Artigo de Marcella Souza Carvalho: 'É preciso falar sobre a Rouanet'
Marcella Souza Carvalho (*) – ‘É preciso falar sobre a Rouanet’
A Lei Rouanet tomou conta dos meios de comunicação nos últimos tempos de maneira escandalizada. Tem sido atrelada, de forma equivocada, à polarização política atual. A grande maioria lê, ouve e crê em manchetes que nem sempre prezam pela imparcialidade, tampouco informam a completude dos fatos.
Falemos, então, sobre o que não foi amplamente noticiado acerca da mais recente polêmica: a operação ‘Boca Livre’ como uma consequência de investigações antigas do próprio Ministério da Cultura (MinC) e do Ministério Público Federal, iniciadas em 2011. Naquela época, foram congelados e inabilitados os projetos da empresa alvo da operação. Além disso, esse esquema criminoso não tem relação com as problemáticas que há anos vêm sendo apontadas sobre as limitações da lei.
É preciso esclarecer, primeiramente, que o dinheiro da Rouanet não sai dos cofres públicos diretamente. Tampouco a lei tira recursos de outras áreas que alguns julgam ‘mais importantes’ que a Cultura. Não é o MinC que escolhe dar dinheiro a este ou aquele projeto, quem decide são as empresas patrocinadoras. A lei não faz restrição para artistas mais ou menos consagrados. Há, no mínimo, três etapas de avaliação para só depois captar a verba para a realização. Contudo, a maioria dos aprovados não consegue captar.
Em 2015, apenas 23,14% dos valores aprovados foram efetivamente captados. A renúncia fiscal correspondente à Lei Rouanet é de aproximadamente 0,48% dos cerca de 270 bilhões que o país deixa de arrecadar com outros benefícios de incentivo fiscal (como aqueles que beneficiam o comércio de cigarros, bebidas, automóveis, sem falar na imunidade fiscal das igrejas).
Em 25 anos de existência, o que se tem há anos noticiado pelas militâncias da cultura e pelo próprio MinC é que a Rouanet apresenta vícios profundos: o fato de serem três mecanismos e só um deles funcionar – o mecenato; o fato das decisões dos projetos que recebem verba acabarem sempre nas mãos do departamento de marketing das grandes empresas, que priorizam projetos de renome em detrimento de coletivos e artistas independentes e das culturas populares; a concentração da renúncia fiscal na região sudeste, entre outros.
O maior problema é que há anos a Rouanet é entendida e tratada como a própria e única política cultural do país quando, na verdade, está muito longe disso. Lei de incentivo não é política cultural e, sim, instrumento para concretização de uma política para a área, que precisa minimamente atender à extensão da territorialidade de todo um país, bem como da diversidade de suas expressões culturais. A concentração regional e o desequilíbrio no apelo mercadológico para conseguir os recursos descredibiliza o mecanismo.
Não restam dúvidas que a lei precisa ser aperfeiçoada e, embora essa reforma exista há seis anos em forma de Projeto de Lei, a aprovação está parada no Senado. Chama-se Programa Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura (ProCultura), resultado de mais de 10 anos de intensos debates e estudos sobre como aprimorar a participação do Estado no fomento ao setor cultural, juntamente ao Sistema Nacional de Cultura.
Não é preciso demonizar a Rouanet, mas também não se deve aceitá-la da forma como está hoje. Nesse sentido, a solução mais rápida para isso está na aprovação do ProCultura. Não há motivos para insistir na defesa de um modelo obsoleto e excludente, é necessário lutar por políticas efetivas na área da cultura e, neste momento, em especial, pela aprovação do ProCultura e pela preservação e continuidade do Sistema Nacional de Cultura.
*** Marcella Souza Carvalho é advogada da Andersen Ballão Advocacia, graduada pela UniCuritiba, especialista em Gestão de Projetos Culturais pela Universidade de São Paulo/USP (2015), mestranda em Ciências Humanas pela Universidade de São Paulo/USP. É integrante do Conselho Nacional de Políticas Culturais – CNPC/MINC (2015/2017) e membro da Comissão de Assuntos Culturais e Propriedade Intelectual da OAB/PR.
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