Carlos Carvalho Cavalheiro: 'Negritude Velada: As Irmandades de Negros de Sorocaba' – Parte II

Grupo de Moçambique, durante uma manifestação cultural e religiosa de matriz africana. Apresentação no SESC Sorocaba. Foto: Carlos Carvalho Cavalheiro

Negritude Velada: As Irmandades de Negros de Sorocaba – Parte I

Ainda recorrendo a Aluísio de Almeida, verifica-se que a construção em taipa era especialidade dos negros da Irmandade e que a construção de suas igrejas sempre parava quando chegava a necessidade de trabalhos outros, como o de carpinteiro, de ferreiro, de pintor etc. (ALMEIDA, 1952).

Isso demonstra que existia mesmo falta de recursos entre os negros de Sorocaba para viabilizar a construção da igreja de sua irmandade. Diferentemente ocorria nas regiões das Minas, como exemplo[1]. No entanto, a igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Sorocaba foi abandonada inacabada em 1812 (quando não se tem mais notícias da Irmandade) e a de São Benedito não consegue, por sua vez, terminar o seu templo, eis que em 1873 fora construída uma torre, à guisa de igreja, no antigo teatro de Santa Clara (igreja que não foi benzida) sem, contudo, acabar a construção, conforme publicou o Almanak da Província de São Paulo para 1873.

Mas qual era a função das Irmandades negras? Apenas permitir ao negro participar do culto católico? Segundo a historiadora Claudete de Sousa Nogueira (2008), as irmandades tinham como finalidade servir como sociedade na qual se agregavam negros (livres, escravos, forros) para apoio e ajuda mútua. Para Carlos Rodrigues Brandão (1986), as irmandades – com suas festas – recriavam, numa oposição de sentidos, o simbolismo de se coroarem a si próprios e não aos santos católicos, como faziam os brancos.

No sentido dado por Claudete Nogueira, relacionamos a história da Irmandade de São Benedito de Porto Feliz, a qual comprou terreno anexo ao cemitério da cidade, no final do século XIX, para que os seus pudessem ser enterrados[2]. No sentido dado por Carlos Brandão, lembramo-nos do lendário Reisado estabelecido por Chico Rei, em Vila Rica (atual Ouro Preto). Como testemunha Carlos Góes (1994, p. 81), “no dia 6 de janeiro de cada ano o Rei, a Rainha e os Príncipes, vestidos com trajes opulentos, cobertos de suas insígnias e coroas, eram, com grande aparato, levados à Igreja do Rosário”.

Por outro lado, as Irmandades eram uma forma de resistência (ainda que se entenda como resistência afirmativa) à escravidão. Além de servir aos negros como alívio aos “sofrimentos infligidos pelos brancos” (NOGUEIRA, 2008, p. 40), as irmandades funcionavam como forma simbólica de resistência na medida em que se procurava preservar os rituais e mesmo o seu panteão da impostura dos padrões religiosos católicos. Clóvis Moura (1989, p. 35) explicita que nesse processo de resistência.

Sempre a defesa do dominado, do oprimido, do discriminado é ambígua. Aquele que não pode atacar frontalmente procura formas simbólicas ou alternativas para oferecer resistência a essas formas mais poderosas. Dessa forma o sincretismo assim chamado não foi a incorporação do mundo religioso do negro à religião dominadora, mas, pelo contrário, uma forma sutil de camuflar internamente os seus deuses para preservá-los da imposição da religião católica.

Memorialistas e historiadores registraram a permanência das práticas oriundas dos rituais africanos dentro das Irmandades negras católicas, sobretudo na capital paulista. Paulo Cursino Moura (1980, p. 80), por exemplo, afirma que histórias de lendas e bruxarias eram atribuídas à “Irmandade de N. S. do Rosário dos Homens Pretos, instituída em 1810” na cidade de São Paulo. É célebre a descrição ritualística que fez do enterro de negros da Irmandade, que, jogando punhados de terra sobre o cadáver, cantavam: “Zóio que tanto vê / Zi boca que tanto fala/ Zi boca que tanto ri / zi comeu e zi bebeu / Zi corpo que tanto trabaiô / Zi perna que tanto andô / zi pé que zi tanto pisô…”. Aluísio de Almeida registrou semelhante ritual existente em Sorocaba no passado, intercalado por “bum bum bum” feito com batidas de pés ou pilões que socavam a terra que cobria a sepultura.

Tais práticas, como recriações e reelaborações de antigas tradições africanas – que permaneceram à guisa de resquício nuclear na formação de uma identidade – fornecem o subsídio necessário para a sobrevivência na correlação de forças que se estabelece dentro do contexto de domínio inerente à escravidão. Daí se depreender que a as relações entre negros e brancos naquele contexto histórico eram tensas e requeriam de ambas as partes, mas, sobretudo do negro, estratégias e dinâmicas que permitissem a sobrevivência da ritualística, mesmo que dentro da dinamicidade da reelaboração de símbolos e de significados.

Carlos Cavalheiro

Carlos Carvalho Cavalheiro É professor de História na rede pública municipal de Porto Feliz (Brasil). Escritor, poeta, historiador, pesquisador de cultura popular e documentarista. Autor de 30 livros, sendo o mais recente o romance “O Legado de Pandora”, publicado em junho de 2021. Acadêmico correspondente da FEBACLA (Federação Brasileira dos Acadêmicos das Ciências, Letras e Artes). Mestre em Educação (UFSCar), é licenciado em História e em Pedagogia. Bacharel em Teologia.

[1] Na cidade de Ouro Preto, por exemplo, há duas igrejas de negros: a de Santa Efigênia (ou Nossa Senhora do Rosário do Alto da Cruz), que levou 60 anos para ser construída (1730 a 1790) e a de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito (1785).

[2] Segundo o historiador Romeu Castelucci em 1896 a Câmara Municipal de Porto Feliz regulamentou o enterramento de pessoa no cemitério da Irmandade de São Benedito.