Gonçalves Viana: 'Sonho meu…'
“No universo da música popular brasileira, desde o início do século passado, às mulheres era reservado o papel de ouvinte ou de musa e, quando muito, o de intérprete.”
No universo da música popular brasileira, desde o início do século passado, às mulheres era reservado o papel de ouvinte ou de musa e, quando muito, o de intérprete.
Assim é que, existiam e ainda existem muitas cantoras e quase nenhuma compositora. Essa situação começou a mudar timidamente, a partir das últimas décadas do século passado. Atualmente, contamos com muitas compositoras, mas, mesmo assim, ainda é um número muito ínfimo, se compararmos com os compositores masculinos.
Entre as mulheres, uma das pioneiras a ocupar tal espaço, foi Chiquinha Gonzaga. Nascida no Rio de Janeiro em 1847, após muitos percalços em sua vida pessoal, foi tentar viver de música, tornando-se a primeira mulher “pianeira” – como se dizia na época.
Em 1887, compôs sua primeira música, a polca “Atraente”, registrada pela editora do flautista Joaquim Callado (1848-1880), que além de registrar a música, ainda lhe deu o lugar de pianista no seu grupo musical, o “Choro do Calado”.
Mas, sobre Chiquinha voltaremos a falar em outra oportunidade, pois ela merece um texto só para ela.
Só em meados do século XX foi aparecer outra compositora digna de atenção, Dolores Duran. Oriunda das camadas populares, nascida também no Rio de Janeiro, em 1930. Começou a cantar muito cedo, com três anos. Aos doze, perdeu o pai e tentou sustentar a família com a música.
Passou anos dedicando-se unicamente a ser intérprete. Participou de programas musicais e de radioteatro, na Rádio Tupy. Cantou ainda na Rádio Nacional e, aos dezesseis anos, foi contratada como “crooner” da boate Vogue.
Instada por amigos, que conheciam a sua capacidade, começou a compor. Sua primeira composição aconteceu em 1955, e foi uma parceria com nada mais, nada menos, que Antônio Carlos Jobim, seu amigo – também em início de carreira – o samba-canção “Se é por falta de adeus”, gravado por Dóris Monteiro.
Seguiram-se a essa música, inúmeras outras, solo e com vários parceiros, entre elas, algumas que se tornaram clássicos perenes da MPB, é o caso de “A Noite do Meu Bem”.
Mais ou menos na mesma época, surgiu outra intérprete-compositora. Esta, ao contrário das demais aqui citadas, era de família rica, seu nome Maysa, e ainda ostentando um sobrenome nobre de peso, Matarazzo.
Compôs sua primeira canção “Adeus”, aos 12 anos, quando até então estudava piano. Em 1956, lançou o disco “Convite para ouvir Maysa”, só com músicas de sua autoria, uma delas, o seu maior sucesso “Ouça”, um autobiográfico samba-canção. Com isso, ela abdicou da nobreza e do sobrenome que lhe conferira tal condição, passou a ser apenas Maysa.
Pois bem, tanto Dolores quanto Maysa, merece, também, uma crônica – ou até várias – que sejam próprias.
Vamos, enfim, falar do motivo desta nossa crônica. Em 1921, mais precisamente aos 13 dias de abril, nasceu Yvonne da Silva Lara.
Aos seis anos ficou órfã de pais e foi internada em um colégio, onde permaneceu até os dezesseis anos. Lá aprendeu música com as professoras, Lucília Guimarães Villa-Lobos e Zaíra Oliveira. Lucília era maestrina e professora de canto orfeônico e era ninguém menos que esposa de Heitor Villa-Lobos.
Já, Zaíra, foi a primeira esposa do compositor Donga. Era uma cantora negra que, em 1921, venceu o concurso da Escola de Música, a instituição de ensino musical de maior prestígio do Rio de Janeiro, naqueles tempos. Fez parte, também, do Coral Brasileiro, integrado entre outras, por Bidu Sayão. Foi considerada por muito tempo, uma das maiores cantoras negras do país. Para Yvonne, Zaíra foi uma referência, não apenas pelo talento, mas também pela trajetória de vida.
Recomendada por Lucília, Yvonne participou na Rádio Tupy, do Orfeão dos Apinacás, regido por Heitor Villa-Lobos.
Ainda menina, doze anos, começou a compor. Sua primeira composição foi Tié-Tié, inspirada em um pássaro muito bonito, de um vermelho muito vivo que havia ganhado dos primos Hélio e Fuleiro.
Esse primo, Fuleiro, sempre se mostrou decisivo para a caminhada de Yvonne pelas músicas e seria, também, um dos responsáveis por sua ascensão como compositora.
O curso tinha a duração de dois anos, ao qual, ela se dedicou com afinco, o que ela fazia com qualquer coisa que se dispusesse a fazer. Assim, quando se formou, em 1947, foi contratada como funcionária do Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, onde esteve até aposentar-se em 1977. Ela, que aprendeu teoria musical e canto orfeônico na escola, assim que saiu da mesma foi aprender tocar cavaquinho, com um dos seus tios, aí passou a compor com muito mais qualidade.
Mas, como já vimos no início, no alvorecer da música popular brasileira – final do século XIX e começo do século XX – esse negócio de música era um campo exclusivo dos homens, quando muito, era reservado às mulheres o papel de cantora e olhe lá! Com o surgimento das escolas de samba, essa restrição ficou ainda mais acentuada.
É aí que entra o primo de Yvonne, o Fuleiro. Ele havia se tornado o “Mestre” Fuleiro, compositor de sambas da Império Serrano. Então, ele apresentava os primeiros sambas da prima como se fossem de sua autoria. Não, ele não estava enganando, nem roubando Yvonne, é que nesse universo totalmente masculino – verdadeiro clube do Bolinha – se fossem apresentados por ela, não seriam aceitos, sequer seriam ouvidos.
Embora gostasse muito de música e de compô-las, quando Yvonne saiu da escola, a sua preocupação era trabalhar e fazer a sua independência financeira, pois era tido, já naquela época, que compor, cantar e sambar não eram vistos como profissão. Foi aí que ela resolveu fazer um curso de enfermagem. Em 1943, recém-formada, passou a trabalhar no bloco médico-cirúrgico da Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, uma instituição psiquiátrica que era referência em atendimento à saúde mental. Nessa atividade tomou gosto em lidar com os pacientes e ajudá-los.
Irrequieta que era, Yvonne, em 1945, decidiu se inscrever num curso para se tornar assistente social. Era a primeira turma de estudantes e a profissão não fora sequer regulamentada. Mas ela estava em busca da tão almejada estabilidade, e a especialização era a garantia de emprego.
Enquanto acontecia tudo isso, ela continuava a compor e, sempre que podia, participava das rodas de samba. Tentava constantemente conciliar o trabalho com o lazer, com preferência para o trabalho. Normalmente programava as férias no Instituto para o mês de fevereiro e, assim, poder sair na escola, no carnaval. Aos poucos, ela foi ficando conhecida, não só na escola, mas fora dela, também.
Em 1965, Fábio Mello – na época um dos diretores da ala dos compositores da Império Serrano – dizia para Yvonne: ─ Já que nós (a Império) nascemos lançando novidades, este ano a novidade vai ser você. Vamos colocar uma mulher, assinando o samba ao lado dos homens. E lá foi ela encontrar-se com um dos bambas da escola, Silas de Oliveira. Ele estava com o parceiro, Bacalhau. Os dois trabalhavam no samba-enredo daquele ano, “Os Cinco Bailes da História do Rio”, mas já não conseguiam pensar em mais nada, haviam bebido além da conta.
Ainda faltava uma parte da música, Yvonne chegou e cantarolando um pedaço da melodia, na hora terminou o samba que entrou para a história, tornando-se a primeira mulher a compor um samba-enredo oficial.
Mas a Império não ganhou o carnaval, ficou em segundo lugar e, mesmo assim, o samba se tornou um dos mais tocados e lembrados dos carnavais de Rio.
No final da década de 1960, a música ia aos poucos ocupando o devido lugar na vida de Yvonne, passando ela a fazer muitos shows. Em 1970, um empresário, o Oswaldo Sargentelli, que era apaixonado por samba, e ainda mais por mulatas, montou uma casa de espetáculos e restaurante, o “Sambão 70”. Entre os artistas que lá se apresentavam estavam Yvonne Lara, Clementina de Jesus e Roberto Ribeiro.
Percebendo que esses artistas estavam cada vez mais populares, ele e o produtor Adelzon Alves resolveram fazer um LP reunindo-os. Gravaram, então, o que seria o primeiro disco de Yvonne, junto com Clementina e Roberto, “Sambão 70”, pela gravadora Copacabana.
Quando Sargentelli e Adelzon ouviram o disco pronto, chamaram Yvonne e disseram: – De hoje em diante, o seu nome artístico é “Dona Ivone Lara”, é uma questão de respeito ao seu talento!
Em 20 de maio de 1972, o seu parceiro mais constante, Silas de Oliveira, veio a falecer, vítima de um infarto fulminante. Ela ficou desconsolada e vivia só chorando. O seu marido, o Oscar, estava arrasado por vê-la assim, falou para um sambista novo, mas bom compositor: ─ Ô Délcio, não sei o que vai ser dela, ela tem muitas melodias, mas não tem ninguém para pôr letras nelas, está pensando até em parar. E, assim, Délcio Carvalho passou a ser o novo parceiro de Dona Ivone.
Em 1977, aos 56 anos, Dona Ivone aposentou-se como enfermeira e assistente social. Resolveu dedicar-se integralmente à atividade de compositora. As músicas dela e de Délcio começaram a ser gravadas por muitos artistas, como Elizeth Cardoso, Cristina Buarque de Holanda, entre outros. Já, em 1978, uma melodia surgia insistentemente em sua cabeça, ela repetia aquelas notas dia e noite sozinha. Chamou Délcio e disse: – Tenho essa melodia cá comigo e queria que você fizesse uma letra, mas tem que ter alguma coisa de sonho, pois até sonhando eu canto essa música.
Na mesma época, Maria Bethânia estava gravando um disco e faltava uma música para fechar o álbum. Pediu para sua amiga Rosinha de Valença uma sugestão, Rosinha procurou Dona Ivone, que lhe mostrou aquela música que havia acabado de compor com o Délcio.
De pronto, Bethânia gostou da música, e gravou-a em dupla com Gal Costa, ganhando o prêmio de melhor música do ano, e assim “Sonho Meu” ficou sendo o maior sucesso de Dona Ivone, tendo dezenas de regravações.
Délcio Carvalho foi o parceiro mais presente, até mesmo mais do que Silas de Oliveira, mas ela teve outros, aos quais sempre cabia a função de fazer a letra: Paulo César Pinheiro (Bodas de Ouro), Jorge Aragão (Enredo do Meu Samba e Tendência), Caetano Veloso (Força da Imaginação), Hermínio Bello de Carvalho (Mas Quem Disse Que Eu te Esqueço) e muitos mais.
Esta é uma pálida apresentação desta quase centenária senhora, que nascida pobre, sendo mulher e negra, neste nosso mundo tão cruel e cheio de preconceito, soube achar o seu lugar e assumi-lo com nobreza e dignidade.
Gonçalves Viana
P.S. – Dona Ivone Lara faleceu em 16 de abril de 2018, aos 96 anos, em consequência de um quadro de insuficiência cardiorrespiratório, após permanecer por três dias na CTI da Coordenação de Emergência Regional, no Lebron, Rio de Janeiro.
SONHO MEU
Sonho meu, sonho meu
Vai buscar quem mora longe
Sonho meu
Vai mostrar essa saudade
Sonho meu
No meu céu a estrela guia se perdeu
A madrugada fria só me traz melancolia
Sonho meu
Sinto o canto da noite
Na boca de vento
Fazer a dança das flores
No meu pensamento
Traz a pureza de um samba
Sentido, marcado de mágoas de amor
Um samba que mexe o corpo da gente
E o vento vadio embalando a flor
(Dona Ivone Lara e Délcio Carvalho)