O estranho
Sergio Diniz da Costa: Conto ‘O Estranho’
A porta entreabriu-se lentamente. Lá fora era noite. A noite mais fria do ano. Uma neblina de morte pairava nas ruas da cidade adormecida. Tudo era silêncio. Raro era o instante em que se ouvia um ganido de cão vadio perdido na névoa viscosa, que abraçava as ruas sujas e sem ecos humanos.
─ Boa noite! Posso entrar? ─ Foram as únicas palavras que se ouviram de fora.
─ Entre! ─ eu disse, quase que num espasmo.
O estranho adentrou pela sala aquecida por uma lareira crepitosa. Tirou o chapéu de feltro amarrotado e úmido e preparava-se para tirar o sobretudo quando, como se eu despertasse somente naquele momento, reparei numa das mãos do homem; ela segurava uma mala preta que causava uma desagradável impressão. Parecia pesar como um haltere. Mas, não era somente o seu aspecto plúmbeo que assombrava à primeira vista; parecia conter algo sinistro em seu interior.
Talvez essa impressão fosse causada pela pouca luz que se difundira naquele canto da sala, por isso adiantei ao visitante:
─ Por favor, queira chegar até aqui! Lá fora está muito frio e nada como uma lareira para descongelar o sangue ─ Falando assim, quis dissipar aquele ar denso que parecia fazer parte do ar noturno que espalhava-se lá fora.
O estranho adiantou uns passos medidos e mergulhou na claridade que escapava da lareira. Seu semblante era rude, como o de um viking em plena batalha de morte. A testa adiantava-se do rosto, deixando os olhos perdidos nas órbitas profundas. E de seus olhos emergiram dois brilhos metálicos, que causavam a sensação de se estar diante de uma fera assassina. O seu nariz aquilino adiantava-se proeminentemente da face encovada, dando-lhe um ar tragicômico. A boca, de lábios finos e rachados, cerrava-se num silêncio lúgubre. Do lado esquerdo de sua face podia-se notar uma cicatriz, causada por um corte profundo, com certeza. O queixo avançado impetuosamente, de arestas marcantes, dava-lhe um caráter resoluto. Seus cabelos, de corte comum, deixavam as orelhas descobertas que, terminando em pontas, davam-lhe uma aparência malévola.
─ O senhor parece assustado ─ balbuciou o estranho, com voz gutural.
─ Ah! É impressão sua ─ menti, com receio de deixar transparecer o meu íntimo. ─ Mas, queria sentar-se, por favor. O senhor deve estar cansado, não?
A massa humana sentou-se sem dizer palavra. Tentei manter um diálogo, a fim de descarregar a eletricidade que tomava conta do ambiente. Entretanto, parecia inútil a tentativa. Por fim, disse-lhe, inopinadamente:
─ A farsa não pode continuar por muito tempo!
O homem pareceu surpreso e, remaniscando, levantou e colocou-se numa atitude de defesa.
─ Sim, a farsa deve acabar! ─ E, virando-se para o meu lado, encarou-me com olhos decididos.
─ Quero dizer que… ─ Não pude continuar a frase; Berta, minha governanta, irrompeu pela sala e, com palavras sussurradas, confiou-me algo ao ouvido.
O estranho inquietou-se ainda mais.
─ Não, Berta, não quero que você continue com aquilo!
─ Desculpe-me, eu não queria… e, sem poder terminar a frase, caiu num pranto copioso.
Olhei pra ela com olhos de compaixão, acariciando seu coque branco. E em voz baixa falei-lhe, delicadamente:
─ Berta, continue com seus afazeres.
Ela saiu, enxugando as últimas lágrimas e desculpando-se, continuamente.
─ Ela poderia ter ficado? ─ indaguei ao estranho.
─ Não! ─ foi sua resposta. ─É melhor que tudo fique entre nós dois.
─ Como queira ─ respondi, com certa humildade.
─ Não devemos prolongar por mais tempo o nosso assunto ─ insistiu o vulto humano. ─ As horas escoam rapidamente ─ arrematou.
─ Sim eu compreendo. Siga-me! O que procura está nos subterrâneos da casa. Venha por aqui.
Virei-me e nos dirigimos ao porão, No caminho, desculpei-me pela arrumação da casa. A entrada do porão estava fechada desde que eu contratara Berta como governanta. Com a Vinda dela, cuidei que seria melhor trancar aquela passagem e ficar com a chave em meu poder. Questão de segurança, simplesmente.
Entramos, com a porta rangendo como um moribundo que foi molestado em seu leito de morte. Densas teias infestavam aquele umbral úmido, que dava ao espírito uma sensação de abandono, de desolação.
─ Eis o que veio buscar ─ disse-lhe, depois de vasculhar aquele interior que há muito não via pessoas.
O estranho assentiu com a cabeça e avançou para pegá-la, quando se ouviu um grito lancinante cortar o silêncio que reinava naquele lugar desconfortável.
─ Berta! ─ exclamei, lembrando que a simpática velhinha ficara sozinha lá em cima.
Tive o ímpeto de correr para a parte superior da casa, quando fui subitamente preso pelo braço hercúleo do visitante.
─ Não vá! ─ disse-me, energicamente. ─ É melhor para você permanecer aqui. É muito tarde para Berta. O que tinha que ser feito, o foi.
Num gesto brusco, desvencilhei-me daquela garra poderosa que esmagava meu braço. Colocando as mãos no rosto, solucei em voz alta:
─ Meu Deus! Como pude me esquecer de Berta? Eu deveria saber que ela seria incapaz de se defender sozinha.
─ Infelizmente Berta não servia para os meus planos.
Aquela voz estentórica martelou meus ouvidos e, numa agonia de morte, perguntei-lhe:
─ E eu? O que acontecerá comigo? Cumpri com a minha parte, não?
─ Sim, você foi muito útil. Deixarei esta mala; quando eu estiver fora desta casa, poderá abri-la. Adeus!
E, virando-se em direção à porta, sumiu pelos degraus ascendentes. Pude ouvir o barulho da porta da frente se fechando.
Fez-se alguns segundos de silêncio que pareceram toda uma eternidade. Logo após, abri o fecho daquela mala fatídica.
Nas ruas gélidas da velha cidade adormecida, quebrou o silêncio cúmplice um grito final, que se perdeu em alguma ruela imunda. Depois, fez-se silêncio, novamente, raramente quebrado pelos ganidos de algum cão vadio que perambulava sem rumo pela cidade perdida na neblina.
Sergio Diniz da Costa
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