Gonçalves Viana: 'Um certo Ms. Balzac'

Esse jeito de tocar e de cantar foi chamado por alguns de sambalanço, por outros de teleco-teco ou, até mesmo, de bebop. Miltinho, com sua voz anasalada, foi se envolvendo cada vez mais com esse samba ‘modern’ e, aos poucos, se tornando o seu intérprete por excelência.”

 

Presidente Dutra

No início da década de 50, do século passado, estava surgindo um tipo de samba considerado moderno, pois era diferente do samba rasgado, ou partido alto, e tão pouco se confundiria, ou ligar-se-ia com a bossa nova – com todas as influências advindas do jazz – que emergiria alguns anos depois.

Em 1946, o Presidente Dutra, proibiu o jogo no país e com isso acabou com a principal fonte de renda dos cassinos. Renda essa que subvencionava os shows milionários em seus salões. Amplos salões que requeriam espetáculos vibrantes e ruidosos.

Miltinho

Muito bem, os frequentadores dos cassinos migraram para as boates, que começaram a proliferar velozmente. E, nesse ambiente menor, restrito, porém aconchegante e intimista, foi onde surgiu essa modalidade de samba, dito moderno e, concomitantemente, a figura do “crooner”, que não precisava ter aquele vozeirão, mas tinha que ter ritmo e balanço. E isso ninguém tinha mais que Milton Santos de Almeida, conhecido apenas como Miltinho.

Orquestra Tabajara

Na década de 40, ele integrou, como ritmista e vocalista, quatro dos mais importantes grupos musicais brasileiros: Cancioneiros do Luar, Namorados da Lua, Anjos do Inferno e Quatro Azes e um Coringa.

Já, de 1950 a 1957 foi crooner da Orquestra Tabajara, do maestro Severino Araújo e, também, do grupo Milionários do Ritmo, de Djalma Ferreira. Com os Anjos do Inferno, viajou aos Estados Unidos, acompanhando Carmen Miranda.

Milionários do Ritmo

Com o advento das boates, Djalma comprou, em 1951, uma boate, à qual deu o nome de Boate Drink. Para concorrer com as outras casas noturnas – que tocavam preferencialmente ritmos estrangeiros – Djalma optou por tocar música popular brasileira bem suave, intimista. Assim, em pouco tempo, a Drink tornou-se conhecida por um estilo que seria seguido pelas outras boates.  

Esse jeito de tocar e de cantar foi chamado por alguns de sambalanço, por outros de teleco-teco ou, até mesmo, de bebop. Miltinho, com sua voz anasalada, foi se envolvendo cada vez mais com esse samba “moderno” e aos poucos se tornando o seu intérprete por excelência.

Em 1960, Miltinho seguiu carreira solo, e lançou o LP “Um Astro Novo”, que obteve enorme sucesso. Nesse disco, gravou, entre outras músicas, aquela que se constituiu no maior sucesso de toda sua carreira, “Mulher de Trinta”, de autoria de Luiz Antônio.

Honoré de Balzac

Aliás, esse título, Mulher de Trinta, deu origem a um neologismo, pois a música foi inspirada no nome de um romance do escritor francês, Honoré de Balzac, “A Mulher de Trinta Anos”. Esse romance estava inserido no caudaloso painel de Balzac, sobre modos e costumes da sociedade da época, “A Divina Comédia Humana”. Era constituída por 17 romances, interligados entre si pelo tema.

Então, aqui no Brasil, quando uma mulher atingia uma idade madura, passava a ser chamada de balzaquiana, em alusão ao escritor francês. Interessante que, em certa época trabalhei com um engenheiro francês, e, comentando com ele esse fato, ele se admirou e disse que, na França, não existe essa conotação.

Mas, sobre esse disco, há uma história, no mínimo curiosa. Entre os frequentadores da Boate Drink, estava um candidato a empresário, de nome Geraldo Lima, que gostava de ouvir Miltinho cantar. Certa noite, ele revelou ao cantor que estava inaugurando uma gravadora de discos para lançamentos de jovens talentos, e quis saber se ele estaria interessado em iniciar o negócio como o seu primeiro artista. Esse primeiro disco, com Mulher de Trinta como carro-chefe, estourou de imediato, vendendo muito, mesmo.

Posteriormente, Miltinho diria: ─ “O disco vendeu uma barbaridade! Vendeu tanto, que Geraldo pegou todo o dinheiro e foi morar em Paris. Momentos antes de embarcar, ele deu dois cheques, um para mim e outro para o Luiz Antônio – o compositor do samba – como pagamento do nosso trabalho. Os dois cheques não tinham fundos. Restou o consolo, de esse disco ter aberto as portas do êxito para mim e para o Luiz”.

Miltinho prosseguiria em sua carreira de sucesso como intérprete, chegando a gravar mais de cem discos, até o final da década de 70, quando o seu gênero musical entrou em declínio. Saiu de cena dos grandes centros, passando a fazer apresentações em cidades do interior, que nunca se esqueceram da sua figura.

Milton Santos de Almeida, o Miltinho, nos deixou em 07 de setembro de 2014, aos 86 anos, vítima de uma parada cardíaca. Legou-nos inúmeras gravações de sucesso: Mulher de Trinta, Eu e o Rio, Poema das Mãos, Menina Moça, Poema do Adeus, Ri, Devaneio, Recado, Cheiro de Saudade, Palhaçada, Meu Nome é Ninguém, Lembranças, Mulata Assanhada, entre tantas outras.

                                                                                        Gonçalves Viana – viana.gaparecido@gmail.com

 

MULHER DE TRINTA

 

Você mulher

Que já viveu

E já sofreu, não minta

Um triste adeus

Nos olhos seus

A gente vê, mulher de trinta

No meu olhar

Na minha voz

Um novo mundo sinta

É bom sonhar

Sonhemos nós

Eu e você, mulher de trinta

O amanhã sempre vem

E o amanhã pode

Trazer alguém

(Luiz Antônio)

 




Gonçalves Viana: 'Uma dupla peculiar'

No final dos anos cinquenta, do século passado, mais precisamente em 1958, aconteceu o encontro de duas personalidades musicais que já tinham certo destaque no panorama da MPB. Desse encontro resultou uma dupla de compositores das mais profícuas e prolíferas já surgidas no Brasil, Evaldo Gouveia e Jair Amorim.”

 

No final dos anos cinquenta, do século passado, mais precisamente em 1958, aconteceu o encontro de duas personalidades musicais que já tinham certo destaque no panorama da MPB.

Desse encontro resultou uma dupla de compositores das mais profícuas e prolíferas já surgidas no Brasil, Evaldo Gouveia e Jair Amorim.

Jair Amorim

Iniciemos pelo mais antigo, Jair Amorim, que nasceu Jair Pedrinha de Carvalho Amorim, a 18 de julho de 1915, em Cachoeiro de Santa Leopoldina/ES.

Quando completou quinze anos, sua família mudou-se para Colatina, ingressando ele no Colégio São Vicente, onde concluiu o curso colegial. Pretendia cursar a universidade, mas, com a morte do pai, abandonou os estudos, e foi trabalhar no Diário da Manhã – jornal da capital capixaba – primeiro, como redator, mas, já compunha marchinhas para blocos carnavalescos.

José Maria de Abreu

Em 1941, Jair partiu para o Rio de Janeiro. No começo, para manter-se, escrevia crônicas para revistas, depois, foi trabalhar como locutor, na Rádio Clube do Brasil. Ali, conheceu José Maria de Abreu, pianista e compositor de algum sucesso. Jair andou sondando José Maria, com o intuito de escreverem algo, juntos. Mas ele não estava mais interessado em compor, pois seu principal parceiro, Francisco Matoso, havia morrido.

Sempre que Jair terminava seu serviço, ficava na rádio ouvindo os outros programas. Entre eles, o programa do galã Arnaldo Amaral que, certo dia, comentando sobre um sucesso internacional, “Maria Elena”, do mexicano Lorenzo Barcelata, muito tocado por aqui, mas, com letra em inglês, disse: ─ Se eu tivesse uma letra para essa canção, eu iria fazer muito sucesso! Jair, na hora, respondeu: ─ Se você quiser, eu faço uma.

Correu para a discoteca, de onde voltou, meia hora depois, com a letra pronta. Essa versão foi lançada logo após, pelo próprio Arnaldo e chegou às paradas de sucessos. José Maria de Abreu, que havia assistido o desenrolar desse fato, perguntou a Jair: ─ Essa letra é sua?

─ É!

─ Olha, eu tenho umas musiquinhas, e gostaria que você ouvisse.

Estava formada uma dupla que duraria cerca de dez anos, criando músicas inesquecíveis, como “Ponto Final”, “Sonhar”, “Um Cantinho e Você”, “Alguém Como Tu”, etc.

Agora, Jair já estava mais conhecido e compunha esporadicamente com outros parceiros, caso de Valdemar de Abreu, o Dunga (1907-1991) com quem compôs “Maria dos Meus Amores” e o megassucesso na voz de Cauby Peixoto “Conceição”.

Evaldo Gouveia

A outra parte da dupla, também tinha um passado de atividades musicais, vejamos, então, o Evaldo Gouveia, que nasceu em Orós/CE, em 8 de agosto de 1930.

O pai, rico comerciante, no ano seguinte, mudou-se para Iguatu, onde, aos seis anos, Evaldo já sabia recitar a tabuada, tocar violão e cantar no sistema de alto-falantes instalado na praça.

Com onze anos, foi para a capital, Fortaleza, onde, após quatro anos, formou-se no ginásio, e já trabalhava na feira. Mas não continuou os estudos. Foi trabalhar, ainda menor, como músico em uma pensão para mulheres. Porém, para a mãe garantiu que o emprego era num “restaurantezinho” cem por cento.

Com dezenove anos, em 1949, Evaldo tocava violão em um conjunto que se apresentava num bar elegante. Já havia estreado na composição, com: “Nós Dois e o Mar”, que chegou a fazer algum sucesso na voz de cantores da terra.

Trio Nagô

Ano seguinte, seguindo um aforismo de sua autoria: “O Ceará produz seca e conjunto vocal”, fundou o Trio Nagô. Era a época dos conjuntos vocais, e, entre os conhecidos, o Trio Irakitan, Anjos do Inferno, Quatro Azes e Um Coringa, o Trio de Ouro, e o recém-formado grupo cearense, com enorme popularidade.

Em São Paulo, decorrido um mês de sucesso, foram contratados pela Rádio Jornal do Brasil, pela Tupi e pela Record. Excursionaram duas vezes pela Europa (1956 e 1962), tocaram em muitas boates da moda, até que um dos integrantes do grupo arranjou um emprego público, e o Trio Nagô se desfez, após doze anos ininterruptos de atividades.

Mas, desde 1957, Evaldo já vinha compondo com certa regularidade. Fez, em parceria com Pedro Caetano, “Eu e Deus”; com Almeida Rego, “A Noite e a Prece” e “Pior Pra Você”; e também, com Gilberto Ferraz, um grande êxito, na voz de Nelson Gonçalves: “Deixe Que Ela se Vá”.

A respeito dessa música, alguém indagou: ─ Você deve estar “faturando uma nota” com esse sucesso do Nelson!

Evaldo respondeu: ─ Como assim, faturando o quê?

Ouviu então algumas explicações sobre direitos autorais, e uma sugestão: ─ Arranje três fotos 3×4, vai lá, à UBC União Brasileira dos Compositores, e procura o Jair Amorim.

Ele já conhecia a fama do Jair como compositor e queria muito conhecê-lo. Na mesma hora, correu para a UBC. O letrista estava terminando um artigo para uma revista e pediu que o esperasse um pouco. Após de ter conversado com ele, e saber das suas atividades, perguntou:

─ Rapaz, com toda essa bagagem, você ainda não é sócio?

─ Não, senhor.

─ Cadê as fotografias?

Regularizada a situação, Jair confessou-se admirador de Evaldo, que já conhecia seu trabalho no Trio Nagô. Este respondeu no ato:

Cauby Peixoto

─ Seu Jair, o maior prazer da minha vida seria fazer uma canção junto com o senhor. Nessa mesma noite nasceu a primeira composição da dupla: “Conversa”, que seria gravada por muitos intérpretes, por exemplo, Maysa e Cauby Peixoto.

Começava aí a jornada de uma dupla consagrada. Jair sempre pretendeu formar uma dupla estável, a exemplo do que então acontecia na música norte-americana com duplas, tais como: Richard Rodgers & Lorenz Hart; Sammy Cahn & Jimmy Van Heusen; Hoagy Carmichael & Mitchell Parish; James McHugh & Dorothy Fields; e outras. Jair, quando conheceu Evaldo, dono de grande inventividade musical, pôde colocar em prática o seu sonho.

O grande segredo da dupla é a sua extrema versatilidade. Ao longo da produção da dupla, assinalam-se os mais variados ritmos, samba, samba-canção, bolero, valsa, marcha-rancho, bossa-nova, tango, samba-iê-iê-iê e até mesmo samba-enredo.

Para interpretar as canções da dupla, inicialmente, a pedida era um cantor capaz de expressar a tristeza, a dor-de-cotovelo, em ritmo de samba-canção ou bolero. Escolheram Anísio Silva, um baiano de voz anasalada e queixosa, que foi o responsável pelo sucesso de “Alguém me Disse”.

Altemar Dutra

Na sequência, foi a vez de Altemar Dutra, voz romântica e educada que seria o lançador dos maiores sucessos de Gouveia e Amorim, “Tudo de Mim”, “Sentimental Demais”, “Que Queres Tu de Mim”, ”Somos Iguais”, “O Trovador”, “Brigas”.

Outros dois intérpretes também tiveram grande importância na carreira da dupla, Miltinho, que gravou, em 1962, o famoso “Poema do Olhar”, e Morgana que, no mesmo ano, proporcionou outro enorme êxito, “E a Vida Continua”.

Jair Rodrigues

Depois do carnaval de 1969, enveredaram pelo samba, compondo “O Conde”, uma obra em homenagem a Vilma, porta-estandarte da Portela. Esse samba obteve grande sucesso, interpretado por Jair Rodrigues. Assim, Evaldo e Jair acabaram por se firmar no samba, chegando mesmo a compor, em 1973 – a despeito das críticas e reclamações de puristas – o samba-enredo para a Portela, cujo título foi “O Mundo Melhor de Pixinguinha (Pizindim)”.

Em 1977, compuseram outro samba-enredo para a Portela, “Mulher à Brasileira”, que chegou a ser gravado por Rod Stewart, cantor pop inglês, numa versão rock and roll.

Ângela Maria

Para não se esquecerem de sua veia versátil, compuseram um tango, “Tango para Tereza”, gravado por Ângela Maria, em 1977. Evaldo Gouveia e Jair Amorim têm, juntos, um acervo de mais de cento e cinquenta composições.

Jair Amorim faleceu em 15 de outubro de 1993, na cidade de São José dos Campos. Evaldo Gouveia, aos 88 anos, ainda se apresenta pelas cidades do Brasil.

Em uma entrevista, já quase no final de sua vida, Altemar Dutra respondendo a um repórter, que lhe perguntou como gostaria de ser lembrado, disse que gostaria de ser lembrado pela gravação de “Brigas”, canção de Evaldo Gouveia e Jair Amorim.

BRIGAS

Veja só que tolice nós dois

Brigarmos tanto assim

Se depois vamos nós a sorrir

Trocar de bem no fim…

Para que maltratarmos o amor

O amor não se maltrata não

Para que se essa gente o que quer

É ver nossa separação…

Brigo eu, você briga também

Por coisas tão banais

E o amor em momentos assim

Morre um pouquinho mais…

E ao morrer então é que se vê

Que quem morreu fui eu e foi você

Pois sem amor, estamos sós

Morremos nós…

(Evaldo Gouveia / Jair Amorim)

 

Gonçalves Viana – viana.gaparecido@gmail.com