Ranielton Dario Colle: 'Assalto'

Rannie ColeRanielton Dario Colle – ‘ASSALTO’

 

Havia sangue por todo o lado, então ele só sabia que precisava sair de lá. E ele, Mateus, não lembrava como havia chegado àquele lugar, e não tinha tempo para pensar naquilo, pois um enorme medo tomava conta de seu espírito.

O vermelho era a cor predominante no ambiente, e parecia macular sua alma. Seus olhos ainda não haviam se adaptado à luz, e seus braços e pernas doíam bastante. Ele sentia uma certa tontura e náuseas, além dificuldades para respirar, como se tivesse levado uma paulada no baço.

Tocava em si mesmo procurando a origem do sangue, mas aparentemente não estava ferido apesar de toda sua roupa estar encharcada. Tentou se levantar, suas pernas fraquejaram um pouco, mas ele logo estava em pé.

A primeira coisa que viu foi o corpo de Ana caído no corredor a menos de um metro dele. E, ao vê-la, tombou em seus joelhos vomitando.  “Inferno!” – pensou –  “Que casa era aquela? O que aconteceu? Por que ele não conseguia se lembrar?” Ana era sua secretária, e estava morta! Ele começou a tremer e sua respiração estava ofegante, ele suava; queria gritar, mas não conseguia, estava paralisado pelo pânico. Então, ouviu um barulho, e Tiago surgiu enrolado numa toalha, como quem acaba de tomar banho:

– E ai cara? Já? Pelo visto você vai ser o próximo a tomar uma ducha! – disse seu amigo e sócio ao vê-lo vomitando. Depois, com um sorriso no rosto, completou: – Muito louco hoje, não? Que sorte que tivemos ao fechar esse contrato! Estávamos à beira da falência, agora estamos ricos!

Mateus queria lembrar de tudo, mas não conseguia: lembrava, sim, do contrato; lembrava que havia ido com seu sócio, e sua secretária, a um barzinho para celebrar. E lembrava que tinham conseguido um pouco de cocaína e decidiram terminar a noite em grande estilo na casa de Tiago.

Entretanto, fora isso, tudo era um mistério… Queria perguntar a Tiago o que havia acontecido, mas estava tomado pelo medo: E se ele tivesse feito aquilo? E se ele fosse um assassino? Ou o cumplicie de um? O horror o dominava! Todavia, precisava fingir normalidade:

– Nem fala. – disse tentando dissimular e descobrir mais sobre o que aconteceu – Mas, e agora cara? Como é que a gente vai fazer? Não podemos deixar o cadáver de Ana aqui no chão. Precisamos limpar essa bagunça… – sua voz era trêmula embora tentasse disfarçar o pânico.

– O quê? Que cadáver? Você enlouqueceu? Ei, Ana, ouviu essa? O que é que a gente vai fazer com o teu cadáver?

Nesse momento, Mateus olhou para o outro lado e viu Ana saindo da cozinha com uma garrafa de Moet Chandon em uma das mãos e três taças na outra. Ela sorria; ele olhou novamente para o corredor e piscou demoradamente os olhos: não havia cadáver nenhum lá!

A casa estava normal. Nada de tonalidades vermelhas ou de sangue no chão… Era como se estivesse sonhado tudo aquilo acordado. Estava feliz por isso.

Enrubesceu um pouco embaraçado por ela vê-lo ali, naquela situação deprimente, de joelhos ante seu próprio vômito. Mas logo pôs-se de pé e fez menção de ir pegar um pano para limpar aquilo. Só que Ana parecia não ter se importado e ele, Mateus, ficou entusiasmado com as expectativas para àquela noite quando ouviu Ana, ainda sorrindo, dizer:

– Bem, eu gostaria que vocês não fizessem nada com o meu cadáver quando eu morresse, é meio nojento sabe… Tudo que formos fazer juntos eu prefiro que seja feito comigo viva. E essa noite é um bom momento para começarmos… vamos nos divertir… – disse ela, lançando um olhar insinuante e malicioso para os dois.

Era só isso… Os três estavam ali, na casa que do Tiago, comemorando. Ele deve ter alucinado: “Preciso procurar um psiquiatra urgente” – pensou. Mas não havia motivos para pânico naquele momento: “Aquilo nunca havia acontecido antes, mas sempre tem uma primeira vez, e espero que seja a última…”. Não obstante, já estava mais tranquilo: “Melhor ter tido um delírio passageiro do que ter matado alguém.”

Então ele ouviu o barulho de uma porta se abrindo e de vozes se aproximando, como se mais alguém estivesse entrando na casa. Ficou um pouco tonto novamente, quase caiu e fechou os olhos…

 

*          *          *

 

Depois de muito bater e chamar, eles finalmente entraram. Não tiveram dificuldades pois a porta não estava trancada. “Meu Deus!” – disse um dos policiais ao ver aquela cena: havia três cadáveres na casa, muito sangue, e um odor insuportável de podridão…

Os vizinhos haviam chamado a eles devido ao cheiro nauseabundo de carniça que se alastrava à distância…

Os copos quebrados no chão e a garrafa de champanhe aberta em cima do balcão denunciavam que as vítimas provavelmente celebravam algo quando foram interrompidos por assaltantes.

Dois homens e uma mulher… o policial pensou que poderia ser um encontro sexual. E, pelo fedor dos corpos em decomposição, deduziu que já deviam estar a dias ali. Todavia era melhor não especular e deixar que a perícia viesse e dissesse o que tinha acontecido.

Não havia sinal violência entre eles…

 

*          *          *

 

Quando Mateus abriu os olhos viu, de novo, os corpos no chão e o sangue. Tiago agora aparecia caído, morto, ao lado de Ana. Estaria enlouquecendo? Ficou aterrorizado, porém, quando viu que o seu corpo também estava ali, sem vida, junto aos outros dois…

 

*          *          *

 

“Um brinde!” – disse Ana, enquanto os três batiam as taças…




Ranielton Dario Colle: artigo (d)Eficiência humana

Rannie ColeRanielton Dario Colle – (d)Eficiência humana

(d)Eficiência Humana

Havia algo de estranho naquele dia. Eu tinha acordado com a sensação de que nada estava no lugar. O tempo nublado deixava as cores mais vívidas, sem aquela sensação de imagem supersaturada que o sol normalmente deixa nas coisas.

Eu tinha um compromisso importante no trabalho. Finalmente tinha chegado ao algoritmo ideal que iria matematicamente mudar todo o rumo da empresa. O software que eu desenvolvera facilitaria em muito nossas atividades. Em questão de minutos, ele faria o equivalente ao trabalho de dez pessoas, usando uma porção de outros programas, em um dia. A partir do que eu fizera, tudo aquilo ficaria obsoleto. Além do que, com tudo centralizado, menos pessoas, menos chances de erro. E naquela tarde eu o apresentaria. Havia toda uma equipe que me ajudara nos detalhes, mas o grosso do trabalho eu fizera sozinho. Não podemos confiar nas pessoas, elas são falhas.

Essa era uma verdade indiscutível: as pessoas são falhas, e geralmente sua intromissão nos induz ao erro. As máquinas não erram e, se dermos a manutenção correta, fazem exatamente aquilo para que foram feitas, com uma perfeição muito maior que a humana. E o melhor de tudo: com mais eficiência e sem reclamação. Por isso eu gostava de trabalhar com números e máquinas. E abominava lidar com pessoas que, além de errarem com frequência, dificilmente conseguem manter o foco de forma eficiente.

Porém, aquele dia, uma espécie de intuição que algo estava errado me incomodava. Tomei o café, e impulsionado pela beleza diferente das cores sob o filtro das nuvens, e pelo frescor daquela manhã, decidi ir caminhando até o trabalho…

Andando lentamente, de modo diverso do que eu me habituara, fui observando as árvores que no caminho se apresentavam. E, por um momento, fiquei como que hipnotizado, em frente a um Ipê Amarelo e florido. Ali estava o segredo de tudo. A chave do universo. A Proporção Áurea e a Sequência de Fibonacci, a prova de que Deus era um arquiteto.

Tudo era perfeito nas flores, embora os galhos parecessem crescer sem um padrão, seguindo apenas a luz do sol e as podas, eu sabia que era apenas na aparência. A Proporção Divina estava em tudo, ou em quase tudo.

Essa perfeição, essa beleza, não estava no comportamento das pessoas, e essa era a maior tragédia do universo… o erro de Deus. Visto dessa forma, talvez o melhor mesmo fosse que as pessoas não existissem, e talvez nem os animais, com exceção dos insetos, como as abelhas ou os aracnídeos, como as aranhas, que seguem com perfeição matemática suas obras. Os animais, em sua grande maioria, apesar da perfeição em sua formação biológica, são o caos na forma de vida. E, por isso, estamos destruindo o planeta.

Depois de um tempo, continuei minha caminhada…

O ano estava acabando, e eu estava cansado. Depois de minha apresentação do projeto teríamos dez pessoas a menos trabalhando na empresa. A eficiência de um negócio é inversamente proporcional ao número de pessoas que trabalham nele. E isso era a prova definitiva de que gente só atrapalha o desenvolvimento de tudo.

Ninguém gostava de mim onde eu trabalhava… E eu não gostava de ninguém! Era como a repetição do colégio ou de casa, quando ainda vivia com meus pais. Por isso estava feliz por ter conseguido reduzir o número de animosidades em dez.

Todavia, a verdade, é que nada daquilo fazia sentido. Afinal, qual era o propósito de nossa empresa? Fazer dinheiro proporcionando algo que as pessoas desejam, como toda empresa. Em outras palavras, satisfazer as pessoas. Esses mesmos seres ineficientes, caóticos e egoístas. “Não… Eu não quero isso.” ─ pensei. Mas precisava viver…

E foi nesse instante que tropecei em uma pedra, e quase cai um tombo. Vi minha falha no tropeço, e as fórmulas matemáticas que descreviam minha trajetória no tombo, evitadas pelos movimentos de meus braços que, seguindo intuitivamente um padrão, evitaram minha queda. E então eu fui iluminado: não, eu não precisava viver…  Ninguém precisa viver! Apenas vivemos sem nenhuma razão…

Foi quando decidi dar um ponto final. Fiz meia volta e, chegando em casa, tomado de ódio por toda humanidade, decidi acabar com tudo e com todos.

– Tudo bem. De tudo que você disse, eu compreendo que você se tornou um misantropo radical. Mas agora temos que descobrir as raízes de sua misantropia…

– Mas eu já falei. A feiura sem propósito da humanidade – protestei. – Você precisa me dar alta. Eu quero ir embora.

– Desculpa, mas eu não posso fazer isso. Você tentou se matar cortando os pulsos, e tomando três frascos de benzodiazepínicos. Se não tivessem, por acaso, visto sangue saindo por debaixo da porta de seu apartamento você estaria morto agora.

– Foi por isso que tomei três frascos de comprimidos! É muito mais fácil, seguindo a lógica, me livrar de toda humanidade morrendo, do que matar todo mundo!

– Mas você estaria morto! Por que você quer se livrar da humanidade?

– Porque a humanidade é extremamente falha! Eu sou falho! Eu não queria estar vivo!

– Mas, por que você queria morrer?

– Porque eu sou falho! E porque é mais fácil morrer do que me livrar de todo mundo! Eu já disse!

– Vamos com calma…

*          *          *

A proporção áurea, 1,618… pode ser encontrada no crescimento de praticamente tudo, nela se encontra a ordem da natureza. E está presente também no homem no tamanho das falanges dos ossos, por exemplo. E foi considerada ideal, tendo sido usada por Phideas, na antiguidade para conceber o Parthenon, por artistas renascentistas e até em várias obras de música clássica ou mesmo  em importantes obras literárias no chamado ritmo prosódico.

A sequência de Fibonacci está na disposição dos galhos das árvores, das folhas em uma haste, no arranjo das pétalas das flores, no cone do abacaxi ou mesmo no desenrolar de uma samambaia. E é incrível sua aplicação no mercado financeiro, na teoria dos jogos e nas ciências da computação…

*          *          *

Seis meses depois daquele dia, eu tive alta, e fui liberado do hospital psiquiátrico onde estava internado. Continuo sem entender a razão de tudo. A vida ainda parece sem sentido e sem explicação. Porém já consigo ver e aceitar meus tropeços. E já consigo lidar com as falhas humanas. E, embora a perfeição matemática confira beleza a quase tudo, creio que talvez a mágica e o fantástico da vida esteja mesmo no caos de como tecemos o seu enredo. Digamos assim, os parágrafos podem até seguir o ritmo prosódico (ou não), mas a história em si é regida pelo caos!