O leitor participa: Renata Rodrigues nos apresenta sua tia Nena em: ‘Dizia minha tia…’ 7

Tia Nena

O leitor participa:

Renata Rodrigues nos apresenta sua tia Nena em: ‘DIZIA MINHA TIA…’ 7

 

Dizia minha tia que “um louco deixa dez loucos”.

Sim, ela tinha razão quando falava sobre o comportamento alheio ser contagiante e de alto contágio o desequilíbrio humano.

Trabalhei numa empresa familiar do ramo têxtil, dirigida por seus proprietários, marido e esposa.

Minha função era um misto de telefonista, secretária, recepcionista e assistente administrativa.

O casal ia de um extremo ao outro nos dois períodos do dia: antes e depois do almoço! Eu chegava a pensar se o cardápio do dia tinha um efeito em seus neurônios e hormônios, pois ou amanheciam dois pombinhos enamorados e voltavam do almoço guerreiros medievais, ou surgiam pela manhã como vindos do Inferno e voltavam alimentados como se a sobremesa tivesse sido servida por anjos.

As discussões tinham motivos diversos e fúteis e sempre acabavam envolvendo quem estava por perto, em busca de contingente:

─ Diga, fulano, ela não me interrompe quando estou falando com um fornecedor para dizer asneiras?

─ Você não concorda comigo que ele perde tudo que eu entrego pra assinar?

Por essa razão, todos sumiam como ratos em buracos quando a temperatura começava a subir junto ao tom das vozes deles.

O último que ficava pagava o pato, e como eu cuidava das linhas telefônicas, era quem geralmente pagava o pato, a pata, o ganso, o marreco…

Um dia, voltaram do almoço aos berros, e, com eles, vinha um senhor bem trajado, mais pálido que hóstia. Passaram por mim como quem passa por um vaso de plantas e adentraram a sala de reuniões batendo a porta e continuando a confusão de palavras ditas todas ao mesmo tempo.

Como soube mais tarde, aquele inocente senhor era o advogado deles e a discussão envolvia herança de família.

Poucos minutos após fecharem a porta, ela se abriu vorazmente e o marido me disse:

─ Me traga já a “chave de fenda”! E bateu a porta de volta.

Mais do que depressa e aflita, sai do escritório, desci toda escadaria em dois passos, atravessei a produção com uma infinidade de máquinas costurando e cheguei à oficina de manutenção onde o mecânico, pós-almoço, refletia sobre a divindade dos gafanhotos, numa paz ímpar.

─ Me dá a chave de fenda! E logo!

E ele, em estado de choque pelo choque da minha pessoa em cena, gaguejou: ─ Qual?!

Não esperei, nem pensei:  peguei um exemplar enorme à minha frente e voltei voando para onde o destino da humanidade corria risco.

Quase sem fôlego e toda descabelada pela maratona, dei duas batidinhas na sofrida porta e me adentrei a sala, pondo a ferramenta sobre a mesa, como um soldado entrega um telegrama, saindo rápido e eficiente como tal faria.

Exausta, desabei em minha cadeira e pude ouvir um silêncio sepulcral entre os gladiadores daquela sala. Gelei!

A porta se abriu tranquilamente e o marido, de olhos arregalados, mostrando minha entrega em sua mão, perguntou calma e pausadamente:

─ Querida, o que é isto?

Com o mesmo espanto dele e também calma e pausadamente, respondi:

─ A chave de fenda que você me pediu!

Não ouvi risos. Ouvi gargalhadas! Até do velho apático, que agora se engasgava e ficava rubro, aproveitando no riso desopilar todo seu prévio nervosismo.

─ Agenda, meu anjo! Eu pedi a agenda…

Nessa tarde, fui eu o Manjar dos Deuses que fez reinar a paz naquele manicômio. Mas, só até a próxima refeição.

 

 




O leitor participa: Renata Rodrigues nos apresenta sua tia Nena em: ‘Dizia minha tia…’ 5

Tia Nena

O leitor participa:

Renata Rodrigues nos apresenta sua tia Nena em: ‘Dizia minha tia…’ 5

 

Dizia minha tia que: “Quando um não quer, dois não brigam”.

Nem sempre o qual não quer é um dos dois, raras vezes pode ser um intruso conciliador.

Comecei a trabalhar muito jovem e, assim,  tive colegas com mais (e muito mais) idade que eu por um bom tempo. Aos olhos dos jovens tudo é simples ou muito simples e eles não entendem os ‘complicômetros’ que os maduros geram para alimentar suas vidas. Um deles é a guerra de egos que os impede de ceder em uma batalha.

Quando era estagiária, trabalhei com dois senhores de muita opinião… e ambas contrárias, um  gaúcho e outro pernambucano.

Um dia, voltando do almoço, encontrei ambos num duelo ferrenho:

─ Jandaia é pássaro! ─ dizia um.

─ Jandaia é fruta! ─ respondia o outro.

─ Pássaro, tenho certeza!

─ Fruta, sem sombra de dúvida!

E cada um de sua mesa repetia convicto, sem ouvir os argumentos do outro. “Pássaro!”. “Fruta!”. E minha paciência foi deslizando ao chão com os argumentos surdos dos dois.

Levantei-me escandalosamente de minha cadeira e me dirigi ao armário, para encontrar a melhor ferramenta de busca de época: o Dicionário Aurélio!

Os gladiadores ficaram em silêncio quando perceberam que a sessão estava aberta e o meu tribunal iria encerrar o caso em breve. Folheei de forma teatral as finas páginas do chamado ‘Pai dos Burros’ e, ao encontrar a página de letras ‘j’ e  ‘a’, comecei a descer meu dedo pelo papel e, chegando à preciosa palavra, me pus a ler, sem som, com os lábios semicerrados para coroar meu momento de poder.

Com a sabedoria que não tinha e nem terei, iniciei a leitura da pauta:

Jandaia: substantivo feminino, ave da família dos psitacídeos (Aratinga solstitialis) que possui três raças distintas, encontradas na Amazônia e em várias regiões do Brasil, com cerca de 31 cm de comprimento, bico negro e plumagem laranja, amarela e verde também conhecida por cacaué, nandaia, nhandaia, queci-queci, quijuba.

Nesse momento, senti a respiração vitoriosa de quem nasceu em solo nordestino e conhecia mais de fauna que o colega dos pampas.

Mas, decidi com o poder que haviam me concedido, que a situação não terminaria assim para o bem de todos que trabalhavam naquela sala.

Então, voltei meus olhos para o livro sagrado e, com o dedo ainda marcando o ponto final, acrescentei uma vírgula imaginária e conclui:

─ Nome popular do fruto da ‘arvoris notaris’, de cor verde acentuado e interior polpudo e ácido, principal alimentação da ave de mesmo nome encontrada no norte do País.”

Seguiu-se um silêncio sepulcral e, ao fechar o livro, dei por encerrada a sessão.

Retornei o avô do Google ao seu lugar de honra entre os demais livros do armário e saí da sala antes que toda minha segurança magistral viesse por terra ao fitar um dos dois mudos à minha frente.

Minutos depois, voltei à arena e encontrei a mais perfeita harmonia no ar, que perdurou até o final do expediente.

Fui para casa com a satisfação de quem cumpre seu dever humanitário, imaginando ser essa a  sensação de quem recebe o Nobel da Paz.

No bolso, levava comigo, por precaução e destacada com todo cuidado,  a página que continha o meu trunfo,  caso o processo fosse reaberto e meu  álibi conferido. Porém, isso não aconteceu, pois as batalhas que vieram tiveram outros alvos, não mais pássaros ou raras frutas…