Manoel Peres Sobrinho : 'Fragmentos culturais do universo ficcional do contista João Kruguer'

Manoel Peres Sobrinho : ‘Fragmentos culturais do universo ficcional do contista João Kruguer’

 

     Quando um homem escreve com certa frequência, baseia-se em sua própria experiência. De onde mais retiraria material para a sua obra? – Arthur Miller, teatrólogo norte-americano.

 

Estima-se que João Kruguer tenha escrito mais de 700 trabalhos literários (conforme informação do Jornal Cruzeiro do Sul), mas também sua obra pode ser avaliada em mais de 1000 títulos (Marcelina Maria Assunta Griga, filha do Autor). Os números, quaisquer que forem, nos deixam a nítida impressão de um criador fértil, laborioso e industrioso, se levarmos em conta sua origem e sua carreira escolar.

Autodidata, procurou se municiar de tudo o que podia ajudar na construção de seu ideal literário.

Lendo alguns dos seus trabalhos, somos logo informados de que sua inspiração tinha múltiplas fontes, que procurava dissecar, na tentativa de alcançar êxito em seu objetivo. Daí sua linguagem heterogênea, mesclando o português castiço, da linguagem formal, com o coloquial que usamos na comunicação do dia a dia.      Deixava fluir o pensamento, mais rápido que a mão, sem se importar como poderia ser expressado, desde que a ideia permanecesse fiel e fosse fidedignamente retratada.

Coisa de gênio!

Os temas encontrados em seus trabalhos variam muito. Passando por ‘Velhas Cartas de Amor’ ao trabalho na pedreira. Seu leque de inspirações abre para uma profusão de assuntos, tais como: animais (cabra, cabritos, bodes), fábrica de tecidos, assuntos incidentais, natureza, religiosidade ─ indo do Catolicismo à mistificação da assombração ─, futebol (copa do mundo), e família, que ele prezava muito, entre outros.

Os nomes emprestados para a sua obra são aqueles do comum uso entre interioranos: Liduino, Germano, Raimundo, Paulinho, Chico, Ticão, Delecio, Preto Norato, Renato, Tiburcio, Legário, etc. Também aparece Martinho e Lutero. Talvez por influência dos protestantes da cidade.

Em sua linguagem eclética, usa tanto termos mais requintados, tais como “desvanecido”, “simulacro”, “colóquio”, “imprecar”, “obtempera-lhe”, como outros, nem tanto, mas do uso comum caboclo.

Gostava de construir frases de profundo valor poético, como “inocente sem quantia”, “afundada em cismas”. Daí, ser reconhecido hoje não somente como contista, mas também e, merecidamente, como poeta.

Para dar maior peso ao que escrevia e introduzir melhor o assunto, usava epigraficamente textos, excertos e citações de fontes variadas do seu conhecimento e aquiescência. De Fénelon, citou: “Sem os grãos de areia não haveria montanhas”; de Tristão de Ataíde: “Só o que fazemos por amor fazemos bem”. Máximo Gorki também aparece, ao dizer que “As máquinas tornam a vida mais difícil e produzem muito barulho”. A Mika Waltari, faz pronunciar: “Tudo nesse mundo tem uma explicação natural, e no mais das vezes simples”.

Por ser religioso, não deixava de citar obras de cunho espiritual. Como por exemplo, retirou este pensamento do ‘Livro dos Espíritos’: “Tudo tem a sua razão de ser. Nada acontece sem a permissão de Deus”.

Tinha uma especial predileção pela Bíblia, que frequentemente citava quando cabia no texto que estava produzindo. No seu trabalho ‘O Desconvinhável’, citou São Marcos, capítulo X, versículo 23: “… dificilmente os ricos entrarão no reino de Deus”. Em ‘Alma Gêmea’, cita uma frase do Livro de Jó sem destacar o capítulo nem o versículo: “E sentaram-se com ele por terra durante sete dias e sete noites e nenhum lhe dizia palavra, porque viam que a dor era veemente”. Em um texto seu, com título ‘Reconhecimento’, do livro de Ruth aparece, do capítulo 11 o versículo 3: “Foi Ruth, pois, e apanhava as espigas por detrás dos segadores”.

Os textos de João Kruguer servem a múltiplos propósitos.

Para aqueles que gostam de literatura, podem ali apreciar a arte de bem desenhar as ‘estórias’ com conteúdos, os mais diversos, o que aumenta ainda mais o interesse, pois deixa o leitor sempre com um gosto de quero mais. São muitas as informações técnicas que subjazem à escrita, abrindo um imenso oceano de possibilidades de estudos para quem está atrás de desafios literários e jeitos de escrever.

Ainda mais para quem gosta e quer conhecer a alma e os trejeitos do povo de Votorantim. As formas de compor cada conto faz com que o leitor veja a alma do trabalhador, do operário, da gente simples, das conversas sem muita elaboração, mas de muita desconfiança esperta e sabedoria prática da vida. A maneira como cada um tenta vencer o destino, dando um nó nas certezas e atribuindo ao incômodo futuro, a esperança de ser vitorioso.

Mas, se o leitor só quer diversão, entretenimento e distração, também cabe aí a leitura dos textos de Kruguer. A vida ali aflora em sua máxima força, pois foi um escritor que escreveu com o coração, mais do que com a mente, e o fez para as pessoas que acreditavam que a vida não é um trágico momento de sucessão de dias sem contar, mas uma teia que se tece lenta e vagarosamente com paixão, alegria e muita vontade de amar e viver.

 

(O Autor é Mestre em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie).

 

 

 




Crônica tema 'Minha mãe e eu' – Manoel Peres Sobrinho

Crônica tema ‘Minha mãe e eu’ – Manoel Peres Sobrinho

‘Minha mãe é uma só’

 

Na África do Sul uma mulher da tribo Masuto protegeu com o corpo sua criança percebendo a aproximação de um tufão – A. D.

 

Passados 23 anos da sua morte, ainda, minha memória olfativa, acusa inequivocamente a presença do seu suave perfume a exalar em nossa casa. É como um abençoado lembrete, de que alguém muito especial, existiu nestes tempos, viveu fugazmente entre nós, fez parte de nossas vidas, transformou-nos consideravelmente e, ainda, faz parte do que fomos, do que somos, e do que seremos um dia, pois, jamais deixará de nos pertencer. Numa simbiose perfeita de corpo, mente e espírito, somos o que ela foi e jamais deixaremos de pertencer-lhe.

Não me canso de olhar para as coisas que ela gostava, nas quais nutria uma singular atividade, cuidando sempre com muito carinho e personalidade. O que ela fazia e da maneira que ela fazia, ali desenhava sua assinatura pessoal, seu toque de maestrina cunhando entre nós um respeito que ia muito além de uma observação casual ou fortuita. Assim foi a sua vida, marcando-nos com seus conselhos, moldando-nos com suas atitudes, sempre com a devida compreensão da grandeza da sua tarefa, que não estava sendo cumprida como uma modorra faina, mas empenhava-se de todo o coração, para sempre nos fazer o melhor.

Hoje, com 66 anos, fico pensando o quanto ela foi incompreendida, esquecida em seu valor pessoal, mas o quanto exigimos dela mais e mais, quando ela, por si mesma, e com tanto amor e afeto já havia dado tudo o que podia. Um ser incansável, que qual vela, era consumida pela própria chama que ardia no seu coração.

Hoje, um pouco mais velho, um pouco cansado, e mais maduro, fico pensando, se por acaso ela não haveria chorado por suas frustrações, e nós nunca soubemos; se, por ventura, algumas vezes, não se viu solitária, mesmo no meio de tanta gente, e com tanta coisa por fazer, e quem sabe, nenhuma mão para ajudá-la. Quem sabe, se, em algum momento, ela não chegou a pensar até mesmo em desistir, pelo enorme volume de ocupação, mas que o sentido maior do dever, do amor e da fidelidade aos seus compromissos, não fizeram com que ela permanecesse. O fato é que nunca o saberemos; mas é bem possível que o seu amor tenha sido regado com lágrimas e desesperação.

Por mais que eu diga, por mais que eu me esforce, não consigo exaurir todo o sentimento que nutro por esse ser tão especial que fez parte de minha vida. Que por sua vida, tenho a minha agora.

Poderia contemplá-la em toda a sua singularidade? Poderia compreendê-la em toda a sua importância? Poderia agradecê-la por todo o bem que a mim devotou? Talvez o silêncio respeitoso e contemplativo, como se uma oração fosse, seja a melhor resposta para estas questões.

Já não posso mais dizer coisa alguma que ela possa ouvir. Nem, abraçando-a, dizer o quanto eu sinto por não lhe ser solidário, e nem oferecer ajuda em suas aflições. Não posso mais exprimir minha afeição ao dirigir-lhe uma palavra de carinho e consideração, por tanto bem que já me fez.

O tempo passou, inexoravelmente, e consigo, levou todas as oportunidades que tive, mas que desgraçadamente negligenciei desrespeitando a solenidade e importância do momento.

Porém, fica em mim, outra grande certeza, a de que ela mesma, por uma atitude de sua grandeza pessoal, deve ter unilateralmente me perdoado por tantas falhas em meu relacionamento.

E nessa atitude, há algo de divino, que acentua ainda mais a sua grandeza e exercício de sua maternidade, pois “o amor cobre uma multidão pecados”.

 

(*O Autor é Mestre em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie).

 




Manoel Peres Sobrinho: 'Mãe: saber e sabor'

Manoel Peres Sobrinho: 

‘Mãe: Saber e sabor’

Com o prato feito montanha, assentado à mesa da cozinha, Artur observava sua mãe, ainda no fogão, em sua faina diária. Estava tão entretida com seus importantes afazeres que nem reparou o quanto seu filho a dissecava, observando-a em seu atencioso e fastidioso trabalho doméstico.

Entre dona Silvia e seu filho havia um enorme abismo intransponível. A única coisa que os ligava era o fato de serem mãe e filho. O resto constituía-se numa estranheza que causava dó. Em sua formação intelectual, ela só tinha aprendido escrever o nome. Aliás, desenhá-lo, juntando as letras com muita dificuldade e com uma caligrafia horrível, quase ininteligível, com um significado que ela pouco sabia e muito desconfiava. Já o rapaz, pôde estudar e seguir em frente em sua carreira profissional. Com mestrado e, preparando-se para o doutorado, tinha uma concepção de mundo bem diferente, que sua  mãe jamais poderia sequer imaginar. Dois mundos separados num mesmo lar.

Entre uma garfada e outra, numa espécie de diálogo monológico, e não sabendo muito bem o porquê, começou com um exame minucioso de sua progenitora.

— Quem era ela, de verdade? Que sonhos acalentava ainda aquele pobre coração? De todas as suas ilusões da vida e seus planos de sucesso e conquistas, quais conseguiu atingir em sua precária existência de serviço, de negação pessoal e abnegada dedicação?” —. Artur sentiu um nó na garganta, como se fosse agente principal da desgraça daquela pobre criatura. Teve vontade de chorar. Tentou disfarçar, quando ela se virou para ele e perguntou alguma coisa sobre sua namorada.

Na correria da vida estamos todos tão ocupados com nossas egoísticas prioridades e urgências fantasiosas que, às vezes, até aqueles mais próximos de nós se constituem em perfeitos estranhos. Seres blindados e indevassáveis que de comum conosco só o fato de compartilhar do mesmo espaço dentro de casa.

Esboçou um sorriso, quando se lembrou de sua queda da cadeira e quebrou o braço. Era tão pequeno, que mesmo em cima da cadeira, não conseguia olhar direito para fora. Quando resolveu erguer os pezinhos, resvalou-os caindo de bruços em cima dos braços.

Alarmada com seus gritos de horror e dor, veio dona Silvia voando como a mamãe águia socorrer o seu filhote. Ambos choravam apavorados: o menino ao ver o braço partido e sentindo imensa dor; a mãe, desesperada por não saber o que fazer para aliviá-lo daquele sofrimento.

Quanta ternura! Quanta dedicação! Que sentido de responsabilidade consome seu ser por dentro e por fora; que muda o rumo de  sua vida quantas vezes forem necessárias! O quê as mães têm de divino que as faz tão singulares? Tão necessárias e indisfarçavelmente insubstituíveis? Deixa o seu pão precioso para alimentar o seu filhote.

Sorri o sorriso inocente de seu filho como a aprovar sua alegria; alegra-se com o seu sucesso; mas se oprime com sua dor; somatiza sua desgraça e tenta compensar sua inépcia com sua presença e palavras de conforto.

Artur levantou-se, foi até ao banheiro e lavou o rosto. Respirou fundo e voltou para o seu prato montanhoso e prosseguiu com o almoço. Mas as lembranças prorrompiam aos borbotões.

Seu primeiro dia de aula na escolinha da Rua Savóia. Que sofrimento! Encarar um mundo totalmente novo. Com pessoas estranhas. Ter que viver sem sua mãe. Sem sua saia para se agarrar quando inseguro ou ameaçado!

— Mãe, eu não quero ir à escola, não!

— E por que não, filho? — disse ela, esperando aquela reação do menino.

— Não conheço ninguém lá! E se eu não gostar da professora? Posso levar o cachorro pra brincar no recreio?

— Não diga bobagens, menino! Todas as professoras são muito boazinhas. Ela será sua segunda mãe. Você vai ver. Quando se acostumar com a escola, não vai mais querer sair de lá, ouviu?

Suas palavras diziam o que era necessário, mas o seu coração sofria a separação do filho; e por dentro chorava os horrores da insegurança do filho. Sabia que era necessário, para o bem da criança; mas desejava que aquilo nunca houvesse sido necessário.

Isso ninguém viu. Silvio jamais chegou sequer a suspeitar desse sofrimento materno. Os olhos de bondade e sua conversa necessária de “pedagoga” eram desmentidos por seu coração que sofria a separação. De volta pra casa, dona Silvia tentava se convencer da necessidade daquilo tudo, e dizia de si para si mesma:

— Ele já é um homenzinho, um homenzinho. Precisa começar a se virar sozinho! Tudo novo vai ser muito bom! Bom pra todos nós! Se Deus quiser. Seu consolo físico era o cachorrinho de Silvio, que também sofria com sua ausência. Mãe e cão repartiam a ausência de seu querido.

E a sua saída para Uberlândia para fazer o Curso de Química? Seria cortar em definitivo o cordão umbilical. Da Rua Savóia o menino vinha voando pra casa na Rua Willian Snap. Em outro estado, seria muito diferente. O que restava eram só telefonemas, e cada vez mais ausentes.

Disciplinas, trabalhos, pesquisas, provas, namoradas e bailinhos em finais de semana. Dona Silvia estava perdendo, de alguma forma, o coração de seu filho. Já não era prioridade, às vezes, até aborrecimento. Se havia “perdido” o filho, buscava  apegar-se com Deus. Ele sabia, por Sua onisciência, com certeza, onde o filho amado estava, com quem estava, e como estava. Suas esperanças eram renovadas através da oração. Sua presença agora era espiritual; seus recursos e eficácia haviam sido transferidos para Deus. Ainda assim ela estava lá. De alguma maneira.

Terminado o almoço, Silvio levou o prato para a pia. Coisa que ele nunca fazia. Talvez fosse só uma forma de aproximar-se dela. Precisava fazer aquilo sem levantar suspeitas. Olhou terna e demoradamente o rosto da sua mãe. Sentiu que sua manifestação de apreço e carinho eram correspondidos. Não ousou dizer nada. Temia dar um fora. O nó na garganta havia voltado mais violento. Sem muito saber o porquê, perguntou:

— A senhora está bem?

— Tô, sim — respondeu ela espontaneamente. Num impulso e sem poder resistir Silvio atirou-se ao pescoço da mãe e não parava de dizer:

— Mãe, eu te amo! Mãe, eu te amo! A senhora é tudo pra mim!  — E ela, com toda simplicidade da mãe que ele conhecia tão bem, disse surpresa:

— O que é isso menino, tá louco?




Novo e importante colunista do ROL: Manoel Peres Sobrinho

MAIS UM MESTRE COLABORANDO COM O ROL COMO COLUNISTA!

O novo craque no time do ROL  chama-se Manoel Peres Sobrinho. Tem 66 anos e é mestre em Educação, Arte e História da Cultura, pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Como profissão, é um pastor evangélico da Igreja Presbiteriana do Brasil há 37 anos. Tem um livro publicado (‘Educação Cristã’); dezenas de artigos publicados em jornais da cidade onde morou e atualmente declara-se um “amante da literatura universal,”. 73 contos seus já foram publicados pelo jornal ‘Folha de Votorantim’ e algumas poesias no Blog ‘Fragmentos’. Manoel Peres Sobrinho já escreveu para o ROL como leitor e agora, graças ao convite que lhe foi formulado pelo editor Sergio Diniz da Costa, inicia, com o texto abaixo, sua coluna no nosso jornal. Que seja bem vindo e gratos pelo apoio cultural que nós dá! (Helio Rubens, editor)

 

JOÃO KRUGUER para Iniciantes em Literatura

Manoel Peres Sobrinho*

 

Certo dia, pegando um caco velho de gesso escrevi três vezes o nome da minha namorada no paredão da pedreira. Os marroeiros, então, me perguntaram porque eu fizera assim, porque escrevera aquele nome. “Porque é eufônico”, respondi-lhes. Os rudes marroeiros, rostos tisnados, suarentos, se entreolharam por uns instantes e voltaram à lida… – João Kruguer.

 

Para quem gosta de visitar museus, uma boa pedida seria dar uma passada pelo nosso, aquele que fica agora ao lado do Clube Atlético Votorantim, antigo Cinema, e se, além de relíquias históricas, você ainda aprecia uma boa literatura, vai ter uma surpresa no mínimo agradabilíssima.

Já na entrada, à esquerda, há uma escrivaninha grande, que segundo dizem foi usada pelo nosso primeiro prefeito, Pedro Augusto Rangel. Num salto na História, retrocedemos até topar com uma herma da gloriosa “heroína de dois mundos”, Anita Garibaldi, que carinhosamente os imigrantes italianos, aqui residentes, construíram, lá pelos idos de 1911. Mas, o mais importante, ainda está por vir.

Após atravessar todo o grande edifício que compõe o Museu, chegando ao balcão, olhando à esquerda, ali está: o nicho sagrado da literatura votorantinense. Ali estão os pertences do nosso renomado escritor: JOÃO KRUGUER.

Fixado à parede está seu Diploma de Taquigrafia, conquistado em 14 de novembro de 1956, no Instituto Brasileiro de Taquigrafia. Um pouco mais abaixo, e à esquerda, está uma pequena mesa, onde podem ser encontrados vários objetos seus: uma fotografia, em que porta camisa xadrez, óculos de aro fino, o que acentua ainda mais o seu rosto longilíneo ariano, barbas compridas brancas, e sua marca inconfundível, seu chapéu. Seu rosto está calmo, evocando-nos uma ideia de tranquilidade interior, seus lábios quase esboçam um sorriso, como alguém que está de bem com a vida. Ao centro da mesa pode ser encontrada uma máquina de escrever portátil, da marca “Iris”? (foi a única inscrição que encontrei nela, salvo equívoco). À direita um texto memorável de sua lavra, um conto, com o sugestivo título: “O Lado Bom da Vida”, que tratarei logo mais. Do lado esquerdo há um pequeno armário com duas prateleiras, e os livros que foram seus. Na de cima há 62 livros, na de baixo, 44, num total de 106.

Seu acervo de pequeno porte, mas denso de conteúdo, acusa um gosto eclético de leitura. Ali encontramos livros da Biblioteca do Exército Editora, mas também clássicos como “Exodus” do escritor judeu Léon Uris, onde conta a saga do retorno dos judeus a Israel; “Mãe” do grande russo Máximo Gorki; o fantástico romance do escritor inglês Oscar Wilde com o título “O Retrato de Dorian Gray”, como também obras do nosso querido romancista brasileiro Jorge Amado. Aliás, obras estas que Kruguer recebeu como homenagem do prefeito Pedro Augusto Rangel. Como um leitor de sua época, Kruguer não deixou de ler os autores “malditos”, por isso encontrei também um volume do controvertido Milan Kundera, com nada mais do que “A Insustentável Leveza do Ser”. Por outra, seu lado religioso também aparece em seu acervo, como num exemplar da Bíblia, um “Catecismo Católico” data de 1958, além do discutido autor Neimar de Barros, com o seu intrigante “Deus Negro”.

O texto que pode ser encontrado em cima da escrivaninha de Kruguer, no Museu de título “O lado bom da vida”, me lembra bem um escritor espanhol Juán Ramón Jiménez, prêmio Nobel de Literatura 1956 e sua espetacular novela existencial “Platero y Yo”. Uma reflexão sobre a vida e o papel dos homens junto às problemáticas situações sugeridas pela existência. Cada um responde conforme a sua capacidade de abstrair o problema. Os homens são mais ou menos felizes segundo o que entendem pelo que é ser feliz e como conquistar a tão sonhada felicidade.

O texto de Kruguer tem tudo o que pede um bom conto e uma narrativa simples na tessitura, mas complexa e profunda na reflexão. Primeiro uma sugestão que não se resolve e nem se esgota nos primeiros parágrafos. Segundo a constatação perplexa da incompreensão do próprio estado em que vive o ser humano, enclausurado em suas reais e animalescas situações sem ponderar uma saída inteligente e razoável; e três, a sugestão de algo sublime que afastaria toda a dor, todo remorso pelo fracasso e toda penúria, já que a grandeza não está no que se tem e nem onde se está, mas, essencialmente, no que se é.

A eufonia do nome da namorada, bem pode ser uma metáfora, onde as palavras não assumem o ser enquanto ser, mas apontam para uma realidade que transcende o próprio existir. Por que ele no meio de uma pedreira rude e sinistra podia pensar em algo tão sublime como o nome da namorada? Seu nome é eufônico porque soa bem ou porque lembra  um ser angelical, cujo odor perfumando pode ser captado pela memória olfativa da paixão? Podia olhar as estrelas e cativar o céu?

Mesmo em lúgubres situações, olhar para o alto é uma oportunidade de evadir-se da estranha situação, e alçar voo ao inimaginável. Paradoxalmente, libertar-se mesmo continuando preso, ser outro mesmo que nunca mudando, ir além mesmo que não saindo do lugar.

João Kruguer deixa isso tudo muito claro em seu texto. Isso é Literatura!

 

(*O Autor é Mestre em “Educação, Arte e História da Cultura” pela Universidade Presbiteriana Mackenzie).




O leitor participa: Manoel Peres Sobrinho e o conto 'Boiando sobre as águas'

O leitor participa:

Manoel Peres Sobrinho e o conto

‘Boiando sobre as águas’

Jofrey era um homem comum, como qualquer outro que já se tenha visto. Modos comuns. Atitudes comuns. Formação cultural comum. Tinha uma única ambição na vida: tornar-se um grande pescador. Fazer proezas, pescar grandes peixes. Tirar fotos exibindo as suas conquistas. Mostrar suas façanhas nos melhores jornais do país, além de ser entrevistado pelas maiores redes de televisão. Mas, como um pobre diabo, suburbano, o que tinha mesmo de realidade era só um desejo frenético e desenfreado, que alimentava ardorosamente indo matar a sua ânsia num dos rios da sua cidade. Haja vista, um rio já cansado das muitas surras tomadas das inúmeras indústrias periféricas. Mas, ambição é ambição, e ela só pode ser alimentada com o sorver degustoso do objeto desejado.

Por isso, todos os domingos, à tarde, Jofrey pegava suas varas de pescar, anzóis específicos, chumbadas, minhocas e um pequeno cesto de vime e se dirigia ao rio perto do terminal rodoviário.

Um lugar ideal e paradisíaco para deixar-se estar, pensar e pescar. Depois de certa hora, havia uma calmaria infinita, além de um denso volume de água pra se contemplar, resultado do encontro de dois braços de rio: um vindo da cachoeira e outro de uma indústria de tecidos, água essa que movimentava a usina de eletricidade da fábrica.

Como uma verdadeira liturgia religiosa, Jofrey fazia tudo com a máxima serenidade e precisão; sem pressa e muito cálculo de movimentos. Envolvia-se de corpo, alma e espírito naquela atividade quase mística. Desembrulhava a linha das varas, colocava as iscas nos anzóis, lançava as linhas ao rio, fincava a vara no barranco, passava a contemplar a natureza e esperar, esperar… Às vezes, era beneficiado pela Mãe Natureza, que se encarregava de enviar diretamente para os seus anzóis os cardumes que ali existiam e por ali transitavam; mas, outras vezes, permanecia horas e horas de estoica resignação e espera sem uma única beliscada, e só servia, mesmo, pra lavar minhocas, como se dizia dos pescadores desafortunados.

Numa dessas tardes de pescaria, quando absorvido na contemplação da natureza, pareceu ter visto algo, na forma de um homem, boiando do outro lado do rio. Impossível chegar até lá. As águas corriam rapidamente. Lançar a linha pra ver se podia trazer o volume para perto era demasiado improvável. Vivia uma intensa angústia entre o dever cristão de dar um funeral honroso para aquela infeliz criatura, e a possibilidade de se complicar com a polícia. Já imaginava aqueles horríveis interrogatórios:

— O senhor conhecia a vítima?

— Não, não senhor, Delegado!

— O senhor pode provar que estava mesmo só pescando ali, ou tinha outro interesse, como, quem sabe, assassinar a vítima?

— Não, pelo amor de Deus, sou um homem honrado! Cumpro com os meus deveres, nunca tive nada com a polícia.

— Não parece, não, pelo que podemos constatar. Seus gestos denunciam certas características de quem está só dissimulando e pode ser o autor desse assassinato.

— Que é isso doutor! — e desabou a chorar e repetir, à exaustão, que era inocente.

Apavorado e sem saber ao certo o que fazer, resolveu abandonar o local, rapidamente, antes que alguém pudesse ligar a sua presença com o fato da pessoa morta.

Chegou a casa suando por todos os poros e muito mais calado do que fazia sempre. Naquela noite não conseguiu conciliar o sono. Virava na cama de um lado para o outro. Não conseguia tirar aquela cena da cabeça. Aquele corpo, rodando pelas águas, rio abaixo. Estaria mesmo o homem morto? Será, que se insistisse em chegar até ao homem poderia tê-lo salvo? Deveria ter insistido mais, na tentativa de socorrer aquela infeliz criatura?

Era o inferno que ele vivia naquela noite. Começou a amaldiçoar sua mania de pesca todos os domingos. Jurou, até, que se tudo aquilo terminasse bem, nunca mais voltaria a pescar!

No outro dia, mais cansado do que nunca, com os olhos enormes e vermelhos, com uma terrível dor de cabeça e com um mau humor sem precedentes, foi trabalhar.

Em momento algum conseguiu tirar a ideia do morto da cabeça. Aquele corpo rolando, os peixes devorando as suas carnes, sua família angustiada pela demora pra voltar para casa.

Os colegas de trabalho até perceberam nele uma transformação em seus hábitos no serviço. Mas preferiram não dizer nada.

De retorno para casa, às 18h00min, a primeira coisa que perguntou aos familiares foi:

— Quem assistiu o jornal na TV, hoje?

O pai saiu na frente e disse: — Eu!

— Alguma coisa de novo aqui em nossa cidade?

— Não!

— Não?

— Ah, agora me lembro: só o acidente com um caminhão que entrou muito depressa na curva da Rua Alfredo Filipin, e ao dobrar à esquerda para a Avenida Carlos Mariano da Silva, perdeu a direção e foi parar dentro do rio. Estava cheio de manequins masculinos.

— Algum dano mais grave?

— Não! Eles só perderam um.

 

 

 




O leitor participa: Manoel Peres Sobrinho com o poema 'Os livros'

Manoel Peres Sobrinho (Votorantim)

‘OS LIVROS’

Ah! os livros, e
os mundos em suas páginas.
Ah! os livros, e
as suas visões magnas.

Ah! os livros, esses
que me encantam,
Ah! os livros, também esses
que me espantam.

Ah! os amigos,
de todas as horas;
Ah! os mestres
de todos os temas.

Ah! os livros, amigos,
Por favor, fiquem comigo;
Ah! os livros, de sempre,
por favor, não vão embora!