O leitor participa: Lizane Agostini, de Ijuí (RS): 'O quarto escuro de dormir'
O quarto escuro de dormir
E me senti culpada por sobreviver,
diante de toda a tua fala de morte em meus ouvidos,
grudando, enlameando e adoecendo meu corpo,
com teu corpo junto ao meu.
Foi tortura cada imposição.
Foi assassinato cada ameaça por não contar,
o que cada noite ou momento a sós, revelava de destruição.
Então, enterrei minha vida,
Usei calçados apertados para não poder caminhar.
Não tomei água para assim me desidratar.
Rasquei minhas roupas, para não ter o que vestir.
Deixei de comer, para não ter forças.
Tapei meus olhos para não enxergar mais.
Sufoquei meus pedidos de socorro.
Deixei escorrer lágrimas escondidas no travesseiro.
Paralisei na cama destruída por tua voz e o que fazias comigo.
Virei a cabeça ao lado, fazendo de conta que estava dormindo,
pois, não adiantava lutar contra com o que tinha o domínio sobre a dor.
Tu me tiraste a vida, os sonhos, todos os planos,
os recomeços, a alegria, o brilho no olhar
e a ingenuidade em ser ainda uma criança.
Tu me impuseste os silêncios como única forma de ainda viver.
E eu me vi perdida, incoerente, amordaçada por tuas mãos.
Por pouco não me perdi por completo,
querendo me sentir segura em algum lugar.
E os desafetos foram grandes, por eu não saber explicar.
Impossível ser a mesma eu, diante de tantas lembranças,
diante de tantas fugas, dos pedidos de socorro,
diante de tantas vergonhas em não conseguir provar.
Descobrir passados, revirar memórias,
acender a luz no quarto
e conseguir ver quem acabou com minha infância.
Acordar dos pesadelos, parar de chorar de dor.
Sim, medos somem quando a luz se acende
e se pode ver quem veio me possuir.
Medo da voz no escuro, medo das mãos que tocam,
que tiram a roupa e me desnudam a infância.
Medo das torturas da madrugada, quando aguentava calada,
para que tua mão não apertasse mais minha garganta.
Medo do teu ódio por eu existir, misturado com prazer em possuir.
E me pergunto, porque deixaram minha infância ser assaltada
e jogada pra fora de qualquer lugar seguro em que podia estar
e apenas dormir?
Tortura, crueldade em tão poucos anos de vida.
Não desejo vingança, apenas o justo por uma vida sofrida,
molestada e cheia de medos que eu nunca sabia como explicar.
Hoje eu sei a quem pertenciam
aquelas mãos sujas de morte que queriam me calar.
Hoje eu sei explicar e talvez por isso a dor venha com mais força
ao eu contemplar o que era aquele lugar.
Escuro quarto de dormir, escura vida,
onde o que não se podia mais possuir,
se destruiu para não que não lembrasse quem a possuiu.
Por favor, não quero mais brincadeiras de “bicho-papão”.
Por favor, para com este teu prazer mórbido
de querer mutilar e me desejar rogando a teus pés,
para tu sugares minha alma de vez.
Por favor, para com esta tua insanidade enferma por mim.
Quarto escuro de dormir, onde a morte ronda e emudece,
enfraquece e sufoca minha respiração.
Escuro é o lugar onde mora o “bicho-papão”,
que tapa minha boca e me faz gemer de dor,
ali, na cama que enforca a infância e enterra qualquer criança.
Luz, eu quero luz acesa para poder dormir,
e poder acordar deste pesadelo mórbido em existir.
Não me deixe morrer nas mãos de quem me possui.
Por favor, eu só quero viver sem pesadelos reais com “bicho-papão”,
a cada noite em que todos se recolhem para dormir
e eu morro pouco a pouco em suas mãos.
Escuro quarto de dormir, escura vida de quem sofre nas mãos
dos que só sabem possuir.
Por favor, acenda a luz em nosso quarto de dormir e nos ajudem a viver.
Lizane Agostini – 18.05.2020.
Membro do Círculo dos escritores de Ijuí – Letra Fora da Gaveta e
Membro do Fórum da Mulher de Ijuí