Orlando Rafael Ukuakukula: “O distanciamento afectivo na relação humana descrito na música 'Ngana Zambi', do grupo Clássico Infinito, e um olhar sugestivo para o poema ‘solidariedade’, de Gabriela Lopes”

Orlando Ukuakukula

A vida é um eco. Não importa a distância e o tempo, tudo que lançar terá retorno para si” (Ukuakukula, 2022)

Dois textos de ritmo, arte e poesia (a música e o poema) fizeram nascer este outro texto, de análise, quando cruzamos a música da staff Clássico Infinito, jovens do  bairro Vidrul, uma das periferias de Cauaco, Lunda, Angola; e o poema da estimada escritora Gabriela Lopes, de Brasil, para nos servir de apoio, propósito para o qual a nossa mente estava virada, quando decidimos convocar um texto de uma escritora da diáspora.

Ao procuramos saber do significado de “UBUNTU”, termo usado pelos africanos, Tomé Ângelo (2022, Facebook) respondeu-nos: “É uma filosofia da vida africana, que significa <<eu existo porque tu existes>>”. A interpretação deste termo, da língua nacional angolana kimbundu, remete para o caso em que a pessoa quer fazer perceber que o outro pode contar com ela e vice-versa, ou seja, “eu sou você, e você sou eu”; uma expressão que indica, portanto, um acto de solidariedade, de afecto.

Pondo a música em linha estreita com a literatura, cuja escrita é uma forma de expressão, que nos remete, parafrasendo Maria Miguel e Maria Alvez (2011), à transmissão das emoções, dos sentimentos e pensamentos mais íntimos do artista, torna-se claro todo acto emotivo expresso na música “Ngana Zambi”, dos Clássico Infinito, para evidenciar um desafastamento familiar e até social, portanto, ausência do amor, da afectividade, e, enfim, para mostrar o desprezo que as pessoas vivem quando estão diante dos problemas. Verifiquemos nalguns versos da música:

Arranjei diculo no cubico.

Mano, fui barrado por eu ter feito dois cassules

E não ter emprego.

Entendo por ser expulso porque um gajo falhou

Que atira a primeira pedra aquele que nunca pecou.

Eu pausei com bué de wys

Que um gajo pensava que eram irmãos

Na frente tá tudo bem

Mas nas costas falam mal

Eu Já fui borrado, humilhado, desprezado

Na rua já dormi, nem sequer tive um teto

Tudo que eu passei, passei sozinho

Agradeço a Deus por iluminar o meu caminho

Estes são os versos que consideramos serem o centro da música. Aqui, está expresso todo conjunto de situações que nos fazem confirmar o adágio segundo o qual o escritor (artista) é fruto das suas vivências. Ainda que não das suas, o que se retrata na música é passível de ser situação de outrem, já que a literatura, embora tenha a subjectividade como grande recurso, parte do real. O que significa que o artista se inspirou numa situação real, que, como dissemos, pode ser dele ou não. Encontramos, portanto, no teor da mensagem dessa música, uma queixa, uma denúncia, um pedido de socorro; um apelo ao socialismo, ao amor ao próximo, à solidariedade, que tem se visto distante cada vez mais no seio da sociedade angolana, e não só, no mundo em geral.

Agora, pondo em diálogo os textos, no seu poema “Solidariedade”, Gabriela Lopes nos escreve:

A cada dia que vivo

Mais tenho certeza que o amor cura

Desconcerto bruto

Joga luz no oculto

Traceja estrada que antes não existiam

Cada vez que o ser vivo

Olha de forma empática o outro

E age com maior atenção

De respeito e acolhimento

Correntes do bem são construídas

Reverberam fertilidade

Multiplicam esperanças na natureza humana

Assim, está expresso a preocupação dos textos em análise. Se, por um lado, na música se evidencia uma queixa do distanciamento afectivo entre as pessoas, por outro lado, no poema, temos um conselho e, sobretudo, o que tal atitude, se seguido o conselho, pode gerar, como se verifica nos três últimos versos do poema “Correntes do bem são construídas”, “Reverberam fertilidade” “Multiplicam esperanças na natureza humana”. A beleza desses dois textos, por tratarem de questão social, no que relação humana diz respeito, foi o que nos fez escrever esta análise para deixar como subsídio de reflexão aos homens, já que de Deus foram feitos imagem e semelhança, assim como é o título da música “Ngana Zambi”, do Kimbundu, “Senhor Deus”, que é refrão da música, uma invocação; cruzando-se com “Solidariedade”, uma característica intrínseca a este Ser Supremo.

GLOSSÁRIO: A gíria e o calão são, nos músicos das periferias, os registros de linguagem mais usados. Daí a necessidade de criar um glossário para melhor explicitação dos termos usados na música em análise: Diculo> problema; Cubico> casa; Barrado> negado; Wys> amigo Gajo> usado para substituir pronomes pessoas rectos (eu/ele), para o contexto, significa “Eu”.

AUTOR: Orlando Ukuakukula

 

 

 

 




Orlando Rafael Ukuakukula: "A necessidade da implementação da 'Pragmática' como unidade curricular no curso de Linguística Portuguesa nas instituições de ensino superior (IES) face a concepção contemporânea do estudo da linguagem"

Orlando Ukuakukula

“O enunciado é o resultado do acto da enunciação. Ou seja, as pessoas, em sala de aulas ou não, têm a necessidade de comunicar; mais do que isso, têm a necessidade de interagir.”

Dum tempo a esta parte, tenho vindo a reflectir, nos meus estudos em literatura, a questão dos enunciados linguísticos, uma relação que faço entre as entidades dos textos literários, o conto e o romance, mais especificamente, já que envolvem presença do narrador e narratário, elementos internos ao texto e que, dado o tempo, circunstâncias a que são postos pelo autor, criador do código e cenários, criam discursos, ou melhor, enunciam e tais enunciações resultam em enunciados. No entanto, o meu foco, neste artigo de opinião, não está muito voltado à literatura, mas propriamente à linguística, embora os empréstimos entre ambas funcionam normalmente, e porque é necessário. Então, introduzir a temática relacionando-a com a literatura é um método que encontro para querer dizer que importa a sugestão deste artigo, da necessidade da Pragmática como unidade curricular, que é funcional para qualquer aula em Língua Portuguesa. Senão vejamos:
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Os estudos sobre a linguagem apresentam-se em três grandes concepções:
(I) como representação do mundo e do pensamento do indivíduo;
(II) como instrumento de comunicação;
(III) como meio de interação. Esta última é a contemporânea por apresentar:
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a) a língua como objecto de comunicação (no sentido de interação) e, por isso;
b) levar em conta dois elementos em falta nas duas primeiras concepções: O RECPTOR, que é um elemento em falta na primeira, mas existente na segunda, porém passivo; e o ALOCUTÁRIO, que implica a interação, ou seja, que implica um emissor e um receptor activos e responsáveis pelo acto da interação, que é a actividade linguística. Assim, nessa interação, os responsáveis desenvolvem enuciados, no processo das enunciações, aquele que é, então, objecto de estudo da Pragmática. Esta é, portanto, a justificativa do tema deste artigo, que também é uma proposta, sendo que:
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O enunciado é o resultado do acto da enunciação. Ou seja, as pessoas, em sala de aulas ou não, têm a necessidade de comunicar; mais do que isso, têm a necessidade de interagir. Deste jeito, produzem enunciados. O enunciado é um acto da fala; individual. Citando Martins (2021) em seu trabalho designado “Súmula sobre estudos de enunciação”, enunciados “são unidades do sistema linguístico + unidades do sistema extralinguístico.” Ela considera as situações e contextos a que são produzidos. Assim, a Pragmática surge e, segundo o que se sabe, a Pragmática é parte do estudo da língua que trata de compreender os “sentidos”, e não significados, dos enunciados.
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Ainda parafraseando Martins, o sentido é, diferentemente do significado, inferências ou informações que se acrescentam a um enunciado. Ao passo que significado é objecto da semântica na sintaxe da frase. Por isso, o significado da frase é calculado pelas palavras que a compõem, ao passo que o objecto da Pragmática é o enunciado, aquilo que se percebe dos enunciados produzidos pelos interlocutores de uma interação, através da situação e/ou contexto.
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Posto isso, evidencia-se que “interagir”, produzindo enunciados, é a actividade básica, diária e necessária de qualquer indivíduo, falante e dententor de uma língua. Se nos enunciados se expressam sentimentos, pensamentos, modo de ver, de criar; aliás, se isso envolve o conhecimento extralinguístico, portanto, histórico, social, ideológico, está claro que isso é suficiente para fazer com que a Pragmática deixe de ser parte da unidade curricular designada Semântica e passe a ser autónoma, tendo sua própria unidade curricular designada “Pragmática”, nas Instituições de Ensino Superior (IES). Isso a olhar também, e como já dissemos, para a concepção contemporânea de Linguagem, na agrupacão que (Koch, 1992 apud Martins, 2021) faz das três concepções.
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Voltando ao que acima frisamos, sobre o outro olhar disso em Literatura, perceberemos que, afinal, as impressões causadas pelos narrador e narratário são enunciados que exprimem ideias, pressupostos e implicitos, trabalhado pelo autor. E, aliás, perceberemos, mais importante ainda, que o “narrador” não é, afinal, como nos vêm ensinando século após século, <a pessoa que conta a história>. Outrossim, a considerar as enunciações, ou melhor, os enunciados, que são o resultado final de toda enunciação, estariamos a considerar todo tipo de impressão linguística do falante, a cultural, principalmente. Entender-se-ia, naturalmente, as questões muito debatidas, e que até virou moda, sobre variação e mudança linguística.
Portanto, por serem a enunciação, o enunciado, o acto da fala, elementos ligados ao sentido=contexto e/ou situação, por isso, respeitando os aspectos socio-culturais e socio-linguísticos do falante, e, por isso, objecto de estudo da Pragmática, urge, no meu entender, enquadrá-la no programa do curso de Ensino da Língua Portuguesa, ou Linguística Portuguesa, como outras instituições denominam, como uma unidade curricular. Resolveria, como fim último, os problemas de Leitura (como acto de descodificação e visão do mumdo) e interpretação, só pra citar.
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Orlando Rafael Ukuakukula
Luanda, 22 de Março de 2022

 

 

 

 

 




Orlando Rafael Ukuakukula: 'Par(ente)ses'

Orlando Rafael Ukuakukula

Par(ente)ses

(V)idas
Sem (re)voltas
É o (des)temido
.
No hoje
(In)esperado espectro
Logia
De ciências que amarram
Nossos cabritos
(P)assados
.
(No)meia
Em pernas e calçados
Cansados
E faz o devido
Papel (en)lutado
Desde então
(I)mortais
(D)essas mãos
As
Sassi
Nas enternas
.
E mesmo assim
(O)brigados
De nada
Por nada
.
.
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Orlando Rafael Ukuakukula

Luanda, 22 de Fevereiro de 2022

 

 

 

 

 

 




Orlando Rafael Ukuakukula: 'Caveneno'

Orlando Ukuakukula

Caveneno

Cinco minutos de silêncio tomaram conta da conversa que estava descontraída, depois de não haver uma resposta que se colocou naquele meio.

Venâncio, Eurico e Tchivinda procuravam fazer *vaquinha para uma sentada de família com *petiscos. Tinham arrumado volta de 3.000,00 (três mil kwanzas), que lhes chegava para fazer um bom prato de mufuete, caso jogassem bem nos gastos. Era todo dinheiro que eles tinham para realizar um sonho, o de se sentir bem com uma comida que só viam nos outros e nas novelas. Mandaram à merda, não queriam saber se era o único dinheiro que tinham, decidiram realizar o sonho.

– *Qualé a ideia, *vamo *papar um mufuete? Eu tenho mil kwanzas. – disse o Venâncio, por sinal, o mais velho do grupo.

– Eu *tamém tenho Mil. – Respoderam em coro o Eurico e o Tchivinda.

Naquele mesmo momento, foram à pracinha mais próxima do bairro Rua Cheia, na Vidrul, ali onde ao povo se vende bens alimentares a retalho, lá, onde quem consegue um mínimo de dinheiro, consagra a refeição do dia. É dali que os rapazes conseguiram farinha musseque, feijão, óleo de palma numa metade de embalagem, dois peixes, seis tomates e já nem dava para comprar bananas ou batatas-doce, ingredientes que formam aquele prato. Mas, pronto, voltaram com o sonho num saco.

Em casa, iam preparando a refeição, enquanto  contavam algumas novidades do que tinha acontecido com um e com o outro. Não é que o Tchivinda atira a primeira *bomba?!

– Eu já comi mufwete até deixar no prato.

– Duvido. Você que teu pai é *camponês, na vossa casa comem de *rifa. – respondeu o Eurico com um sorriso nos lábios, que contagiou todos.

– E quem disse que comi na nossa casa?! Aquilo era na festa. – Tchivinda se justificou, sorrindo.

O tempo tinha se passado e o petisco estava feito. Na mesa do quintal, embaixo de uma árvore, começaram a saborear o prato. Comiam até os *picos de peixe. Afinal, ninguém deixa sonho no prato. De repente, no fim da refeição, entreolharam-se, numa interrogação do que poderiam beber depois da refeição.

– Vamo beber o quê? Água tamém é que não.  Só que tamém não há dinheiro para comprar gasosas ou qualquer outro sumo de qualidade.

De repente, os rapazes saíram às corridas e dirigirem-se à cantina na compra do famoso sumo: Caveneno. Escolheram o sabor de Manga, desanuviaram, se pintaram as línguas, os corações e se (ca)envenenaram alegremente. E na alegria, em coro, gritaram:

– CAVENENOOOOOOOOOO!!!!!

 

GLOSSÁRIO…

Caveneno > Sumo típico para camada baixa da sociedade angolana, que anda em um recipiente (pacote) pequeno, com variados sabores, de 1,5 l e custa cinquenta a sessenta kwanzas na moeda angolana. Tendo sido divulgado com mais intensidade na época de estado de emergência, fruto da pandemia covid-19, uma época em que o pessoal ficava sem trabalho, já que estavam confinados em casa e, portanto, pobres, ao que recorriam à coisas baratas para satisfazer as necessidades basilares da vida. Um sumo que, por mais pouco que seja, sua doçura facilita na grande quantidade de água, pelo que, só com um pacote, podem consumir estimadamente três a quatro pessoas, o que facilita para o agregado familiar. Deixa marca da sua cor na língua; sua doçura não se deve ao açúcar comum (sacarose), mas sim, deve-se a um adoçante chamado aspartame, resultado da junção entre o ácido aspártico e a fenilanina, sendo certo, por tudo isso, que é prejudicial.

Vaquinha > Termo usado na gíria, para significar contribuição de valores monetário; associar-se a um grupo com alguma coisa para a realização de alguma actividade, normalmente comidas e bebidas.

Petisco > Termo usado para descrever uma situação de refeição do momento, fruto de uma contribuição, normalmente para reencontros de amigos/familiares, com finalidade de descontraírem-se.

Qualé > Aglutinação do pronome interrogativo “qual” com a forma verbal “é”, vulgo no contexto angolano.

Vamo > Forma verbal “vamos”, com ausência da marca do plural, o que ocorre, na oralidade nos falantes angolanos, inclusive nos nomes/substantivos.

Papar > comer, alimentar-se, saborear.

Tamém > De “também”, novamente da realidade angolana, o processo de supressão do segmento fonológico “b” no meio da palavra, síncope.

Bomba > Usado, às vezes, para significar “novidade”, como está empregado no contexto.

Camponês > Pessoa que trabalha na fazenda, no entanto, no contexto angolano, muitas vezes, o significado dessa palavra associa-se a “pessoa pobre”, “humilde”.

Rifa > Tem, para o contexto empregado, a carga semântica do verbo “calhar”, ou, também, “intercalar”, assim, <<comer de rifa>> quer dizer comer intercaladamente, dias sim, dias não, ou, pelo menos, período sim, período não.

Picos > Espinhos.

 

Orlando Ukuakukula, dezembro, 13 de 2021

 

 

 

 




No Quadro de Colunistas do ROL, o angolano Orlando Rafael Ukuakukula!

Orlando Rafael Ukuakukula

O Jornal ROL cada vez mais amplia sua fronteira cultural e se irmana com países lusófonos. De Angola para o Brasil, as Letras de Orlando Rafael Ukuakukula!

Orlando Rafael Ukuakukula, natural de Luanda, é formado em Ensino da Língua Portuguesa, do Departamento de Letras Modernas, pela Escola Superior Pedagógica do Bengo (ESPB), em Angola.

É membro do projecto de investigação científica da Variedade do Português em Angola (VAPA); membro da Brigada Jovem de Literatura de Angola (BJLA) e delegado do núcleo de Cacuaco.

Profissionalmente, é professor, e, nas artes, escritor, cronista, poeta e declamador.

Participou, com mérito, do Iº Concurso Internacional Poético Cultive-2021, em Genebra-Suíça e coautor da Revue Suisse Dárt et Literature Cultive.

Orlando Rafael inaugura sua colaboração no ROL com um texto saborosíssimo, repleto de termos do dia a dia angolano, devidamente ‘traduzidos’ para os leitores, por meio de um glossário ao final.

CHUVISCOS À CACUACO: A PANDEMIA

É lá, na Retranca e Pedreira de Alexandre, onde tudo começou e transitou para Vidrul, uma das periferias de Cacuaco, num domingo à tarde e agitado. Trovões, escuridão no céu e raios formam marcações de chuva e assustam os moradores que, descalços, com calções ou calças, panos e lenços na cabeça corriam de um ponto para o outro. Aqui, é preocupante chover. Já há quem odeie Deus pela autonomia que dá à natureza, e é por isso que as falácias, nesses momentos, proliferam:

– Isso mais é que, mô Deus! Eh! Chuva de novo? – voavam as reclamações.

– Tira a roupa do fio, Dó!

– As chapas, como ficam? É preciso subir no teto, senão a nossa casa não existe.

Do outro lado, está José Lino Osvaldo, representante da ACBC (Associação das Comunidades Baixas de Cacuaco), descansado no sofá de sua casa, assistia relaxada e despreocupadamente aos programas televisivos; alegria no rosto. Na sua mesa, figura-se cachorro quente, hambúrguer, pizzas, pão com presuntos e sumos de vários sabores para acompanhar. Não se preocupava com a reação que o organismo poderia dar. O mais importante era, com aquele dinheiro, graças a associação, satisfazer suas necessidades, sozinho.

Na estrada, como sempre, proporção de carros, os vulgos engarrafamentos, à medida que a natureza mostra a sua força em cada gotícula mais forte da chuva. Chão molhado e escorregadio; alguns buracos, chamados de valas-de-drenagem, desaguavam suas águas em longos caminhos; algures das estradas, supermercados, bancos, esquadra policial e a nova escola beira à estrada, que impedem passagem quer para táxis, quer para peões. Impõem-se, nesses momentos, os empurrões e insultos. A chuva, que só é chuva, passa a se afigurar como grande pandemia, faz perder o carácter, a ética e a educação do humilde homem bantu, transformando-o em um animal feroz.

– Avança o carro, cabrão! – um taxista ofendendo o outro.

-Cabrão é tó pai, senhor. – respondeu o rapaz.

No outro lado, por onde se desagua a chuva, e onde os passeios já não são passeios, porém lagoas Kavuquila, assemelham-se os comportamentos. Os disparates continuam:

– Tás a me pancar, merda!

– Mas, tio, só culpado? O tio nú tá vê que tá chové?

– Pede apenas desculpa, ó rapaz!

– Desculpa mazé! O tio já me ofendeu memo.

– Te educaram assim?

– Pergunta na chuva. – respondeu o rapaz, irritado.

– A chuva não é culpada. – disse o senhor.

– É sim. Sobe lá onde os Outros vivem. Ali, não se ofendem.

– Porque ali não chove. – retorquiu o mais velho, coincidentemente antigo combatente, pensando em como sua casa deveria estar naquele momento, com a chuva que lhe tirava o sossego.

As discussões fluem. Outras, às vezes mesmo, terminam em brigas. Tudo por causa da grande pandemia e das frustações que causa.

Chegou a noite. Céu escurecido. Lanternas dos telemóveis acesas para alumiar por onde pisar, possibilitando esquivar o lodo, lamas e lixos, que formam uma sopa de letras para quem não gosta de ler. As lanternas justificam a falta de energia eléctrica quando chove. Do contrário, aceita-se mortes por eletrocussão, fruto dos fios dos postos ligados à rascunho. Agora, já com a chuva cessada, as famílias olham-se e as questões, no meio do povo, não param. «onde vamos dormir?» « e as chapas, por onde voaram, meu Deus?».

Só foi preciso amanhecer para os alunos, na sua maioria, não irem à escola. Segunda-feira morta; professores estressados, embora uns alegres porque, pelo menos, não passariam por mais um dia de vergonha, ao leccionar disciplinas que não correspondem com suas áreas de formação. Lama em abundância. E mais: escolas inundadas e demolidas. Lixos a grosso modo. Basta olhar para a esquadra policial e para o famoso Instituto Técnico Médio Privado de Saúde 3AY, a então escola do FAS, onde os alunos, repletos com o dessabor do cheiro da lixeira ao lado, reclamam diariamente das condições precárias e do atentado à vida, embora alguns, como é o caso do Eurico, Doliana e Franciso, conseguem ainda me acenar para uma saudação à distância por já ter sido seus professor ali mesmo. Mas o lixo está no Instituto de Saúde e ponto final. Paradoxo! Não há sorte alguma para os que, de rotina, fazem compras naquele supermercado à beira estrada, a famosa Shoprite, pois, é rio quando chove; tampouco se chega à porta, lá onde os peixes nadam. Do outro lado, o presente que a chuva oferece aos Bancos Sol e Atlântico, é terra barrenta. Mais do que rio, é praia. É tristeza no rosto dos moradores que morrem à fome por lá terem guardado o já pouco do seu dinheiro, fruto da zunga e outros biscatos. No mesmo compasso, a pracinha que sustenta os moradores, estruturada de barracas Pau-a-Pique, onde no linguajar apaixonante do povo “destrocar” tem a mesma carga semântica que “trocar”, “dinheiro pegado” quer dizer “nota grande” e “prejuízo” significa “falência”, os paus são arrastados um a um por força da chuva, desperfilados em tons de desgosto da vida.

Não é tudo isso o mais agravante. É o José Lino Osvaldo ali, em sua casa, no sofá, saboreando a vida. Bastou abrir a janela para surpreender-se:

– Choveu? – interrogou-se admirado.

Estive eu, nessa altura, no teto da minha pequena casa, endireitando os blocos desafastados pela pretérita ventania da chuva, e é de lá onde tenho visibilidade de todo cenário.

Cada um tem o seu direito. Seu dever. Sua liberdade. Cada um deve saber a que está responsabilizado. Há quem esteja a respirar demais. Mas tudo depende de nós. Da nossa atitude. Da nossa decisão e união massiva. Afinal, a luta continua. – pensei eu.

 

GLOSSÁRIO…

Cacuaco > uma região; município de Luanda, Angola.

Zunga > da Língua Nacional Kimbundu “kuzunga”, que significa rodear, ou seja, uma prática, no contexto angolano, que nos remete a vendedor ambulante, o que rodea com mercadoria, de um ponto para o outro, gritando pelo(s) nome(s) do(s) produto(s) que vende.

Biscato > é o nome que se atribui a qualquer trabalho momentâneo. Trabalho não fixo cujo rendimento é em função do que o indivíduo faz, sem um preço estipulado.

Pau-a-pique > casa feito de pau, corda e/ou arames, para se refugiar.

Cabrão > é um termo grotesco, usado para ofender alguém.

> variável de “teu”, ocorrendo, portanto, a monotongação, natural nos falantes angolanos.

Tás > equivalente a “estás”, ocorrendo o metaplasmo, ou seja, o processo de supressão dos primeiros segmentos fonológicos, aférese.

Telemóvel > celular

             Orlando Ukuakukula

                Março de 2021