A Queda do Cão Cidadão

José Bembo Manuel
‘Sátira sociopolítica na obra
A Queda do Cão Cidadão, de Dias Neto’

José Bembo Manuel
José Bembo Manuel
Capa do livro 'A Queda do Cão Cidadão'
Capa do livro ‘A Queda do Cão Cidadão’, de Dias Neto

A sátira é caracterizada pela ridicularização dos defeitos e vícios de uma época, de uma instituição ou de uma pessoa. Serve-se muitas vezes da ironia e do sarcasmo para induzir à reflexão sobre determinados actos morais, denunciando-os quase de forma eufemizada. 

É a sátira o principal marcador que Dias Neto orienta a produção literária de Dias Neto. Depois de O Taxista, A Festa dos Porcos e Um Camaleão no Executivo, brinda-nos, em 2023, com a A Queda do Cão Cidadão. Trata-se de uma narrativa constituída por dez contos, sendo o título da obra o título do sexto conto.

Trata-se de uma leitura sociocrítica e histórica de Angola e dos angolanos. Nesse sentido, o conto “Quarto de Fezes”, republicado nesta obra, é um dos mais representativos. O ‘Quarto’ parece-nos representar ANGOLA e as ‘Fezes’, os MALEFÍCIOS E VÍCIOS criados e difundidos desde o alcance da independência, sendo denunciados e combatidos pelo Presidente João Manuel Gonçalves Lourenço. 

A minoria que concentra as riquezas do país, é, no conto, metonimicamente, representada por um rei “seus integrantes gostavam de chamar o rei da terra de goloso. Diziam que era pançudo porque comia sozinho as comidas que o solo daquela terra oferecia…” (Neto, 2023, p.54).

A tão propalada liberdade de expressão e da imprensa abriu portas para a inserção de comentaristas apartidários ou da sociedade civil. Esse dado real foi ficcionado nos seguintes termos “De Táxi em táxi, levavam a notícia que aventava que o jornal “ Notícias do Reino” estava a dar cadeiras ao revus, o que significava que também o jornal estava a acusar o rei da terra de ser um pançudo guloso” (Neto, 2023, p.54).

A nova estratégia de comunicação do Presidente da República, por via das Conferências de Imprensa, é igualmente ficcionada como se pode ler em “…o novo Presidente traçou uma estratégia: convocou todos os papagaios e todos os pombos-correios para uma conversa amena na varanda do palácio” (Neto, 2023, p. 56).

Denotam-se também no conto as rixas entre os lourencistas e eduardistas a volta das riquezas acumuladas “porém, havia um pequeno grupo que engordou com o cheiro das fezes do antigo presidente da sua prole. Este ficou muito chateado, pois, ao lançar uma Guerra contra aquele quarto, o novo president queria vê-lo à mingua ou mesmo morto, porque aquele cheiro nauseabundo lhe dava vitalidade” (Neto, 2023, p.56).

Afirma-se que o Estado é o principal agente de violência. No caso do novo rebento de Dias Neto, a violência aparece de várias formas – privada ou institucional. No já mencionado conto, as nuances memorialísticas dos eventos relacionados aos 15 +2 são transpostos no ficcional. No conto “O Caso Suspeito”, a violência institucional é simbolicamente representada pela actuação da polícia que se esquece da função pedagógica que deve assumir e serve-se da força, deixando várias vítimas. 

Por isso, na narrativa, Kota Beguê e Três e Meio, agastados com a actuação policial sobre as zungueiras, em particular, e aos cidadãos em geral, sugerem a privatização da Polícia Nacional conforme se pode ler em “apercebendo-se de que o Governo ia privatizar muitas empresas estatais, e uma vez que se alegava que com o acto tais empresas teriam melhor rendimento, decidiram escrever para o president a sugerir que o Governo incluísse também a Polícia no rol de empresas a privatizer” (Neto, 2023, p. 48).

Fica evidente na obra a relação do escritor com a realidade que o circunda. Práticas pouco comum na administração pública angolana aparece, ironicamente, descrita através de presenças assinaladas no local de trabalho de um “trabalhador” morto. Satiriza-se a chico-espertice de muitos funcionários e trabalhadores que, em conluio com técnicos dos Recursos Humanos, mais passeiam do que trabalham.

A morte de Guimarães, o morto-trabalhador, é do quanto trabalho há a fazer para se aumentar o comprometimento das pessoas depois de conquistadas as vagas de emprego e dos respectivos fiscalizadores.. Neste sentido, aqueles que combatem a corrupção e o furto são rotulados como os carrascos dos infractores. “Continuei ainda na imaginação e dessa vez, coloquei nela o Caetano, o fiscal que nos era um verdadeiro carrasco” (Neto, 2023, p. 13). 

A violência simbólica, desenvolvida pelo Estado Angolano, outro eixo de leitura da obra, empurra para pobreza milhares de famílias e alimentam a coisificação do homem e as futilidades como forma de entreter o povo e a prostituição.

Na narrativa A Queda do Cão Cidadão, de Dias Neto, encontram-se também contos que tematizam essas realidades. Por exemplo, no conto Tempo dos Bolsos, questiona-se a relevância dos concursos de miss diante dos concursos artístico-literários, olhando para os incentivos e prémios de um e outro 

“- Confrade, ela ganhou este carro no concurso?

  • Não sei dizer. Sei apenas que para os concursos de leteratura nem um carrito de três cilindros dão como prémio”. (Neto, 2023, p.25). 

O caenchismo é, n’A Queda do Cão Cidadão, o passaporte para flertar com senhoras endinheiradas, ou seja, para que jovens desempregados e de costas viradas com a formação académica possam, a troco da satisfação de desejos íntimos de banqueiras e empresárias, possam viver no luxo e ter estabilidade social conforme se lê em “Mas estas damas andavam a estudar como?! Aquele Marcelão que nem sabe escrever o seu próprio nome. Assim conquistou como a gerente do banco? – retrucou o musculoso do IPad” (Neto, 2023, p. 38)

O conto ‘A Queda do Cão Cidadão’ satiriza a arrogância e a prepotência de servidores da administração pública, que desumanizam os serviços, humilhando e frustrando utentes. Por outro lado, a arrogância de superiores hierárquicos e a incompetência no desenvolvimento de muitas de suas tarefas animalizam o tratamento.

A obra, pela dimensão pedagógica que encerra, pode ser utilizada a partir do terceiro ciclo do Ensino Primário, fazendo jus ao princípio segundo o qual é de pequeno que se torce o pepino e aproveitando o carácter humanizador do texto literário. 

REFERÊNCIA

Neto, Dias (2023). A Queda do Cão Cidadão, Palavra e Arte, Luanda

José Bembo Manuel

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Crenças mortas pela viralização social

José Bembo Manuel: Artigo ‘Crenças mortas pela viralização social’

José Bembo Manuel

Não é menos falso hoje que os valores tão propalados ontem diferem dos reverenciados hoje, que as pessoas são outras, igualmente as sociedades. As relações não escaparam da liquidificação cultuada por Bauman. Quase tudo é efémero e dança ao ritmo do vento.

Certo dia, num lugar incerto, fizeram-nos crer que um povo sem identidade – jurídica, cultural, histórica e social – é um indivíduo sem raízes e, por isso, sem mentalidade própria, sem história.  Parece-me que faltou quem nos ensinasse que a história é também produto de experiências sociais mais os valores coletivos e individuais.

Ao nascer, é-nos apresentado um mundo formatado por leis, crenças, mitos enfim verdades e inverdades algumas delas inquestionáveis dado que se propagam por séculos.  É assim que ninguém questiona o poder da makumba, a representação do mar, a simbologia dos cinganji, dos makixi ou mesmo a influência dos antepassados sobre os vivos.

Viver, nos dias de hoje, implica, ainda que de forma tardia, um confronto entre aquelas aprendizagens e a liquidez dos novos tempos, onde a likemania desafia-nos a todos, levando uns à rota de colisão com sua história e outros às manobras mais perigosas como o exame de crenças e mitos que dão, de alguma forma, sentido à nossa existência.

Diante disso, uns questionamentos: o que serão os makixi* e os ocinganji** sem o poder mágico que lhe é atribuído desde os primórdios? Será possível ficarmos completamente descaracterizados a ponto de retraçarmos novas linhas da nossa existência com referentes presentes e alvos futuros?

Vivemos entre a morte e a vida. Ameaças constituíram, por décadas, estratégias educativas e de controlo de mentalidades. Cultuamos a nossa existência, reverenciamos crenças e mitos em eminência de falência diante dos desafios da modernidade e da revolução tecnológica.

Somos treinados a crer no poder místico da natureza sem nunca o desafiar nem desalinhar. A likemania normalizou a exposição do corpo feminino, tornando-se na moeda viral, ressignificou as massagens e a prostituição entre comunidades culturalmente rígidas, renomeou a vida e novos símbolos emergiram, atentando a aparente sanidade mental de conservadores. As crenças à volta do poder místico são também postas em cheque. As objetivas captam agora os espíritos e os nossos semi-deuses, antes invisíveis e intocáveis, são hoje tão sedentos pelas likes que se deixam desmistificar e, por extensão disso, somos reduzidos a nada.

Crenças mortas, mitos desfeitos, mais luzes nos olhos de gente cujos valores a muito se diluíram na liquidez a que a viralização tecnológica nos leva. Os escrúpulos e o obsceno são cultuados por gerações cujo fito é a revolta e que percorre o ego inflamado, enquanto se entoam cânticos de saudade.

* Makixi. Uma palavra que vem do candomblé bantu da Angola. Designa, na Angola, tanto a divindade incorporada, quanto o assentamento.

**  Cinganji [t∫inga:ndji] – é uma figura mítica da etnia Ovimbundu. Está associada à exaltação cultural, geralmente ligada a rituais de circuncisão e mesmo animação em eventos festivos com relevante simbolismo no meio rural.

José Bembo Manuel
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José Bembo Manuel: 'Abrilena'

José Bembo Manuel

Abrilena

Foto por José Bembo Manuel

Abril de chuvas mil

Que corações inundas

Emoções desabam

Certezas extenuantes.

 

Tu és…

 

Simples mente vida humana

Uma deusa, mãe zona

Zás de bravura e determinação

Exemplo és tu, ente que brota vidas

Tudo que a vida acompanha

Honesta emocional mente.

 

Herdeira de ritos

Especiais atributos que aclaram passos

Rumos, caminhos e vidas inteiras

MULHER dentre mulheres 10focadas

Esquecidas na herança dos tempos

Livre

Independente

Naturalíssima mente

Discreta mente disciplinada

Amada intempestivamente.

Rainha de descendentes seus

Afável a detratores vis

Uma na nas plurais idades.

 

Nada perde na esperança

Une forças para sucessivas lutas

Muda-se para mil direções sem o foco perder

Amante da doce essência.

 

José Bembo Manuel

 

 

 

 




José Bembo Manuel: 'Paz por uma ficha'

José Bembo Manuel

Paz por uma ficha

O chão se confundia com o céu. Todo ele marcado a branco. Parecia o Paraíso. Dizem que no Paraíso tudo era sereno, calmo e limpo como a cor branca. O chão que todos pisavam era assim. Branco. Branco como o amanhecer. Três dias passaram-se desde Dia do Pensar País. Frustrados e (de)mentes do movimento CSJIPS – Clamando por Solidariedade, da Justiça, Igualdade e Paz Social – obrigaram-se a si e aos demais a pensar de novo uma terra crónica e sorrateira. Conhecem-se desde a infância e sempre conviveram. Os seus pais tudo fizeram para que se mantivessem unidos. Foram educados de que querer é poder e que a revolução é necessária para o alcance de mudanças. Mas a ambição desmedida pelo poder lançou cada um para o seu lado.

A Impunidade assaltou o palco das decisões. Por isso, foi necessária a criação da CSJIPS, a fim de traçar, juntos, estratégias para reverter a situação. O rei estava completamente ensopado na merdisse criada pelo seu complô. A vontade de encher o papo engoliu o plano de resolução das makas (I) do povo. A Corrupção ganhou contornos impossíveis de esconder. Os reguladores, em vez de regular o trânsito, caçam clientes mototaxistas ou taxistas, que alimentam a pança de delinquentes mascarados de lotadores e detentores de terras do povo.

Cada um, ao seu nível, seleciona sua vítima. Métodos da DISA são convocados se a presa mostrar-se espedicta.

A Igualdade, amável como sempre, resistia graças a sua capacidade de fantasiar-se consoante os contextos. Ela estava na periferia, entre almas escondidas em corpos cadavéricos. Já estava na sexta era das fantasias e dela a descaracterização continuava em crescendo. A Justiça, solitária, dependia das forças que um dos oponentes tivesse em maior quantidade. Ela insinuou sempre que viver é lutar incessantemente. As pessoas, cansadas ou extasiadas, invocam a Divina justiça quando a Paz Social continuava a sonhar com as vivências pós-ungamba (II), afinal o mais importante era resolver o babulo (III) do povo.

Foram todos enganados. Ele nunca foi a prioridade do rei. Diz-se por aí que ofereceu o baú em troca da cadeira 1 de Ngola. E, como em qualquer ritual de magia, existem sacrifícios exigidos. Os melhores filhos da pátria perdem-se por isso mesmo.

O álcool anestesia consciências ávidas por transformações. Protestos são feitos longe do cadeirão do rei. Todos veem os males, todos se lamentam. Todos enojam-se da miséria que decisões deslocadas da realidade causam. Vidas perdem-se. Frustrações acendem-se, decepções nascem e com ela nasceu também a Maria Coragem, disseminadora de esperança e crença aos fatigados. Ela limpa todas as lágrimas que correm dia e noite em rostos perdidos.

Era chegado o dia de acordar a Paz Social do sono que já se parecia o abismo. A Justiça confessou ter menos poder e espaço que a Impunidade. A Solidariedade alegou não fazer o seu papel porque aquela terra era só para Chico-espertos, disfarçados de visionários.

A Paz manteve-se moribunda, sem armas. Pediu uma caneta e, numa tira de papel, escreveu:

–  AS CONDIÇÕES PARA A MINHA EXISTÊNCIA FORAM CRIADAS. MAS NUNCA FUI DESEJADA. ESTOU MORIBUNDA. Olhem à volta. O que vêm e sentem?! – questionou em seguida a Paz Social.

– Serenidade, tranquilidade. Vemos as nossas potencialidades humanas e naturais. – responderam em uníssono.

Uma gargalhada ecoou no espaço e um remoinho se abateu sobre a local que agora estava sem teto. Todos viram o branco esvair-se e o silêncio rei se tornou.

– O que olham os vossos olhos agora?! O que sentem?! – indagou aos seus companheiros a Paz Social.

-Vi o quão inútil tenho sido diante da podridão humana. Vi no remoinho juventude perdida por furto de galinha e fartura pública leiloada entre justiceiros. Vi homens cuspindo palavras de esperança a gente sem esperança, porque a espera partiu para o Inferno conquistar e pais caçando pão no lixo para seus filhos alimentar. Sinto-me culpada e impotente. – respondeu a Justiça.

A Paz Social sentencia: – Somos todos impotentes. Fomos armadilhados a cúmplices deste mal. Vimos todos jovens frustrados por apostas mal sucedidas. Todas as fichas não entraram. Quem as engendrou nunca quis que entrassem. A serenidade e tranquilidade eram efémeras como as fichas de esperanças perdidas que branqueavam nosso lugar e nossas vidas. Tudo por uma ficha. Paz por ficha alguma. Nunca fomos nós, mas a vontade de acertar na aposta desportiva e resolver os makulu (IV)que Ngola nos legou como herança. Esperemos para ser nem branco, nem preto. Apenas nós na terra que Nzambi nos deu.

José Bembo Manuel

martinsbembo@gmail.com

GLOSSÁRIO

I- Maka. conflito, discórdia. 2. assunto, questão. 3. história com fim instrutivo. Do quimbundo maka, «palavra».
II- Pós-ungamba – hibridismo lexical que significa posterior à escravatura.
III- Babulo – problema
IV- Makulu – do kimbundu. Plural de dikulu que, em Português, significa problema.
V- Nzambi é um termo utilizado pelos angolanos que propriamente significa DEUS. Nzambi também é um ser supremo que criou o universo. Exemplo de uso da palavra Nzambi: Nzambi é o criador do céu e da terra, os crentes adoram Nzambi.

 

 

 

 




José Bembo Manuel: 'Estrada'

José Bembo Manuel

Estrada

múltiplos destinos leva

marca do tempo carrega

solitária

com gente viajada em laçada

cansada

vezes sem conta estuprada

destinada a companheira ser

fiel e presente

da preta esculpida

ou do avermelhado areal camuflada

ora por sangue banhada

pisada pela negrura dos homens

In dolor é

ladeada por orgânicos verdejantes

une desavindos horizontes

engole

tanta vida

tanta (in)decência

silêncios vomita

a sobrevivência anuncia

vida

terror

impressões

culturas

caminhos

cruzam-se

escrevem unas páginas

escrevem roncos na estrada certa.

 

José Bembo Manuel

martinsbembo@gmail.com

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 




José Bembo Manuel: 'Entre o estômago e o bem-estar'

Jose Bembo Manuel

Entre o estômago e o bem-estar

Enquanto seres humanos, o melhor que podemos ser é mesmo sermos humanus. Sê-lo, na contemporaneidade, devia ser a tarefa mais fácil, considerando a evolução da nossa espécie, da técnica e da ciência. 

Os humanos, tal como muitas outras espécies animais, não conseguem viver sem que estejam relacionados uns com os outros. Essa relação dá-se mediante (in)compreensões, 10 amores, angústias, solidariedade e egoísmos de vária ordem. A inteligência e a razão diferenciam-nos das demais espécies. Elas levaram-nos à sistematização dos grupos, modos de vida, cultura e definição de padrões considerados universais e específicos para cada realidade. Quase tudo foi feito para a preservação do bem mais precioso –  a vida. Porém, a criação de grupos e classes sociais não obedeceu a factores horizontais, mas verticais, estando uns no topo e outros na base. 

A disposição organizativa adoptada serve por si mesmo para os (des)equilíbrios sociais. A alteridade, nesse sentido, presta vassalagem à múltiplos interesses. Por exemplo, somos convidados a embarcar no jogo democrático que anestesia aqueles que, no voto, depositam todas as esperanças de humanização da Nação, e empodera uma minoria que implora a eleição, mas que, quase sempre serve aos interesses extra-eleitores.

O poder é alvo de disputa por uma minoria, a quem se confia a responsabilidade de servir sem ser servido, bajulado ou temido. As fórmulas estão feitas. Ninguém se importará com o poder se os governos forem humanos e conseguirem humanizar os governados. Enquanto a alteridade não acompanhar quem tem a missão de servir o povo, quase nada se pode esperar senão violência e a extinção da espécie. Somos carrascos da nossa espécie. Anestesiam-se vidas inteiras, silenciam-se utopias e pregões de pseudoesperanças são esquecidas ao ritmo do deixa a vida me levar. Viver, entre o povo, é cada vez mais difícil. Por consequência, entre sobre (e) viver, os governos preferem sobreviver e o povo opta pela (re)existência, ressignificando marcas da violência a que está exposta.

A ânsia por tempos melhores esbarra na canibalização de seres que venderam a humanização, que tinham à troco de comodismo, poder, e estômago sem espaços para tanto que possuem. Assim, males como a corrupção, o nepotismo, a bajulação e o oportunismo orientam o comportamento social. Na terra de Ngola, em boca fechada, moscas não entram e os meninos não devem falar sobre as makas do seu tempo. Eles só podem bambilar(1) para aceder às migalhas das benesses comuns ou ficar condenado a lumpenagem, pois quem com ciência protesta seja o que for, era frustrado e hoje é lúmpeno.

Aqueles que vendiam o sonho da humanização arrasaram almas que se dedicaram a pilhar ventos de consciência de alteridade. O poder implica alianças e, nestas, quem mais oferece alcança-o. No final, a luta pela proteção do estômago vazio protege castelos de areia.

A viralização do proteccionismo do estômago vazio instalou-se entre os vários estratos. As instituições estão menos humanizadas a cada dia. O veneno está nas lojas, nos supermercados, nas grandes fábricas a fabricar ricos e empoderados de  à troco da falência de seus semelhantes.

Humanizar só interessa aos sonhadores. Aos caçadores de escadotes poderosos, importa tudo menos ser humanus. A manutenção do poder e do conformismo é o alvo de kapulíticos vendidos, ou seja, rendidos à robotização que visa a extinção da espécie. Aqui, Nzambi tukwatekese. A pilha esvaiu-se porque a vida segue seu curso e exige que a resistência seja convidada de honra daqueles que tudo o que querem é comida na mesa, escola para a prole, hospitais e empregos porque forças os ossos ainda têm.

  1. Bajular

José Bembo Manuel

martinsbembo@gmail.com

 

 

 

 

 




José Bembo Manuel: 'As Hierofanias em Cangalanga: A doida de cahoios'

Jose Bembo Manuel

As Hierofanias em Cangalanga: A doida de cahoios

Cangalanga: a doida de Cahoios é o título do mais recente espetáculo da Companhia Enigma Teatro, cuja estreiado foi no dia 13 de julho de 2022. A terceira exibição, a 3 de setembro de 2022, foi enquadrada na 7.ª edição do Circuito Internacional de Teatro (CIT-Angola), no Elinga Teatro, em Luanda, depois de já ter sido apresentada no âmbito do Festival Internacional do Cazenga (FESTECA). O texto é uma adaptação de José Mena Abrantes ao romance, intitulado Segredo da Morta, da autoria de António de Assis Júnior, encenada por Tony Frampénio, que é o diretor daquela companhia.

A adaptação de José Mena Abrantes convida o público a (re)leitura de um romance que marca o início da ficção angolana, evidenciando os costumes dos angolanos. Do texto teatral, os entornos estéticos e a ênfase pelos costumes evidenciam a relação entre dois mundos opostos – o material e o imaterial.

Nesse particular, o leitmotiv é-nos revelado, aos poucos, através de mitos, crenças, sonhos e outros símbolos que sustentam a relação entre o sagrado e o profano. De acordo com Mircea Elíade (1992, pp.13-14), “o homem toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta, se mostra como algo absolutamente diferente do profano”. Logo, constituem hierofanias os sonhos, os ritos e as canções que muito contribuíram para elevação estética do espetáculo Cangalanga: A doida de cahoios. A exibição, nos dias de hoje, está aberta à várias leituras, porquanto não constitui, atualmente, dúvidas de que estamos numa crise de valores.

A sociedade retratada tem a tendência para viver o mais próximo possível do sagrado ou muito perto dos objetos consagrados. Na cultura angolana, em particular e na africana no geral, essa tendência é compreensível por se acreditar que o sagrado equivale ao poder e, em última instância, à realidade por excelência.

Por via das hierofanias representadas e vivenciadas pelos personagens ajudam, como já afirmamos acima, a revelar o que os olhos de Cangalanga viram. Nesse sentido, o sonho, segundo Chevalier e Gheerbrant (2010, p.618), é um dos melhores agentes de informação sobre o estado psíquico do sonhador.

Na tradição africana, muitas vezes, os sonhos são encarados como reveladores de mensagens dos antepassados, sobretudo quando, em vida, foram vítimas de injustiças e/ou traições. Ou seja, os antepassados voltam e contatam o mundo dos vivos por via dos sonhos para, entre outros fins, ajustar contas e alertar os vivos sobre situações/ problemas mal ou não resolvidos.

Chevalier e Gheerbrant (2010, p.595) afirmam que a serpente visível é uma hierofania do sagrado natural, e, não espiritual, mas material. No mundo diurno, surge como um fantasma palpável, mas que desliza entre os dedos, da mesma forma que através do tempo e do espaço mensuráveis e das regras do raciocínio para se refugiar no mundo subterrâneo, donde provém e onde imaginamos, intemporal, permanente e imóvel na sua completude. Veloz como o relâmpago, a serpente visível surge sempre duma abertura escura, fenda ou racha para cuspir a morte ou vida antes de voltar para o invisível.

É assim que a aparição de uma serpente, que, em seguida, é morta, prenuncia a perdição da senhora Ximinha Belchior – outra personagem – e os sonhos, a morte de oportunistas que se aproveitaram de pertences alheios.

A ideia, entre os angolanos, de que os defuntos, revoltados, podem provocar a morte de prevaricadores ajudou sempre na formação da cidadania e preservação de valores. Pelo que, o texto teatral Cangalanga: A doida de cahoios, evidencia essa particularidade através de sanções impostas à Cangalanga e suas duas amigas, que foram condenadas a morte.

Por fim, as canções selecionadas, associados aos jogos corporais conferem ao espetáculo teatral valores estéticos e culturais típicos da encenação que lhe foi dada. A dualidade actor-texto deixaram perplexos elementos do público, que se sentiram convidados a reler um dos clássicos da literatura angolana – O Segredo da Morta, de António de Assis Júnior. Evoé Literatura Angolana!

Evoé teatro angolano!

Vivas as artes!

José Bembo Manuel

Referências Bibliográficas

  • CHEVALIER, Jean. e Gheerbrant, Alain (2010). Dicionário de Símbolos. Tradução de Cristina Rodriguez e Artur Guerra, Teorema, Lisboa.
  • ELÍADE, Mírcea (1992). O Sagrado e o Profano. Tradução de Rogério Fernandes, Martins Fontes Ltda, São Paulo.

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