Pedro Novaes: 'Eu, lixeiro'
Pedro Israel Novaes de Almeida: EU, LIXEIRO
Perguntei a um cidadão, com o mesmo uniforme, se também era lixeiro. Raivoso, o cidadão respondeu que me processaria, se voltasse a usar o termo.
Em tempos de rigorosa censura, lixeiros foram nominados garis. Hoje, ninguém mais é empregado, todos são colaboradores.
Na maioria das residências, o lixo é distribuído em sacolinhas de supermercado, e não é fácil equilibrá-las, até o caminhão. O motorista parecia sentir um prazer quase sexual em acelerar o veículo, tornando difícil alcança-lo.
O lixo revela a condição das famílias. Pobres descartam ossinhos de frango, feijão ardido, espinhas de peixe e macarrão endurecido.
Ricos descartam poucos resíduos orgânicos, e muitas embalagens, a maioria com rótulos estrangeiros. Parece incrível, mas as embalagens das piores rações aparecem justamente nos bairros mais chiques.
Logo cedo, recebi a ordem para não coletar garrafas de vidro e pedaços de isopor. O isopor é uma unanimidade internacional, tido como absolutamente imprestável.
Vez ou outra, éramos forçados a chamar a polícia, quando algum morador insistia para que levássemos sua sogra.
A crise diminuiu a quantidade e a qualidade do lixo. Quando surge algum novo escândalo, aumentam os títulos de eleitor descartados.
É frequente a ira dos moradores, com o valor cobrado pela prefeitura, para a coleta do lixo. Graduar o valor com base na área construída e extensão do terreno realmente é injusto.
Cães, outrora vira-latas, hoje são rasga-sacos. Muitos levam a sério a concorrência, chegando a morder os pobres garis.
Existem moradores preocupados com a segurança. Costumam manter contas bancárias com baixos saldos, e deixam cair os extratos junto ao portão, para iludir curiosos e mal intencionados.
Não existem garis comissionados. Para baixos salários, o acesso só é possível mediante rigorosos concursos públicos.
Idosos são os mais cuidadosos, caprichando na elaboração do lixo a ser coletado. Costumam descartar embalagens de remédios, resíduos de chá e revistinhas eróticas.
Corruptos picam em mil pedaços os papéis, e o lixo sempre apresenta resíduos de festa. De quatro em quatro anos, esperam os garis no portão, para um sorridente cumprimento.
Com a aproximação do natal, os garis ganham muitos panetones, por coincidência aqueles que ameaçam encalhar nas prateleiras dos supermercados. Em dezembro e janeiro, as famílias dos garis dedicam-se à dieta dos panetones.
Garis não guardam dias santos e feriados, e exercem o mais vigiado dos serviços públicos. Qualquer falha é imediatamente comunicada à imprensa, com o estardalhaço de sempre.
Acordei convencido de que os garis deveriam receber o mais alto salário da prefeitura.
O autor é engenheiro agrônomo e advogado, aposentado.