Maria Dolores Tucunduva – ‘O Conceito de Justiça para Platão e Aristóteles’
Introdução
No início de “A Justiça dos Antigos” são apresentadas algumas partes do primeiro e segundo livro de “A República”, de Platão, e do capítulo V do livro “Ética a Nicômaco”, de Aristóteles. No texto de Platão, criam-se duas indagações, em que uma trata da definição do justo e da justiça e a outra questiona se devemos e por que devemos ser justos. A obra, na integra, é dedicada a estas respostas, já que consiste na construção do modelo da “ótima república”. A obra de Aristóteles propõe uma classificação dos diferentes tipos de justiça e as formas à que se aplicam. A distinção feita é a justiça como respeito à lei e a justiça como igualdade. A justiça na distribuição de honras e ônus, de renda e status, é diferente da justiça como aprovação jurídica nos casos em que estão em pauta o dano e a vantagem. Isso, naturalmente, não apenas tem a ver com as distinções entre justiça distributiva, reguladora e comutativa, mas também concerne à complexa relação entre a estrutura da justiça e a virtude ética a ela correspondente. Na ideia do filósofo, a pesquisa sobre justiça deve informar “qual justo meio constitui a justiça e de que extremos o justo é o meio”.
1. A natureza do problema e as questões fundamentais
O sentido de toda a construção do Estado ideal indica abertamente que a comunidade política deve estar assentada na justiça. Se é correto afirmar que a República tenta responder à questão das razões que movem os homens a viver em sociedade, é preciso reconhecer que essa, própria de uma teoria social, se responde somente por meio uma teoria da justiça. Na República, põe-se declarado que a justiça é o componente fundamental do Estado ideal. A justiça é expressão da capacidade do Estado e é ela que assegura que o Estado seja bom e deve ser exercida por cada cidadão, no exercício de suas funções e de acordo com suas capacidades: trabalhadores e artesãos, mulheres e crianças, guerreiros e guardiões, governantes, educadores, filósofos e artistas. Considerando inclusive que a ideia de justiça é a possibilidade da razão na ordem do político, onde as partes constituem uma pura totalidade organizada de acordo com o bem da sociedade.
Grande parte do capítulo é explicada pela utilização de diálogos, retirados da obra de Platão. Em determinada altura da conversa, encontramos os locutores discutindo a relação existente entre a consideração do valor moral da justiça, tema a ser digladiado dentro da história da composição do direito, eis que não se pode confundir justiça com direito, porém pressupõe-se que essa está inclusa neste.
Sócrates possui uma visão idealista da justiça ao discutir com Trasímaco a noção da existência de uma justiça ideal, límpida, sem nenhum vício e, posteriormente, iria declarar uma justiça corrompida por vícios de injustiça. Trasímaco, em contraposição a Sócrates, clamava que justiça é a representação prática da mesma, voltada a realidade, e como se aplicava a sociedade vigente na época.
Trasímaco aparentemente se demonstra conveniente às ideias de Sócrates, porém, após certo tempo, revela estar concordando com ele somente para poder dissipar a discussão. O texto nos leva a acreditar na ideia de uma falsa justiça, pois, em pratica, a sabedoria e virtude elevada por Sócrates em definir justiça, se mostraram ausentes.
Em um segundo momento, Sócrates começa a discutir o conceito de justiça com Gláucon. Este inicia o diálogo propondo a existência de três tipos de bens: o primeiro seria aquele desejado por si mesmo; o segundo, desejado por si mesmo e por suas consequências e o terceiro somente por suas consequências. Daí em diante, o texto consiste em propor sobre em qual tipo a justiça se encontra. Para Sócrates, a justiça está no segundo; para Gláucon, no terceiro.
O oponente de Sócrates cita a lenda de Gyges, um pastor que encontra um cadáver, portando um anel peculiar. Quando coloca o anel no próprio dedo, esse o torna invisível. Sem ninguém capaz de ver suas ações, Gyges passa a praticar várias condutas amorais – seduz a rainha, mata o rei e rouba o trono do seu reino. Sobre isso, Gláucon diz que os homens não desejam a justiça, só a buscam para não serem punidos pelas leis que regulam seus atos.
Sócrates propõe que a justiça deve ser procurada como um bem a ser desejado, como sendo o certo a se buscar, por si mesmo, pelo desejo de realizar o bem. Essa seria a conduta correta a ser seguida. Em seu ideal, diz que a justiça deve ser igualada à aquela exclamada pelos poetas e artistas, como um bem supremo e de infinita beleza.
2. Os modos e os objetivos da justiça
Em “A ética de Nicômaco”, Aristóteles propõe uma indagação a respeito do que realmente significa ser justo ou injusto, bem como discorre sobre os diversos sentidos destes dois opostos e os objetos utilizados para a execução da justiça. Para o autor, o conceito de injustiça materializa-se tanto na figura do transgressor da lei, quanto na daquele que, por qualquer meio, obtêm vantagem de forma ilícita ou mesmo imoral, agindo assim de forma iniqua. Evidentemente em contraponto, existe a figura daquele cidadão virtuoso, respeitador das leis e mantenedor de elevados ideais de moral e ética, visando por meio desta o bem comum e personificando o conceito de justo.
A justiça, portanto, demonstra-se como uma certa forma de virtude perfeita e completa, pois pode servir assim não somente para si próprio, mas também em relação ao outro, sendo assim um bem alheio, dizendo respeito a toda sociedade e não somente ao indivíduo. Aristóteles descreve, de certa forma poeticamente, sobre esta característica como: “a mais importante das virtudes; nem a estrela da noite, nem aquela da manhã são tão admiráveis”. Sendo assim um bem alheio, visto que a justiça é posta como uma forma de virtude, por outro lado a injustiça é um vício, não somente parcial, mas completo, pois, assim como seu oposto, afeta todo o ciclo de convivência do indivíduo que a comete, prejudicando o convívio harmonioso em sociedade.
A justiça é alcançada a partir do momento em que agir de maneira ética se torna um hábito comportamental do sujeito que a pleiteia. O autor defende que agir compactamente de maneira ética é a “receita” para criação de um indivíduo virtuoso – ou seja, justo. A justiça seria dividida em dois métodos principais: a justiça geral e a justiça particular, sendo que esta possui ramificações.
Aristóteles compreendia justiça geral como sendo a pura e simples observação do cumprimento da legislação, por possuírem como objetivo o adimplemento do bem comum e da felicidade geral. É curioso interpretar que o termo “legislação” não compreende apenas a lei positiva, mas também a lei não escrita. Esta seria amplamente priorizada em detrimento daquela, na sociedade grega onde o filósofo se encontrava.
Por justiça particular, o filósofo definia como sendo aquela age com objetivo de igualar as partes envolvidas, subdividindo-se entre justiça distributiva – a simples repartição de bens, segundo o mérito de cada indivíduo – e justiça correlativa. Neste caso, surge a necessidade de envolvimento de um terceiro, alheio às partes, que deve decidir sobre o que cada um tem ou não direito, onde a figura do juiz ditaria o que é justo.
Conclusão
Justiça, sob a ótica dos antigos, possui conceituações diversas da que usualmente se impõe, em tempos modernos, mas as raízes desse pensamento são facilmente avistadas, quando analisadas profundamente. Platão, propondo a ideia de que a justiça é a base de todas as virtudes humanas, não implica que apenas os filósofos (detentores do conhecimento) seriam justos; pelo contrário, seguindo o princípio de “dar a cada um aquilo que lhe é próprio”, utilizado como conceito central da organização de sua república, o autor especifica que uma sociedade justa é aquela onde seus componentes trabalham conforme sua aptidão. Seguindo esse ideal, a própria sociedade, com indivíduos justos, formaria um Estado justo, demonstrando esse viés antropológico que a justiça possui.
A visão aristotélica também apresenta esse elemento antropológico, no sentido de definir o que é justo. A questão de justiça, em “Ética de Nicômaco”, é abordada como uma virtude estritamente humana, não se prendendo em aspectos meramente legais e positivos. Dessa maneira, para Aristóteles, ser justo é uma disposição de caráter e o sentido de justiça não pode ser simplesmente definido em uma terminologia específica.
Referências
MAFFETONE, S.; VECA, S. A justiça dos antigos. In: MAFFETONE, S.; VECA, S. A ideia de justiça de Platão a Rawls. 1 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 7-93.