José Bembo Manuel: "'Paraíso Vergonhoso' gera poeta"

Jose Bembo Manuel

Paraíso Vergonhoso gera poeta

Desde a fase colonial, a escrita e a leitura sempre ficaram confinadas a um grupo restrito, associado à elite. A elitização ficou marcada tanto no acesso ao livro, quanto no acesso à escrita de textos literários. Entre nós, em Angola, provavelmente, porque o centro continuou a ser a oralidade.

“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”. Trata-se do primeiro verso de um dos belíssimos registos da lírica camoniana, cuja aplicação tem sido feita a variadíssimos contextos. Por exemplo, com o advento da paz, em 2004, aumenta a escolarização e com isso, as iniciativas de registar, através da escrita, vivências, utopias e distopias. Hoje, em novos tempos, a saída encontrada para derrubar o muro de uma violência toda ela simbólica são as edições independentes, as publicações virtuais e as editoras predadoras. Estas impulsionaram e muito as produções literárias no país, embora o sonho da escrita se reduza ao ter paka[1].

A ânsia por publicar deu asas a uma prática cada dia mais líquida se comparado aos ensinamentos de Zigmunt Bauman. Afinal, o que interessa é ser lido de alguma forma e por quem quer que seja. Quando a casa não está arrumada e o crivo, orientado por quem tem a kumbu[2] e pelos mixeiros[3], milagres acontecem. Porém, como nos lega Terry Eagleton, na obra Teoria da Literatura, caberá aos leitores a responsabilidade de expurgar os anjos dentre os demoniados dessa terra cujo nome foi legado por Ngola[4].

É nesse contexto que o poemário, intitulado Paraíso Vergonhoso marca, oficialmente, o nascimento de António Nzala Camalandua “Igor” na arte das palavras, no dia 18 de março de 2022, no Salão de festas Tia Fátima, no Kifangondo, periferia do município de Cacuaco, em Luanda.

O espaço, o desconhecido salão da Tia Fátima, símbolo de resistência às estratégias de dominação, na medida em que, segundo Tuan (1983:66), citado por Manuel (2021:206), é um recurso que produz riqueza e poder naquela região. Afinal, o espaço é, mundialmente, um símbolo de prestígio. Regra geral, os escritores, estreantes ou não, apresentam, ao mundo, seus rebentos em instituições de ensino, associações e organizações culturais de algum prestígio a fim de a legitimarem o mais novo escriba e a sua obra. O poemário Paraíso Vergonhoso faz o percurso inverso. Dá-se a conhecer ao mundo a partir da periferia por via dos marginalizados, que de forma direta ou indireta, certamente, levarão o mujimbo[5] ao centro, marcadamente elitista.

O título do poemário, de António Nzala Camalandua, num olhar mais atento, sugere-nos a descrição de uma Angola cuja vergonha emerge dos malefícios, das fraturas sociais e da ausência de equidade na distribuição das benesses do país. Estas razões tornam o Paraíso – Angola –  um espaço vergonhoso, onde se fomentam os malefícios “Larapiam-no ao tocar dos acalantos/ Paraíso dos peculatos/criador dos peculatos/ criador de negros/ brancos e mulatos” (Camalandua, 2022: 14).

O terceto que encerra o poema, que dá título ao poemário, é peremptório “Meu paraíso vergonhoso/ Óh! Paraíso Vergonhoso!/ Meu paraíso vergonhoso…” (Camalandua, 2022: 14). Nestes versos, depreende-se que Angola (o Paraíso) é um lugar indecoroso, porquanto confere insegurança e tem no leme pecadores e demónios. O outor opõe-se, por via da sua obra, ao conceito segundo o qual paraíso é um lugar de delícias, morada de anjos e bem-aventurados.

O poemário gira em torno de seis palavras-chave. O i) monstro, ora encapuzado de covid-19 “confinamente deixava de ser social/ A nossa calamidade era mortal/ cobrir o rosto era cartão de vida ou morte tiravam do povo a pouca sorte”. (Camalandua, 2022:27), ora pelo poder das instituições do Estado, como por exemplo a polícia, ii) a mulher descrita nas facetas de geradora e criadora além de núcleo da família, iii) a sobrevivência, receita diária da maioria dos anjos e demônios do Paraíso. Quando a sobreivência não é possível, iv) o fracasso e v) o Choro «(Angola) Terra doce/ de um povo bravo/ Mãe que hoje chora/ Para o bem dos seus filhos implora”. (Camalandua, 2022:26, nosso grifo) anunciam a Morte da vergonha no Paraíso.

A estreia de António Nzala Camalandua “Igor” é, de acordo com os ensinamentos de Aristóteles e Platão, do género lírico ou poético. Nele, não há um elaborado trabalho oficinal quer no tratamento estético, quer no trabalho linguístico, embora a variedade do Português de Angola tenha, no poemário, seu espaço. O autor, cujas origem estão ligadas ao grupo etnolinguístico mukongo, recupera referências do bantu tanto para homenagear seus entes queridos quanto para elevar os esforços de seus parentes.

Considerando a linguagem utilizada, o conteúdo e a extensão, podemos inserir o poemário no rol de obras infanto-juvenis.

Por fim, sugere-se o fim da robotização, ou seja, da militância partidária cega porquanto nada acrescenta senão ilusões. O poema A independência falhou insere-se no que Joaquim Martinho denomina Narrativa de Espera ao mesmo tempo que dialoga com Frantz Fanon, na sua obra Pele Negra, Máscaras Brancas. Senão, vejamos “A independência fez uns filhos de Deus/ Outros de satanás/ A independência não trouxe a PAZ”. (Camalandua, 2022:28). Fica, assim, evidente que os propósitos da independência não foram alcançados porque as divisões sociais existentes antes continuam em proporções vergonhosas.

[1] Dinheiro.

[2] Dinheiro.

[3] Intermediário.

[4] De Ngola Kiluanji.

[5] Recado ou informação.