esvaziamento dos propósitos da vida: não há filhos e marido para alimentar e vestir, então o que fazer?

Ana contou que vivia do Tarô, aprendera ainda criança com a avó, e descobriu enquanto moça que havia pessoas dispostas a pagar bom dinheiro para alguém que pudesse lhes dizer como seria o futuro, ou se deveriam ou não sair com determinado rapaz. Assim, conquistou um belo pé de meia e, há pouco mais de dois meses, deixou um bilhete escrito ‘te amo, Flor’ e desapareceu.

Quis saber se apanhava em casa, disse que não; perguntei se o esposo saia com outras mulheres, disse que não; falamos sobre sua vida amorosa e disse que estava satisfeita no quarto, ‘apesar de não subir com a freqüência que subia antigamente’, e riu. Foi me procurar porque queria respostas, mais profundas que obtivera com seus oráculos, e menos óbvias do que ouvira das amigas e terapeutas que visitara.

Conversamos, como manda o protocolo, sobre sua infância, seu pai, sua mãe e seus irmãos. Nada. Abordamos seus filhos, suas noras e netos. Nada. Trouxemos para o consultório os dois meninos que não nasceram (na forma de almofadas), ela disse que lhes amava muito e pediu perdão por não ter sido a mãe deles nessa existência. Nada. Acabaram os cinqüentas minutos da sessão e eu tinha outra cliente.

Mais tarde resolvi ligar em seu celular. Havia deixado seu guarda-chuva e eu ameacei doá-lo para algum bazar de caridade caso não fosse buscá-lo. Disse que a única janela que tinha em minha agenda era no dia seguinte pela manhã.

Chegou no horário, colocou o guarda-chuva na bolsa e sentou-se na cadeira preta retrátil. Inclinou o encosto, fechou os olhos e disse que a resposta que veio buscar derivava da pergunta ‘se tenho amor de meus filhos e marido, por que me sinto só?’. Conversamos novamente sobre a infância, pais, irmãos. Nada. O casamento prematuro e o abandono dos estudos. Nada.

À noite, enquanto cozinhava para mim e minha esposa e lutava bravamente para manter Peludo e Bolacha (meus gatos) longe do frango que grelhava para o jantar, pensava em Ana: em 15 anos de prática nunca recebera um paciente que não relatasse problemas e/ou dificuldades, que não apresentava sintomas somáticos de algum distúrbio ou que não se queixasse de nada. Era como se lhe faltasse algo…

Foi quando corri atrás de Peludo em busca de uma fatia de peito de frango – já sabendo que aquele filé não poderia ser aproveitado senão por ele mesmo e seu colega de caçadas – que percebi o que poderia completar a vida de Ana e apagar seu sentimento de solidão.

Abracei e me despedi dos meus dois bichanos, deixei um recado na geladeira dizendo que voltaria em algumas horas, ‘te amo’, peguei minha carteira, as chaves do carro e o endereço de um velho amigo. No caminho ligaria para Ana.

Pouco antes de estacionar na frente da casa do Veloso, telefonei. Disse a Ana que deveria ir imediatamente para casa se encontrar com Floriano. Anotei o nome da rua e o número da casa.

Logo, o casal pode ver meu carro dobrando a esquina e parando suavemente próximo à calçada. Desci do carro com duas criaturinhas assustadas, de bigodes brancos, pelugem amarela e cinza e olhos azuis; carregava uma em cada mão. Disse que tinham 60 dias e que precisavam de um lar, comida, mas, principalmente, muito amor e carinho. Despedi-me com um breve ‘boa noite’.

A última notícia que tive de Ana veio de uma carta que ela deixou com a minha secretária no consultório, há alguns dias. Era um envelope lacrado com cola branca e dois grampos. Dentro, meia folha de papel sulfite com a palavra obrigada escrita em letras grandes de forma. Na letra O, Ana rascunhara o rostinho de um gato.

 

Ivan Fortunato, doutor em geografia pela UNESP, professor do Instituto Federal em Itapetininga, membro do IHGGI e secretário da Academia de Letras de Itapetininga (2017/2018)

 

São Paulo/Itapetininga, janeiro de 2017.