Marcelo Augusto Paiva Pereira: 'Atlântida'

Marcelo A. Paiva Pereira

Atlântida

Atlântida significa filha de Atlas em grego antigo. É uma mitológica ilha que afundou numa única noite em razão de um maremoto. Platão foi o primeiro a mencioná-la e, desde então, tem sido inspiração para diversas publicações ficcionais, de entretenimento, gibis e revistas infantojuvenis. Atualmente nossas cidades têm se assemelhado a ela devido às cheias, inundações e alagamentos resultantes das intensas chuvas e dos resíduos descartados indevidamente pelos habitantes.

Desde há muito as cidades têm se desenvolvido ao longo de rios, cujas margens sempre alagaram nos períodos de cheias. As mais antigas (ou primitivas) sociedades tinham o cuidado de evitá-las ao construírem os edifícios e ruas longe delas ou, então, construí-las sobre palafitas. Eram recursos eficazes que impediam a inundação urbana e asseguravam os afazeres do dia a dia de cada habitante.

Ao longo dos séculos a população mundial cresceu e as cidades aumentaram em tamanho e quantidade. Aldeias e pequenos vilarejos se tornaram cidades e metrópoles, ganharam espaços cada vez maiores e as complicações urbanas não tardaram a surgir. Entre tantas delas estão a ocupação de áreas de várzea e o descarte indevido de resíduos e rejeitos pelos habitantes.

Em relação à ocupação de áreas de várzea, muitas são as causas, das quais figuram a condição econômica de cada indivíduo ou família, os interesses políticos e, também, a falta de projetos urbanísticos. O urbanismo somente surgiu como ciência (ou técnica) após a primeira revolução industrial (1760-1840), ocorrida na Inglaterra. Antes dessa época era politizado e obra de generalistas, contratados pelo rei ou pela nobreza.

Em razão da natureza do urbanismo anterior à aludida revolução, os projetos visavam ao favorecimento da nobreza e do rei, os quais controlavam o povo que a eles se submetiam na forma dos costumes e da legislação (Ordenações do Reino, por exemplo). As classes populares com menor poder aquisitivo que quisessem morar nas cidades iam habitar nas várzeas dos rios ou próximas a elas, em áreas (potencialmente) alagadiças, nas quais surgiram habitações e outros edifícios.

Em relação ao descarte indevido de resíduos e rejeitos pelos habitantes, durante séculos as cidades europeias e de outros continentes eram desprovidas de redes de esgoto, de sistemas de tratamento de água para consumo e de canalizações de água e de esgoto nas habitações e em outros edifícios.

Somente em meados do século XIX que o sanitarismo foi acolhido como infraestrutura urbana, após o surto de cólera em Londres (1854) e durante a administração pública de Haussmann, então prefeito de Paris (1853-1870). Antes desses fatos o sanitarismo era inexistente ou inexpressivo, sem repercussão urbanística. Os habitantes jogavam todos os dejetos, resíduos e rejeitos nas ruas, que as tornavam imundas e insalubres.

Atualmente vivemos situação assemelhada às cidades das Idades Média e Moderna devido ao exacerbado crescimento populacional, do descarte indevido de resíduos e rejeitos pelos habitantes, da legislação que limita a atuação do administrador público, da especulação imobiliária e de infelizes projetos urbanísticos, os quais não conseguem solucionar a contento os problemas urbanos. Diante dessas situações colidentes, nossas cidades serão a próxima Atlântida?

Marcelo A. Paiva Pereira

 

 

 

 

 

 




Marcelo Paiva Pereira: 'CASTELOVERS I'

Marcelo Paiva Pereira

CASTELOVERS  I

DIGA

SEM TEMOR

PARA SUA AMIGA

QUE SENTE MUITO AMOR

 

Marcelo Paiva Pereira

secondo.appendino@gmail.com

 




Marcelo Augusto Paiva Pereira: 'Um projeto saneador'

Marcelo A. Paiva Pereira

Um projeto saneador

Conjunto habitacional popular construído em São Paulo, na avenida Roberto Marinho, ao lado da Ponte Estaiada onde antes era uma favela. Foto por Marcelo Paiva Pereira, em 11.08.2013

Um dos temas em voga nas administrações públicas e na sociedade do nosso país é o saneamento urbano. É sabido que no Brasil há um número muito grande de habitações sem instalações de água e esgoto, necessários à higienização de cada pessoa e do ambiente urbano.

O projeto-de-lei 4.162/19, aprovado pelo Senado e no aguardo da sanção do Presidente da República, poderá mudar o panorama do saneamento urbano no país.

O referido projeto-de-lei determina que as empresas públicas concorrerão com as empresas privadas em licitações para prestarem os serviços de água e esgoto aos municípios e dar acesso à água para 99% da população e a 90% dela ao serviço de esgoto. Encerrar-se-á em 2033 o prazo para cumprimento.

Sancionado, será convertido em lei e dará causa à maior intervenção urbana no país, das menores às maiores cidades, incluindo-se as metrópoles e megacidades. Em muitas delas faltam amplas redes de água e de esgoto.

Ao poder público e à iniciativa privada necessário redesenhar o espaço das cidades com a finalidade de realizar o conforto resultante do saneamento urbano. Mas, ao lado desse projeto, caminham as péssimas condições habitacionais de grande parte da população, as quais carecem da execução de efetivo projeto urbano.

Entre várias propostas está a retirada dos segmentos sociais hipossuficientes das áreas periféricas e trazê-los às regiões centrais ou mais próximas, mediante a recuperação de edifícios abandonados, de terrenos ou de trechos urbanos subutilizados. Nesta proposta é menor a implantação da infraestrutura para o fornecimento de água e serviço de esgoto, porque poderá ser aproveitada a infraestrutura preexistente.

Outra, também apropriada, é criar centralidades urbanas em regiões periféricas, com o intuito de nelas desenvolver o comércio e prestações de serviços e diminuir os fluxos de pessoas e veículos às áreas centrais. Nesta, é maior a implantação da mencionada infraestrutura, porque há trechos urbanos dela desprovidos, enquanto outros há com extensão insuficiente ou ineficiente para a realização do conforto almejado pela população quanto ao saneamento urbano.

Uma terceira proposta é aproveitar trechos urbanos sem uso (como terrenos industriais abandonados, por exemplo) e nelas implantar áreas de uso misto (habitação e comércio), desenhadas para essa finalidade. Nesta, os projetos de fornecimento de água e serviço de esgoto são simultâneos com o urbanístico, cujo custo será otimizado devido à ordem das obras a serem realizadas.

Além do efeito favorável à saúde e bem-estar dos habitantes (o dito conforto), a implantação da infraestrutura de água e de esgoto também repercutirá no meio ambiente natural, que não mais será utilizado como destino final dos dejetos provenientes das cidades.

Necessário será repensar as cidades, com vistas a evitar o mau uso do solo e preparar o espaço urbano para a implantação de todo o projeto de fornecimento de água e de serviço de esgoto à população, sem causar danos ao meio ambiente natural.

Enfim, aludido projeto-de-lei é um projeto saneador, mas dependerá da coparticipação de projetos urbanísticos e urbanos que também o sejam, para a higienização das cidades e despoluição do meio ambiente natural do nosso país. Nada a mais.

 

Marcelo Augusto Paiva Pereira.

arquiteto e urbanista

 

 

 

 




Marcelo Augusto Paiva Pereira: 'Em algum lugar do passado'

Marcelo A. Paiva Pereira

Em algum lugar do passado

Igreja Matriz de São Jorge dos Ilhéus (restaurada em 04.10.1970). Foto por Marcelo A. Paiva Pereira, em 13.09.2014

A preservação da memória de um grupo social ou povo é fundamental para ele se identificar com a própria cultura, manifestada no tempo e no espaço pelas gerações.

Dentre tantas manifestações estão as convertidas em bens culturais pelo significado que transmitem. São temporalidades, bens culturais estratificados, carregam o tempo psicológico e a consciência humana da história e urge trazê-los ao presente e projetar, ao futuro, a memória que as sucessivas gerações deverão ter da própria cultura.

Esse resgate de bens culturais depende da escolha da intervenção a ser aplicada, que pode ser a conservação ou a restauração. A primeira é limitada, que pouco influi na materialidade e imagem da obra. A segunda é mais abrangente e é alvo de vários entendimentos acerca dos efeitos que produz.

No século XIX Eugène Emmanuel Viollet-le-Duc e John Ruskin defenderam posições opostas. Ao primeiro a restauração era o restabelecimento da obra como poderia, ou não, ter sido. Ao segundo, as intervenções necessárias, o absoluto respeito pela matéria original e evitar o falso histórico e o falso estético.

No século XX Camillo Boito, Gustavo Giovannoni e Cesare Brandi defenderam outras posições, às quais restaurar é um processo científico, deve respeitar o passado (e não voltar a ele) e alinhá-lo ao tempo presente. Ao último deles a restauração deve distinguir os momentos históricos do bem, dentre os quais o período dela própria, e evitar a modificação irreversível da identidade dele.

A restauração modifica a relação espaço-tempo do bem ou obra e repercute na memória do grupo social ou povo. Se for exagerada poderá dar a ele características que nunca teve e o efeito, no grupo social ou povo, é a memória criada (falsificação da identidade artística e temporal do bem).

Deve enfatizar a constituição material sem ignorar as várias estratificações do bem (juízo crítico). Dá-se a ele nova destinação, com vistas a assegurar sua preservação, sem descaracterizá-lo. E, ainda, a restauração não deve transforma-lo em parque temático.

A Carta de Veneza (1964) acolheu o mínimo de intervenções para preservar a obra e sua atualização para o uso e conforto humano. Admite a restauração como intervenção excepcional, que exige atuação mais abrangente (arts. 9º ao 13º).

A memória se faz de diversas experiências no passado e também de símbolos, que servem de paradigmas às condutas atuais. A qualidade íntima, porém, é atingida por qualquer alteração no ambiente. Daí a importância do bem cultural e das técnicas de intervenção a ele aplicadas.

A restauração, então, é um processo científico e crítico de intervenção que, com cuidadosas alterações, atualiza e preserva para gerações atuais e futuras o bem ou obra resgatada de algum lugar do passado. Nada a mais.

 

Marcelo Augusto Paiva Pereira.

arquiteto e urbanista

 

 

 

 

 

 

 




Marcelo Augusto Paiva Pereira: 'Memória e monumento: a preservação do tempo'

Marcelo A. Paiva Pereira

Memória e monumento: a preservação do tempo

Igreja de Nossa Senhora de Nazaré (Recife – PE)- Foto by Marcelo Paiva Pereira em 02.01.2014

A memória é o conjunto de experiências vividas no passado, as quais servem de paradigmas às condutas atuais. É um processo psicológico que valora trechos do passado trazidos ao presente. Recupera fatos e experiências remotas, faz uma ponte entre esses períodos, examina o presente e projeta o futuro.

Sua qualidade íntima, entretanto, é atingida por qualquer alteração do ambiente onde o indivíduo ou grupo social estiver. Para ter estabilidade são necessárias referências, figuras que atestem a época e o lugar que representem.

Essas figuras de referência se identificam nos monumentos, que são coisas ou bens cuja função antropológica é trazer à lume o passado, que faz lembrar e resgatar a identidade de uma cultura. Enquanto tal, o monumento indica um fato social ou político; e, quando encampa a natureza de documento, aponta para o período histórico do qual faz parte.

Os monumentos carregam as marcas do tempo e são temporalidades, bens culturais estratificados, embutem nossa consciência de passado e presente. Muitos são os monumentos e dentre eles se destacam os históricos, escolhidos para testemunhar os fatos e os períodos do passado que se deseja preservar. Estes são símbolos da memória de uma sociedade, que depende da preservação deles para prosseguir às gerações atuais e futuras.

A restauração é um processo de intervenção, de natureza crítica e científica que, com cautelosas alterações, atualiza e limita o uso e preserva o monumento em sua historicidade (os extratos temporais).

À atualização do uso de um monumento histórico se faz necessária sua releitura, dependente do contexto temporal e ambiental (ou urbano) em que se encontra. Daí decorre a questão da autenticidade, da qual o processo de restauração é sua causa.

Introduzir elementos estranhos à figuração (linguagem artística e estética) do monumento poderá nele causar os efeitos impróprios do falso histórico e do falso estético e, na sociedade, a falsa memória. Tais elementos se revelam pitorescos, parasitários, porque inoportunos à identidade e materialidade do monumento.

As razões da restauração são científica (visa transmitir o conhecimento às várias áreas do saber), ética (visa à existência dos bens e servir de suporte à memória) e cultural (atribui valor estético, documental (período histórico) e memorial (simbólico)).

A memória é o elemento subjetivo ou psicológico do indivíduo ou grupo social, enquanto os monumentos são o elemento objetivo, externo a eles. Daí a importância das razões da restauração e dos monumentos históricos à memória.

À preservação da memória depende a dos monumentos históricos que a simbolizam. A restauração deve desacolher elementos pitorescos, pugnar pela identidade, autenticidade e historicidade de cada monumento histórico, atualizá-los ao presente e garantir a existência às gerações atuais e futuras. Memória e monumento são a preservação do tempo. Nada a mais.

 

Marcelo Augusto Paiva Pereira

Arquiteto e urbanista

 

 

 

 

 

 

 




Marcelo Paiva Pereira: 'Discurso de colação de grau'

Marcelo A. Paiva Pereira

DISCURSO DE COLAÇÃO DE GRAU

O Procurador do Estado – aposentado – Dr. José Paiva Pereira (1927–2018) discursou como Paraninfo das turmas de formandos em Pedagogia e Matemática da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, que ocorreu em Itapetininga/SP, aos 21 de dezembro de 2000.

Ele abordou o surgimento da Associação de Ensino de Itapetininga, a vida acadêmica, fez uma síntese do século XX (que se findava) e do transcurso evolutivo das ciências, das quais a Astronomia era a que mais o deslumbrava. Ele acreditava que no século XXI a humanidade extrapolaria as fronteiras terráqueas e conquistaria novos mundos pelo espaço infinito.

José Paiva Pereira, aos 27 anos, em foto de 20.12.1954

O inteiro teor do discurso segue transcrito abaixo:

D I S C U R S O   D E   C O L A Ç Ã O   D E   G R A U

Autor: José Paiva Pereira (1927–2018);

Data: 21.12.2000

Segundo os nossos dicionários paraninfo seria aquele que apadrinha ou testemunha, entre outros atos, o da colação de grau. Num sentido amplo, um protetor, um conselheiro, um avalista, um amigo mais velho.

E por que assim deve ser tal personagem? Que significado tem a colação de grau a ensejar a presença de uma pessoa ornada com tais predicados?

A humanidade tem, através do tempo, realizado uma série de cerimônias caracterizadoras de momentos importantes na vida do ser humano. São cerimônias que marcam estágios de evolução do indivíduo, estágios de novas situações, de novas posições e, até mesmo, pode-se dizer, de uma nova vida.

A colação de grau está inserida entre essas cerimônias que a ciência classifica como as de iniciação. Para tão importante evento o paraninfo terá que desempenhar muito bem as tarefas que são inerentes a um protetor, a um conselheiro, a um amigo. Por que, então, sabendo disso, aceitei tal encargo?

Vários foram os motivos. Entre eles, sem dúvida, confesso, foi a ponta de vaidade impregnada na saudosa lembrança do meu tempo de professor e que, nos meus setenta e três anos de idade, assomou-me, inesperadamente. Após tal comportamento, mais refeito do impacto de gentileza do convite recebido e prontamente aceito, senti, em toda sua extensão, o peso de tamanha responsabilidade. Vi, entretanto, que o convite, sobre ser eu, também, quotista-proprietário desta Associação de Ensino, esteve, ainda, motivado pela delicadeza de uma ex-aluna minha do Curso Normal da Peixoto Gomide, a Profª Alice Vega Alvers Ozi. Some-se a esse fato, especialmente para mim, o aceite representar minha homenagem a seu saudoso esposo, o Dr. José Ozi, particular amigo e colega dos bancos acadêmicos, das atividades docentes e de jornadas forenses. Por último, o desejo, ainda que limitado aos meus parcos atributos, de ser útil.

Eis-me, pois, aqui, frente a vocês, pedindo, de antemão, desculpas pelas falhas desse paraninfar, com a promessa de o mais possível esforçar-me no objetivo desse ofício.

Corriam o fim dos anos quarenta e início dos anos cinquenta. O país revigorado pela conquista dos direitos democráticos reaparecidos na Constituição Federal de 1946, encetava nova jornada educacional com o surgimento de novos segmentos populacionais ávidos de estudo. A Segunda Grande Guerra acabara. Novos modelos de vida eclodiram. As cidades expandiram-se. O campo iniciava o seu despovoamento. A antiga sociedade agrária, já em declínio, permitiu o fenômeno da explosão populacional urbana. Nossa cidade não esteve fora desse contexto.

Os professores das antigas escolas particulares do Ginásio de Itapetininga e da Escola de Comércio, todas da década de vinte, para atenderem o novo segmento populacional urbano que não encontrava vaga na escola pública então existente, a Peixoto Gomide, fundaram a Escola Normal Livre. Tão vitoriosa foi essa iniciativa que os mesmos professores pensaram numa associação de todas essas escolas particulares sob uma só direção e propriedade, nascendo, então, e finalmente, após várias nomenclaturas sociais, a atual Associação de Ensino de Itapetininga Ltda.

Justíssima lembrança fazemos àqueles denodados professores que souberam entender as aspirações de seu tempo. Não se pense, entretanto, que tal objetivo foi alcançado sem esforços e desprendimentos pessoais. As duas escolas que já existiam anteriormente viram suas trajetórias, em diferentes períodos, ameaçadas de sobreviver. Foram aqueles esforços e desprendimentos pessoais que permitiram continuassem seus caminhos educacionais.

Foram tantos esses professores que a sua enunciação, por certo, acarretará algumas desagradáveis e involuntárias omissões. Por elas, desde já, peço desculpas, mas não poderia, por somente esse motivo, deixar de declinar os nomes de Antônio Antunes Alves, Eduardo Soares, Virgílio Silveira, Francisco Fabiano Alves, Juvenal Paiva Pereira (meu saudoso pai), Martinico de Moraes, Izaltino Válio, Francisco Válio, Lucila de Melo, Aluízio Martins de Melo, Lucila Piedade Alves, Plínio Ribeiro, Alberto Amadei, Estevão Alciati, Celso de Carvalho, Geraldo Martins de Melo e outros mais.

A esses da velha guarda somaram-se, em fase posterior, jovens professores que se moldaram, ainda que mantendo suas personalidades mais adaptadas aos novos tempos, nos salutares princípios éticos de seus colegas mais antigos. Assim como aos antigos professores, a enunciação dos novos, também, por certo, acarretará a mesma involuntária e desagradável omissão. Com as mesmas desculpas, ouso, mais uma vez, enunciar alguns, por desempenharem papéis importantes nas novas fases da Associação de Ensino. Assim os nomes de José Ozi, Joaquim Fabiano Alves, Tereza Carvalho, Sérgio Soares, Antônio Carlos Soares, Domingos Reis, Waldomiro Tibes Cordeiro, Cordélia de Carvalho, Paulo Ozi e outros mais.

Se aos da velha guarda coube o trabalho inicial de adoção, manutenção e sedimentação dos valores educacionais e morais que orientaram os primeiros quarenta anos das instituições que vieram a compor a atual Associação de Ensino, aos novos, já nas décadas de sessenta em diante, coube a nova adequação aos ditames dos novos tempos, determinados pela ampliação do universo de interessados, não mais somente aos cursos de segundo grau, mas, e, principalmente, ao ensino superior.

É, pois, nesta segunda fase que, inquestionavelmente, desponta a figura proeminente, inovadora e arrojada de José Ozi. A vida da Associação de Ensino, estará, pois, após aquele período, sempre, ligada estreitamente ao desempenho brilhante desse professor, a cujo ofício aderiram e apoiaram os demais professores.

Nesta fase projeta-se a Associação ao rumo do ensino superior. Sucessivamente foram conquistadas a Faculdade de Ciências Contábeis e, posteriormente, a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, com as diferentes secções que hoje a compõem.

O importante em todo esse longo percurso foi a Associação de Ensino, ainda que não afastada das novas realidades materiais e sociais, sempre, manter e professar aqueles primeiros valores que informaram a criação e manutenção de seus antigos cursos. Os ideais da velha guarda estão, ainda, presentes. E, tenho certeza, as novas direções desta Associação, saberão, a exemplo do que fizeram as anteriores, manter, cultivar e professar aqueles valores.

Com a permissão da grande Rachel de Queiroz, imortal da nossa Academia Brasileira de Letras, transfiro à Associação de Ensino de Itapetininga, a ideia central de sua crônica “Bonecas Russas”, publicada no Jornal “O Estado de São Paulo”.

As referidas consistem em bonecas de madeira ocas em que da maior saem outra menor e, assim, sucessivamente outra menor ainda, até uma última, simples miniatura de boneca. Na crônica, Rachel vê na vida do ser humano a existência sempre presente dos diferentes estágios de sua evolução, não como épocas simplesmente substitutas, mas, coexistentes, a mostrar que na venerável avó está ainda presente a rapariga inconsequente que fora um dia; no severo confessor de hoje o seminarista em crise religiosa de trinta anos atrás. É só saber procurar.

Assim, também, é a Associação de Ensino, da maior até a menor boneca, todas as suas fases de desenvolvimento estão nelas retratadas. Não somente existiram mas, e principalmente, coexistem. O que hoje ela é, tem sempre, basta procurar, a presença de outras épocas que passaram da mesma forma que no ser humano. Nunca essas fases serão esquecidas.

Tal dissertação sobre a vida da Associação de Ensino, ao lado de representar uma oportunidade para homenagear seus velhos e novos professores é, também, a de permitir aos alunos, ao conhecerem as origens de sua Faculdade, a manutenção de um vínculo maior com ela. A vida acadêmica não se extingue inteiramente com a conclusão de curso. Ela é um pedaço de nossas vidas demasiadamente marcantes que nos acompanhará sempre. Dentre elas, pois, terá sempre, um lugar destinado à instituição que a permitiu.

Os anos acadêmicos, o cotidiano do lavor estudantil, a camaradagem entre os alunos, a presença marcante do professor, o acúmulo de conhecimentos recebidos e tantas outras situações vividas, marcam indelevelmente o novo formando. São esses elementos que permitirão ao egresso do mundo acadêmico levar sempre consigo o espírito de sua escola, a marca de sua Faculdade; permitirão, também, orgulhosamente, dela lembrar-se com profundo respeito e saudosa vivência. Desempenham com grande eficiência esse prazeroso e orgulhoso rememorar de sua escola as comemorações dos aniversários de formatura. Serão elas o ponto de encontro, de reunião anual, onde destinos diferentemente traçados pelos caminhos da vida se cruzam, novamente, em um delicioso rememorar de épocas passadas.

Faço votos que tenham, durante suas vidas, a oportunidade de gozar muitas dessas alegres comemorações.

As cerimônias de iniciação a que já me referi, de extremamente objetivas com a prática dos povos selvagens apelando ao desempenho físico do iniciante às mais simbólicas dos dias de hoje, tem, elas, reiterando, grande significado na história pessoal e social do homem.

A cerimônia de colação de grau universitário tem, pois, esse mesmo significado. Marca uma vida. Se a vocês tão importante é essa cerimônia, não deixa de o ser, também, para os seus familiares. Pais, avós, cônjuges, filhos e demais parentes e até amigos comungam com tão significativo evento. A vitória do formando é, sem dúvida, compartilhada com eles.

Estamos no fim do século XX e, como tal, também, do segundo milênio da era cristã. Tão poucas e modestas palavras definem, entretanto, uma realidade extremamente grande, complexa e perturbadora. Não pelo passado, já que foi intensamente vivido, aprovado ou reprovado, mas, principalmente, pelo albor de uma nova época, por tudo, sem dúvida nenhuma, cheia de promessas e aspirações de um lado e, de outro, de dúvidas e incertezas. Vive-las, daqui para frente, será a grande jornada repleta de desafios que, por certo, constituirão o estímulo principal para encetá-la.

Não se poderá, entretanto, bem dimensioná-la sem uma análise valorativa do passado. Não como um valor em si mesmo, mas porque ele está na origem do presente. Só continuaremos a existir tendo nossas raízes bem determinadas. O passado vale na medida em que pretendemos criar a partir do que já foi criado.

Os séculos que compuseram o segundo milênio da era cristã, especialmente os três últimos, por certo foram os que mais influenciaram o estágio de desenvolvimento em que hoje nos encontramos. Representam eles fases de diferentes e sucessivamente importantes na nossa evolução. Se nos séculos 18 e 19 a produção intelectual do homem esteve mais afinada, ou, até mesmo, somente afinada, em todos os ramos do saber, com a ciência pura, o nosso século 20 serviu de campo experimental para a grande jornada da ciência aplicada. Pudemos nós, mais idosos, vivenciar esse intenso processo experimental.

Todos os ramos do conhecimento humano tiveram essa oportunidade. Alguns, entretanto, mais se destacaram, talvez e principalmente, pelo grau de extensão e repercussão de suas aplicações. Sobrelevam-se, neste particular, as ciências humanas, assim entendidas aquelas que tem como objeto principal o homem.

Nesse processo experimental a ciência política foi a que mais matizes ideológicas pode aplicar. Ao isso fazer não deixou de provocar frustrações e desesperanças e, por isso mesmo, sofrimento. Basta lembrarmos das ideologias do fascismo, do nazismo e, principalmente, do comunismo. Teoricamente formuladas nos séculos anteriores, ao colocadas em prática mostraram-se ineficazes. Delas, na sua efêmera vivência pudemos, entretanto, tirar preciosas lições que, temos esperança, não deverão ser esquecidas.

Não podemos olvidar, também, de que o condicionamento de novas ideologias políticas estarão, como sempre o foram, sujeitas ao progresso das demais ciências. O grande avanço da tecnologia das comunicações, televisão, telefonia celular, internet, etc… já estão alterando o tipo de vida na Terra. É o fenômeno da globalização, palavra que ainda provoca reações opostas de aceitação ou não, como se fosse ela resultante de uma vontade, quando, na verdade é, simplesmente, uma realidade inelutável, independente dela e com a qual terá, o mundo, de caminhar.

No campo da medicina, também de grande progresso nesta segunda metade do século 20, estamos melhor conhecendo a fraqueza e, ao mesmo tempo, a pujança da raça humana. A decifração e o mapeamento do genoma humano, projeto que está previsto para terminar em poucos anos, trará o controle das doenças e defeitos do corpo humano.

Na Física, o rigor do raciocínio matemático, que já nos séculos anteriores deu-nos a interpretação das principais forças do universo, encontrou no gênio do matemático Albert Einstein o ponto de partida para o domínio das forças do átomo. As consequências todos sabemos. Algumas mais explícitas, como a bomba atômica. Outras, porém, mais importantes à vida humana. A utilização dessas forças vai depender da humanidade. Esperamos que seja sempre em benefício do homem.

Deixamos, de propósito, para uma última análise, o grande progresso da astronomia que, aliada às novas conquistas tecnológicas, tais como telescópios espaciais, satélites artificiais, sondas espaciais, computadores e outros, parecem ter dado ao homem uma dimensão interplanetária. Milênios presa na pequena esfera terráquea, vê, a humanidade, abismada, ao abrir as portas para um conhecimento mais profundo do universo. Não somente conhecimento, mas, também, arrojadas jornadas interplanetárias. A conquista da Lua, se assim podemos dizer, foi um pequeno passo para a conquista do espaço infinito.

Tão grande é o conteúdo do conhecimento humano que a enumeração e análise de todas as suas múltiplas facetas ocuparia muito tempo, tempo esse não condizente com os objetivos desta alocução. Ressaltei aquelas áreas do conhecimento que, no meu modo de ver, mais de perto estarão interferindo nos novos modos de vida.

Da observação desse desenrolar das conquistas que este século apresentou, tivemos a certeza de que a maioria delas apoiou-se vigorosamente no emprego do rigor do raciocínio empregado na Matemática. Conjunto das disciplinas que estudam, por meio do raciocínio dedutivo, as propriedades dos seres abstratos e suas relações entre si, a Matemática a cujo conhecimento muitos de vocês aderiram, possibilitou, ao lado de outras ciências, essa grande evolução.

Da mesma forma podemos dizer da Pedagogia. Definida como Ciência da Educação, representou ela o processo da conquista e disseminação do conhecimento humano. Ligada, inicialmente e por muito tempo, à moral e à religião, firmou-se nos fins do século 19, como ciência autônoma.

As contribuições da psicologia e da sociologia deram-lhe, hoje, um caráter experimental e prático. Nesse contexto papel igualmente importante representou sua ação na grande jornada da conquista e divulgação do conhecimento.

Assim, matemáticos e pedagogos, ambos, tiveram sua parte na possibilidade da grande jornada cultural. Não se pense, entretanto, que essa participação terminou. Mais que nos séculos anteriores e no atual, ela será necessária.

O mundo que o fechar deste século vai permitir descortinar o próximo milênio será, incomensuravelmente, maior. As visões do nosso futuro, nos diferentes campos da atividade humana aumentam em proporção geométrica. Tal gama de novas situações exigirão, mais e mais, um maior domínio do conhecimento e, com ele, principalmente, uma segura tomada de consciência dos verdadeiros valores que os deverão informar.

Aqui, neste ponto, importante papel desempenhará a formação do homem, capaz de discernir, sem ficar a reboque do desvario do progresso científico e tecnológico. Será esse o papel do graduando oriundo dos bancos universitários através de sua formação humanista, seja qual for a sua formação específica. Matemáticos e pedagogos serão, antes de tudo, seres humanos conscientes de sua potencialidade, senhores de seus destinos mesmo em um mundo novo que, parece-nos, de uma imensidão assustadora e ainda desconhecida.

Para tal empreitada o ser humano contará com a esperança. Não como se fora uma ilusão, uma visão simplesmente otimista. Será ela consequência de uma vontade de agir, fruto de um perfeito domínio de suas virtudes. Saberá, também, nesse processo de compreensão dos novos desafios, encontrar a grande oportunidade de escapar do, até agora, dominante antropocentrismo e, até mesmo, do antropomorfismo, a permitir liberar nossa imaginação na sábia e corajosa aceitação dos novos mundos que a tecnologia espacial vai desvendar. Ao isso fazer terá, a civilização terráquea atingido um estágio de sua evolução mais condizente com sua vocação universal.

Caberá, assim, a vocês, novos formandos em Matemática e Pedagogia, nas áreas que o seu cabedal universitário permitir, encontrar os seus respectivos lugares, engrossando o trabalho de outros mais, nessa jornada gloriosa da conquista dos novos tempos. Que os encontrem e os ocupem e neles exerçam proficientemente o seu lavor, certos de que estarão contribuindo para os objetivos de uma civilização universal. E mais, que os encontrem nesse mister o sentido de suas vidas de maneira a descobrirem a verdadeira felicidade.

Espero, na medida das minhas limitações, ter cumprido com a função de um paraninfo, encargo que muito me honrou, ao tentar leva-los através do retrospecto geral dos nossos dias e de uma projeção visionária do futuro, a uma tomada de consciência das atuais e futuras situações de vida que deverão enfrentar, vencendo obstáculos na conquista das oportunidades na decidida esperança de que, assim, encontrem, reitero, o verdadeiro sentido de viver.

Ao final destas palavras quero parabenizar os novos formandos, futuros profissionais nas áreas em que se licenciaram, desejando uma vida cheia de sucessivas e importantes vitórias, eventos extremamente gratificantes.

Aproveito a oportunidade para desejar a todos, formandos, seus familiares e demais pessoas presentes, um Feliz Natal e deslumbrante Ano Novo.

Disse.

Obrigado.

F I M.

José Paiva Pereira (meu saudoso pai) foi Professor da Escola Normal Peixoto Gomide, de Itapetininga/SP e, posteriormente – em 1963 – assumiu o cargo de Procurador do Estado, em relação ao qual aposentou-se anos depois, quando o exerceu na Procuradoria Regional de Sorocaba/SP (PR–4).

Nada a mais.

 

Marcelo Augusto Paiva Pereira




Marcelo Paiva Pereira: 'Discurso sobre a paciência'

Marcelo A. Paiva Pereira

DISCURSO SOBRE A PACIÊNCIA

Juvenal Paiva Pereira, aos 17 anos, em foto de 1915

 

 

 

 

 

 

 

 

Aos 12 de agosto de 1968 o Professor Juvenal Paiva Pereira (1898-1983) discursou sobre a paciência na Igreja Nossa Senhora das Estrelas, em Itapetininga/SP. O texto original segue transcrito abaixo:

 

P A C I Ê N C I A

Autor: Juvenal Paiva Pereira

Data: 12.08.1968

Os dicionários registram a palavra Paciência com várias significações, entre as quais cito:

  1. Aceitação pacífica e espontânea de uma situação incômoda;
  2. Resignação;
  3. Jogo de entretenimento (jogos de paciência);
  4. Interjeição de conformidade ou de conformismo (Paciência!…);
  5. Mansidão (quase como humildade);
  6. Insistência tranquila em trabalho difícil e longo;
  7. Transigência com o próximo.

Se os dicionários assim o fazem é porque, na verdade, o mundo, a humanidade, na sua linguagem universal, dá o nome de “paciência” a atitudes muito diversificadas que os homens assumem em face da vida, em diferentes circunstâncias. São atitudes como:

  1. Suportar, mansamente, a opressão e injustiça de pessoas autoritárias ou conscientemente ríspidas, grosseiras;
  2. Aceitar com emoção do irremediável uma perda material ou moral (Quebrou – “paciência” – Morreu – Paciência! – O Palmeiras perdeu – paciência!);
  3. Ficar-se a jogar xadrez ou buraco horas e horas sem ambição de lucro;
  4. Repetir, vezes e vezes, a tentativa para resolver um problema, consertar um rádio, aprender uma música, desatar um nó, etc.;
  5. Ouvir com bondade, sem agitação, a conversa insípida de uma pessoa ingênua ou (no meu caso) a palavra de um orador maçante;
  6. Cuidar dos enfermos meses ou anos seguidos de rosto amigo e coração sereno;
  7. Esperar nas filas, ao sol, ao frio e à chuva; na fila do ônibus, do emprego, das incertezas, na fila das esperanças;
  8. Atender de bom humor crianças irriquietas, barulhentas, velhos ranzinzas e adultos ignorantes ou importunos;

Além das citadas, é possível e provável que haja mais outras diferentes atitudes humanas a que o mundo dê também o mesmo nome de paciência, embora se perceba que sejam elas, na verdade, atitudes claramente diversas, nada parecidas entre si, quer pelo resultado, quer pelo estado de espírito que elas traduzem. Há vários tipos de paciência:

Há paciência no ato chamado intelectual: cálculo;

Há paciência no ato motor: desatar um nó;

Há paciência no ato afetivo: cuidar do filho;

Há paciência no ato moral: ação continuada da prática do bem.

Em todos esses casos, é sempre ela, sem dúvida, um grande dom pessoal quanto à natureza do ato em si mesmo. E, de qualquer forma, uma força interior.

Pode, entretanto, esse dom, essa força interior, deixar de ser virtude quando o fim que se tem em vista é moralmente mau ou (de) transigência condenável.

A paciência do bajulador é indignidade;

A paciência do jogador pode ser vício;

A paciência do arrombador de cofres pode ser crime;

A paciência do oportunista é sem-vergonhice;

A paciência do comodista é preguiça;

A paciência ou transigência com a injustiça é aviltamento;

Paciência transigente com a mentira é cumplicidade;

Paciência transigente com a corrupção também é corrupção;

 

Nesses casos, é o dom de uma força psíquica a serviço das fraquezas de caráter. Por outro lado, é virtude:

  1. A paciência intransigente e calma na luta do bem contra o mal.
  2. A paciência intransigente na luta contra os injustos.
  3. A paciência tranquila e austera na luta em defesa dos legítimos direitos.
  4. A paciência inabalável em defesa da verdade.
  5. A paciência terna e serena em toda luta nobre e honesta.

Pelo que se vê, paciência não é sempre uma atitude passiva de aceitação ou suportação da adversidade das coisas e das pessoas.

Ela é também e principalmente uma ação ou reação ativa a favor dos atos bons ou contra as ações más.

Em ambos os casos é ela sempre uma atitude da nossa alma, uma disposição interior, de dentro da nossa pessoa individual.

É o que se costuma dizer um estado psicológico, um estado de espírito.

Nessa condição, é ela uma energia mental que age dentro de nós, orientando o nosso comportamento.

Ora, atua para inibir reações, isto é, para não nos deixar agir.

Ora, para excitar reações para nos levar a agir.

No primeiro caso é inibitória; no segundo, liberatória.

O que há de comum nestes extremos é a serenidade, impassibilidade interior que a contém. Há indivíduos que suportam os revezes, as doenças, o infortúnio. Mas suportam de coração amargo, com a revolta no íntimo, mal sufocando resmungos ou palavrões. Isso é uma falsa paciência, uma suportação penosa, como doloroso fardo, resignação, contrafeita. Não é a paciência psicológica e moral autênticas.

Esta, a verdadeira, é sempre uma diferente, singular e especialíssima energia tranquila da alma; e, como visa ela à ação, à diferença da nossa vontade é, por isso, uma energia, uma força moral muito preciosa e não muito comum. Nessa condição de disposição da alma, é sempre uma qualidade mental e um dom pessoal, um potencial. Não é sinal de moleza como erradamente alguns julgam.

Quem tem essa paciência não é um fraco; pelo contrário, é uma pessoa de ânimo forte e feliz.

Naturalmente, como toda disposição individual da alma, como todo corpo, a paciência está sujeita a fatores condicionantes também negativos.

Fatores externos: o ambiente físico ou humano, às vezes pode diminuir ou anular a paciência;

Outros internos: sistema nervoso agitado hereditário ou adquirido; mau funcionamento do fígado, da tireóide, das supra renais, etc.; ou preocupações internas, estados emotivos que interferem prejudicando a eficácia da paciência como energia mental ou moral. São casos em que a vontade quer agir, mas os nervos não obedecem, os hormônios frustram.

Trata-se, repito, de uma energia específica, inconfundível, sui generis. Não se confunde com bondade, humildade, carinho, compaixão, etc.

Existem pessoas nitidamente pacientes e outras naturalmente impacientes, por efeito de condições orgânicas e psíquicas, peculiaridades a cada individualidade ou por dadas circunstâncias ocasionais. Uns são mais pacientes que outros, e um mesmo indivíduo ora é mais paciente, ora menos paciente, para certo ato e não para outros; e até às vezes chega a perder a paciência.

Há pessoas cheias de bondade, realmente amorosas, piedosas e compassivas, que não tem o dom moral da paciência.

É inoperante, pois, pregar-lhes a paciência; ou recriminar liminarmente os impacientes.

Coerentemente devemos ter paciência com os impacientes.

Por isso mesmo, entretanto, porque existem fatores e causas condicionantes conhecidas, diz-se que é muito meritório e aconselhado o emprego de cultivar a paciência ou mesmo adquiri-la.

Se a causa da impaciência é, por exemplo, enfermidade hepática hormonal ou nervosa, é um dever de consciência procurar tratamento médico.

Se são preocupações ou exaltações emotivas, é possível e é um dever corrigi-las por técnicas psicoterápicas derivativas, com auxílio de reflexão, da meditação, da inteligência, enfim.

Dizem os psicólogos e psiquiatras que podemos educar e aumentar a paciência; mas ninguém ignora que ela também tem um limite de capacidade de saturação.

E é exatamente por saber disso que estou eu procurando terminar logo esta minha leitura, receoso de já estar enchendo a vossa paciência.

Não posso, porém, terminar sem mais uma rápida observação.

Tenho para mim que paciência, isto é, paciência para com o próximo, se não me confunde, pelo menos é muito ligada com o que vulgarmente nós chamamos de compreensão, no sentido de tolerância, indulgência, qualidade essa da pessoa tida como compreensiva. Poderiam ser sinônimas até.

Para cultivar, preservar ou adquirir a paciência, ou mesmo curar a impaciência, quer parecer-nos que uma boa técnica será racionalizá-la, isto é, ampará-la em um ato de inteligência racional, que deve ser exatamente a referida compreensão.

É a atitude racional de uma pessoa se colocar mentalmente na posição do ser conivente na situação do seu amigo, na idade e circunstâncias do seu familiar, do companheiro, do interlocutor e até do inimigo, procurando sentir e avaliar os problemas desse outro e os porquês do comportamento dele.

Essa racionalização, creio eu, pode ou deve necessariamente armar na nossa alma toda aquela trama de energia afetiva e moral, inibitória e liberatória, que prepara e estrutura a paciência.

Convém, entretanto, uma nota finalíssima:

Todas essas técnicas de tratamento médico autoterápico inclusive uma racionalização, só eles não bastam, se juntamente com elas não procuramos com fé e fervor o remédio supremo e infalível da oração; porque a paciência é acima de tudo uma graça, um dos doze frutos do Espírito Santo.

Quem não conhece aquela oraçãozinha magnífica, quase uma jaculatória, atribuída a São Francisco de Assis, para nos dar paciência e conservá-la?

É uma súplica sublime que eleva a nossa alma a Deus:

“Ó Mestre! Faze que eu procure mais que consolar, que ser consolado, compreender, que ser compreendido, amar, que ser amado,…

pois:

é dando que se recebe,

é perdoando que se é perdoado;

é morrendo que se vive para a Vida Eterna”.

Se temos a graça da fé, procuremos nós todos os dias, paciência na prece, na sincera humildade perante Deus, entregando-nos com serena confiança aos desígnios de sua divina vontade e providência.

F I M

O Professor Juvenal Paiva Pereira foi dentista, formado em 1925 pela escola de Farmácia e Odontologia de Itapetininga/SP e, posteriormente, tornou-se Professor de Sociologia da Escola Normal Peixoto Gomide. Autor da obra “Um esquema de Sociologia Geral” publicada pela editora Saraiva em três edições (a primeira de 1941 e a última de 1952) e é também, um dos vultos ilustres do mencionado município e um dos patronos da Academia Itapetiningana de Letras.

Nada a mais.

Marcelo Augusto Paiva Pereira

(neto do autor do texto)