Gonçalves Viana: 'O túmulo do samba'

Apesar de tudo isso, o certo é que São Paulo tem muito samba e muitos bons sambistas, e podemos citar, entre eles: Oswaldo Moles, Geraldo Filme, Germano Mathias, Osvaldinho da Cuíca, Eduardo Gudin e, sobretudo, Paulo Vanzolini e Adoniran Barbosa.”

 

Johnny Alf

Uma noite, em 1965, na boate Cave, na Rua da Consolação, em São Paulo, estava se apresentando Johnny Alf, tocando e cantando com a sua habitual habilidade. Entre os frequentadores, estava um atento Vinicius de Moraes. Em uma mesa próxima, encontrava-se um grupo de pessoas que não estavam nem aí para a apresentação, já meio bêbadas, conversavam em voz alta, sem se preocuparem se estariam ou não atrapalhando o espetáculo.

Foi quando Vinicius dirigiu-se ao grupo e pediu: ─ Por favor, gente, vamos respeitar o artista que está se apresentando, pois ele é muito bom!

O pessoal que já se encontrava embalado pelos eflúvios etílicos, respondeu: ─ Qual é cara, o que você quer? Fica na tua, aqui é São Paulo!…

Vinicius, muito nervoso, retrucou: ─ É! é isso aí! São Paulo é mesmo o “túmulo do samba!”

Um jornalista que estava presente, mas não acompanhou o “quiproquó” desde o inicio, tendo ouvido somente a última frase de Vinicius, no outro dia publicou:

“VINICIUS AFIRMA QUE SÃO PAULO É O TÚMULO DO SAMBA!”

Paulo Vanzolini

Posteriormente, Vinicius ponderou estar arrependido de ter dito isso, pois, afinal, ele sempre gostou muito de São Paulo e disse-o num momento de desabafo. Mas já era tarde, ele ficou marcado pelo resto da sua vida por essas palavras que perduram, mesmo depois da sua morte.

Apesar de tudo isso, o certo é que São Paulo tem muito samba e muito bons sambistas, e podemos citar, entre eles: Oswaldo Moles, Geraldo Filme, Germano Mathias, Osvaldinho da Cuíca, Eduardo Gudin e, sobretudo, Paulo Vanzolini e Adoniran Barbosa.

Adoniran Barbosa

Vinicius, poeta de uma cultura sofisticada, e Adoniran compositor de um tipo de samba muito peculiar, um samba paulista com sotaque de descendente de italianos, abundantes nos bairros do Brás e do Bexiga, compuseram em parceria um samba-canção.

Foi uma parceria acidental, eles não se conheceram para compor juntos. No início de 1957, Vinicius despertou melancólico, muito triste mesmo e, como ele sempre afirmava: “o poeta só é grande se for triste”. Perpetrou, então, um poema já com uma vaga ideia da melodia, tudo calcado na fórmula predileta da época, a música de fossa, mas não se preocupou muito com o problema da música, imaginando pedir a Dolores Duran que a musicasse, segundo ele, a pessoa mais indicada, por compreender e também vivenciar o clima desse tipo de composição.

Aracy de Almeida

Como não conseguiu falar com Dolores, e tendo de viajar para Paris, onde iria assumir o seu posto na Embaixada Brasileira local, deixou o poema e o esboço musical com Aracy de Almeida.

Aracy ficou vidrada na canção e mostrou a Adoniran, que não gostou muito do esboço da música e acabou mexendo na linha melódica, alterando algumas notas do original. Vinicius só ficou sabendo depois, mas aprovou a mudança, pois havia ficado muito bom. Assim nasceu “Bom-dia Tristeza”. Aracy gravou-a, em 24 de maio de 1957.

Maysa

Posteriormente, Maysa a regravou, numa interpretação antológica, imprimindo uma intensa emotividade, reforçando ainda mais o prestígio de Vinicius – levando a tiracolo Adoniran – na MPB.

Mas, Bom-dia Tristeza era uma frase não muito original, pois já havia sido lançada, em 1932, pelo poeta Paul Éluard (1895-1952), em “A Peine Défigurée”, trecho de seu poema “La Vie Immédiate” (Adieu, tristesse / Bonjour tristesse / Tu es inscrite dans les lignes du plafond). A partir de 1954, essa frase tornou-se mais popular, quando a famosa escritora francesa Françoise Sagan, lançou seu primeiro romance, justamente intitulado “Bom Dia, Tristeza”. Esse livro inspirou o diretor de cinema, Otto Preminger, a realizar um filme de muito sucesso: “Bonjour Tristesse”. Outro sucesso sobre o mesmo tema foi “Buongiorno, Tristezza”, bolero de Mario Ruccione e G. Fiorelli, vencedor do Festival de San Remo de 1955.

Noite Ilustrada

Essa composição de Adoniran e Vinicius suscitou uma enorme polêmica, quando o cantor e compositor Noite Ilustrada reivindicou a autoria da música. Afirmava ele, que Adoniran o procurou declarando-se incapaz de conceber uma melodia para aquela letra e o teria incumbido da função. Este, no dia seguinte, entregou a música pronta a Adoniran. Três meses depois, ao ouvi-la no rádio, percebeu que havia sido excluído dos créditos. Ao pedir satisfação, teria ouvido: “O Vinicius disse que queria só dois compositores. Depois a gente faz uma música, juntos”. Até hoje não se comprovou a veracidade desse episódio.

Muitos capitalizaram aquela frase de Vinicius, sobre São Paulo ser o túmulo do samba, para enfatizar uma superioridade – em se tratando de samba – do Rio de Janeiro sobre São Paulo. Mas, os cariocas que, todos os anos elegiam uma música como campeã do carnaval, no de 1965, o samba escolhido, e que sacudiu os foliões, foi nada mais, nada menos que um samba composto diretamente no “túmulo do samba”, por um dos mais tradicionais sambistas paulistas, Adoniran Barbosa, o samba “Trem das Onze”, na interpretação do conjunto, também paulista, Demônios da Garoa.

Nessa época, Adoniran andava meio esquecido, e só não ficou à míngua, porque, ao vencer o concurso de sambas do carnaval carioca, recebeu um prêmio de dois milhões de cruzeiros.

                                                                              (Gonçalves Viana)

 

BOM DIA, TRISTEZA

Bom dia, tristeza

Tão tarde tristeza

Você veio hoje me ver

Já estava ficando

Até meio triste

De estar tanto tempo

Longe de você

Se chegue, tristeza

Se sente comigo

Aqui nesta mesa de bar

Beba do meu copo

Me dê o seu ombro

Que é para eu não chorar

Chorar de tristeza

Tristeza de amar

(Adoniran / Vinicius)

 

TREM DAS ONZE

Não posso ficar

Nem mais um minuto com você

Sinto muito, amor

Mas não pode ser

Moro em Jaçanã

Se eu perder esse trem

Que sai agora às onze horas

Só amanhã de manhã

E além disso, mulher

Tem outras coisas

Minha mãe não dorme

Enquanto eu não chegar

Sou filho único

Tenho a minha casa pra olhar

(Não posso ficar)

Não posso ficar (…)

(Adoniran Barbosa)