Rannie Colle: conto 'A Musa'

Ranielton Colle: ‘A MUSA’

 

Depois de termos feito um pacto de amor, de andarmos juntos por anos e mais anos, ela finalmente foi embora. E eu não sabia mais o que fazer. A musa me abandonara no vazio da criatividade morta. E eu não conseguia escrever mais nem mesmo um mísero poema. E os romances? E os contos? Eles simplesmente desapareceram de minha imaginação como se eu nunca tivesse conseguido criar nada, nem mesmo em sonhos…

Tentei rituais religiosos sagrados, e mesmo satânicos, para invocá-la de volta para mim. Mas toda a vez que eu conseguia vislumbrar sua imagem, ela era apenas um vulto distante que se afastava ainda mais. E a sua voz? Sua voz doce e sensual sussurrava em meu ouvido: “Ah querido, nosso tempo acabou. Você não soube… não cultivou o nosso amor… procure outra.” E eu entrei em verdadeiro desespero porque não sabia fazer mais nada na vida. Eu havia me acostumado, me viciado, a me aproveitar dela e usar da doce inspiração que ela me dava; tinha então quarenta anos de idade… muito velho para iniciar qualquer carreira no mercado de trabalho, e muito novo para não fazer mais nada da vida…

Já vislumbrava minha morte, esquecido em algum banco de praça, ébrio com a cachaça comprada com os trocados conseguidos as custas da piedade alheia.

Então, em desespero, eu sentava à frente do computador e travava uma batalha silenciosa com o editor de texto… dois, três parágrafos, uma folha e, de repente, eu não sabia como continuar e apagava tudo. Era impossível. Sem ela, sem Calíope, meus dias estavam contados. E meu futuro era miserável, solitário e triste.

Foi quando eu tive a ideia: eu a invocaria, imploraria para que ela viesse. E quando ela chegasse, eu a aprisionaria. Era triste ter que fazer isso, seria muito melhor se ela estivesse comigo por vontade própria. Mas ela era imortal… E o que eram alguns míseros anos de prisão para ela, era para mim o alívio, e a minha vida de volta: O pagamento garantido das contas, festas, amigos e um futuro…

 

– Por favor moço, me solta

– Não posso… mas não se preocupe, logo ela a possuir,á e você não sentirá nada

– Por favor, moço, eu quero minha mãe…

 

O ritual precisava de uma adolescente, ou uma criança, para que ela entrasse em seu corpo e eu pudesse aprisioná-la lá… não era fácil. Mas era preciso. Quando a noite caiu, a garota estava amarrada na cadeira, no centro do círculo que eu havia desenhado no chão com o meu próprio sangue. Os pulsos dela já estavam cortados esvaiam seu sangue em um balde. E eu já tinha invocado Calíope… Era só uma questão de tempo. As tentativas anteriores haviam fracassado, a menina morria sempre antes de Calíope possuí-la… mas desta vez eu estava com fé de que daria certo. Havia sido mais cuidadoso na preparação de tudo, e nos detalhes.

Quando ela apareceu, olhou para mim com a tristeza de uma mãe que olha para um filho que estava condenado:

– Por que você fez isso? Será que você não entende? Elas eram só crianças, adolescentes…

– Você me abandonou! A culpa é sua! Eu estava desesperado!

– Tu és tão egoísta que não consegues entender não é? Tu não és o único ser vivo com sentimentos no mundo… – saiam lágrimas de seus olhos enquanto ela me dizia essas palavras. Porém eu estava feliz porque ela teria que me inspirar novamente. Ela não tinha escolha.

– A morte dessas garotas não foi em vão. Com a inspiração que você me der poderei escrever textos edificantes para a humanidade inteira.

– Seu porco hipócrita! O mundo está cheio de falsos profetas, e você só quer ser mais um! Você me dá nojo!

– Eu não me importo com seu nojo – eu disse tentando me convencer disso – eu tenho ai, no máximo mais uns sessenta anos de vida se eu chegar aos cem. Isso para você não é nada. Mas para mim é uma vida inteira…  De qualquer forma, duvido que você queira passar esse tempo todo presa nesse corpo e acorrentada em um porão. Está disposta a fazer um acordo comigo?

– Nunca! – ela gritou e cuspiu na minha cara.

Foi uma semana… no começo eu ainda sofria um pouco por causa das meninas. Mas a cada dia que passava eu estava mais convencido de que elas haviam sido sacrificadas em prol de um bem maior. Eu precisava que Calíope assinasse o acordo! Uma vez feito isso ela não poderia, pela tradição, voltar atrás. E eu teria novamente a minha imaginação, que havia conquistado leitores de todo o mundo.

Um mês depois, ela finalmente cedeu:

– Tudo bem – ela disse – Traga um papel e uma caneta tinteiro.

Eu os levei. Ela escreveu que eu teria inspiração para escrever por todos os dias de minha vida até os cem anos de idade. Que eu não poderia ser assassinado antes, que minha morte antes só poderia acontecer por um acidente ou de causa naturais. Escreveu também que nunca me faltaria ideias, que meus textos seriam reconhecidos. E que tudo isso teria início imediato logo após ela ser libertada daquele corpo. Eu li o contrato, era tudo o que eu queria, fiquei radiante. E concordei com o mesmo. Então fiz um pequeno corte em seu dedo, ela molhou a caneta no sangue, e assinou. Logo em seguida limpei o chão apagando o círculo e pronunciei as palavras que a libertariam. A menina voltou a si e começou a chorar. A libertei e abandonei o galpão que havia alugado.

 

– Você está dizendo que matou garotas em um ritual satânico é isso?

– Não! Você não prestou atenção na história? Eu sequestrei e matei nove, mas porque estava tentando invocar e aprisionar Calíope! Na décima deu certo! Não é um ritual satânico…

– Está certo. Você tem alguma foto dessas mocinhas?

– Não, mas você pode procurar nas pessoas desaparecidas… se você quiser eu levo você até os corpos!

– Tudo bem, tudo bem… Mas me responde uma coisa: Se tudo deu certo, você conseguiu o que queria, porque você está se entregando?

– Policial… está vendo estas caixas cheias de encadernações? Tudo isso eu escrevi em menos de um mês. Eu estou enlouquecendo! Não consigo parar de escrever. E cada vez que eu escrevo, eu escrevo a história dessas menininhas! Na visão delas, na de seu pai, na de sua mãe, na de seus irmãos, na de suas amigas… de cada uma delas! É um inferno porque toda vez eu escrevo, eu sinto o sofrimento deles! E eu não consigo parar nem mesmo para dormir direito! Se eu fico mais de quatro horas sem escrever minha cabeça começa a doer de tanta coisa que passa por ela. É uma tortura… Eu já tentei me matar de várias formas, mas eu simplesmente não morro. O contrato dizia até os cem anos de idade… eu não suporto mais isso. Pena de morte, eu quero a pena de morte! Elas não mereciam o que eu fiz. Seus pais não mereciam, seus irmãos, suas amigas não mereciam… eu sou um monstro. Eu preciso morrer. Você precisa me prender, por favor, por favor, por favor eu imploro

 

O policial olhou para aquelas enormes caixas cheias de encadernações e não sabia dizer se estava diante de um louco inofensivo ou de um perigoso assassino. Ele se identificava como Sr. X, um famoso autor de Best-sellers. A identidade conferia e o rosto também. Então o policial ficou com pena dele. Ele estava deplorável. E enquanto ele olhava aquelas caixas e tinha aqueles pensamentos, o homem a sua frente escrevia freneticamente em um bloco com uma caneta…

Ele foi conduzido a uma cela temporária enquanto o departamento de polícia investigava sua história maluca. No entanto, nenhum corpo foi encontrado onde ele disse que estariam.

Uma adolescente, no entanto, realmente havia desaparecido por um mês e reportado que fora sequestrada há algum tempo. Esta, quando chamada, o identificou. Todavia não havia nenhuma marca de violência nela. Nenhuma cicatriz ou corte em seu pulso como ele havia descrito. Ele certamente ficaria preso por um bom tempo. Mas não pegaria pena de morte como desejava.




Rennie Colle: conto 'O milagre'

Rannywell D. Colle: conto ‘O Milagre’

 

O céu escureceu de repente. A profecia! Lembrei. Estamos nos últimos minutos. Os raios se sucediam um após o outro, e o espetáculo de luzes era seguido por trovões assustadores. Então a água desabou. Forte e violenta, ela batia com suas grossas gotas contra o chão.

Eu observava tudo da varanda. Era um espetáculo. Então recordei-me de que era hora dos remédios de Mirna, e fui a seu quarto.

Ela jazia deitada há tanto que eu nem mesmo me lembrava da última vez que havíamos sido felizes juntos. Agora, a felicidade para mim era vê-la se alimentar direito, quando ela conseguia comer, e o esboço de um sorriso de agradecimento seu pela comida estar boa; e a dela talvez fosse simplesmente não sentir dor. Isso, e as lembranças, quando sua memória voltava; lembranças que me faziam chorar. Havíamos sido verdadeiramente felizes…

Eu entrei no quarto e para minha surpresa ela estava em pé, havia se trocado e se maquiado. Parecia tão jovem quanto anos antes e transmitia uma alegria que eu não via em sua face desde que a doença a roubara de seu rosto. Ela olhou para mim radiante; depois veio a meu encontro e disse:

– Oi amor! – dando um beijo em meus lábios como se simplesmente tivesse acordado de uma boa noite de sono: – Você tem feito tanto por mim. Obrigada.

Então eu não consegui me segurar mais, e comecei a chorar. Era um milagre que eu via ali. Ela estava curada. Bem. Em pé à minha frente. E vendo minhas lágrimas ela me abraçou com carinho e compreensão como se entendesse minha carência e estivesse ali para me curar de minha solidão…

A profecia, os raios, a chuva, tudo perdeu a importância! Se fosse preciso o fim dos tempos para que ela estivesse curada eu estava feliz com isso. Então, tentando disfarçar um pouco minha emoção eu a respondi:

– Eu, eu não fiz mais do que a minha obrigação…

– Não, você fez mais, bem mais, e você sabe disso: obrigada pela paciência, pelo carinho, pelo amor e pela dedicação… você tem sido um excelente esposo!

– Não diga isso, por favor, você me fará chorar ainda mais…

Então ela ficou quieta. E abraçada a mim também chorou um pouco. Em seguida, ela foi até a janela, observou a chuva torrencial e disse:

– Sabe o que eu acho? Eu acho que quando essa chuva passar nós deveríamos sair. Dar uma volta sabe? Ver um filme, comer pipoca! Deus! A quanto tempo eu não como pipoca? Andar no Shopping, ver vitrines, comer fora, ir ao supermercado… eu queria tanto um chocolate agora!

Ouvindo ela falar com aquela jovialidade e segurança, ver aquela vivacidade nela fizeram que eu me tornasse uma torrente de lágrimas. Era um milagre! Eu estava sendo abençoado com um milagre! Quando eu já não esperava mais nada da vida, eu a ganhei de volta.

E se tudo aquilo fosse um sonho eu não queria mais acordar. Minhas preces foram atendidas, e eu estava grato. Fomos até a cozinha, eu ia fazer um café para sentarmos e conversarmos quando ela me interrompeu:

– Sentá lá – ela me disse – deixa que eu faço o café, é o mínimo depois de tudo que você tem feito por mim por todos esses anos, você merece.

Fui sentar-me à mesa ainda sem acreditar direito no que estava acontecendo, tentando conter meu pranto, enquanto ela fazia café. Depois de mais de sete anos sem esperanças, eu me sentia como se estivesse no céu. Então lembrei novamente da tempestade. E da profecia. E dessa vez fiquei apreensivo.

Mirna queria muito sair, ver as pessoas, sentir a vida novamente. Ela me encheu de perguntas de nosso filho: como ele estava? Tinha casado? Era feliz? Disse que queria vê-lo e abraçá-lo também; que sentia muito por estar ausente por tanto tempo… E eu tive que contê-la, explicar a ela que ele morava longe, em outra cidade, à mais de trezentos quilômetros de distância, mas que nos falávamos semanalmente pelo telefone e nos víamos ao menos uma vez por mês. E que ele estava feliz, e tinha uma namorada.

Pensei em ligar para ele e contar a novidade, porém o celular estava sem sinal e depois acabei esquecendo… e a tempestade, e a escuridão, duraram ainda por três dias e três noites; e por todo esse tempo a minha felicidade que a princípio fora completa, era prejudicada por uma apreensão: a profecia. Não era justo, eu pensava, que finalmente eu estivesse novamente com o meu amor comigo, lucido e alegre, apenas para testemunhar o apocalipse…

 

*          *          *

 

Quando Tiago ligou para seu pai, este não atendeu e não retornou a ligação. Agora, ele ligava e caia direto na caixa postal. Ele estava aflito. Insistira tanto para que ele e sua mãe fossem morar com ele. Argumentou tanto. Mas seu pai era teimoso. Não queria deixar sua casa e sua cidade. Argumentara que tinha sua vida ali. Seus amigos. E Tiago sabia que ele estava certo, por isso concordou. Não obstante não conseguia deixar de pensar que poderia ter insistido mais. Esperou mais um dia, mas quando a ligação caiu novamente na caixa postal, concluiu que já havia esperado demais. Avisou no seu trabalho que precisava de uma licença e viajou aflito para sua cidade natal …

*          *          *

 

Ao final desses três dias, porém, o sol brilhou novamente. E Mirna estava louca para sair. Eu, no entanto, fiquei praticamente paranoico, tinha medo: medo de que lhe acontecesse alguma coisa quando estivéssemos fora; medo de que ela se sentisse perdida com todas as mudanças que o mundo tivera nesses últimos sete anos; enfim, eu tinha medo de perdê-la novamente… não obstante eu não conseguiria, e não queria mesmo, segurar sua sede de vida porque era injusto. Ela merecia viver um pouco depois de todos esses anos. E eu também. Por isso domei meu medo e saímos.

Fomos a praça, comemos pipoca; alimentamos os pombos enquanto eu lhe contava tudo que tinha acontecido na nossa família e no mundo: contei como foi formatura de Tiago, como era o seu trabalho; falei da minha aposentadoria, e de quem era o presidente do Brasil agora, as novas descobertas científicas que estavam revolucionando a medicina: que estávamos mais perto da cura do câncer e da AIDS; falei da guerra na Síria, dos refugiados, etc

Depois disso vimos as vitrines das lojas, e rimos um pouco da desconcertante moda atual. Comemos fora. Fomos ao Shopping e ao cinema; fomos ao supermercado e compramos chocolates, muitos e muitos chocolates… E quando voltamos para casa fizemos amor, adormecendo abraçados…

No dia seguinte, ela me trouxe café na cama. E eu não conseguia conter meu sorriso. Estava vivendo novamente os melhores dias de minha vida…

Depois do café, todavia, ela me disse que a gente tinha que sair, que ela queria me apresentar algumas pessoas da sua família que haviam lhe ajudado bastante…

Fiquei assustado e triste, achei que ela tinha enlouquecido. E já via todo o meu mundo desabando novamente com mais dias de aflição e tristeza. Percebendo o meu olhar angustiado, Mirna então me olhou nos olhos com ternura e disse:

– Não fique assim meu amor, eu estou bem, e estamos juntos agora! Escuta querido: eu só voltei para te buscar, nós estamos juntos e vamos ser felizes novamente, não se preocupe meu amor…

 

*          *          *

 

No carro, apreensivo, Tiago não conseguia parar de pensar nos dois: não eram tão velhos, seu pai estava com sessenta anos agora, e sua mãe era um pouco mais nova. No entanto, a doença de sua mãe exigia muito de seu pai, e o envelhecera bastante. Não havia cura e era degradante. Ele não entendia porque seu pai não a colocara num hospital onde ela teria sido cuidada por enfermeiros e médicos competentes. Mas, mais que isso, não se conformava por ter deixado os dois naquelas condições, e ido morar tão longe. Seu trabalho exigia, mas trabalho não é tudo. E assim, com esses pensamentos foi por toda a viajem até a casa de seus pais.

Em frente a casa estremeceu: fachada da casa o trazia recordações… ele crescera ali, naquela rua. Tocou repetidas vezes a campainha, e ninguém atendeu. Chamou. Nada. Então, apreensivo, pegou sua cópia da chave e entrou. Estava uma pilha de nervos quando foi até o quarto e parou à porta.

Ali estava seu pai e sua mãe, deitados abraçados e seminus. O quarto transbordava a aura de uma alegria sobrenatural. Seu pai sorria e sua mãe, aconchegada com a cabeça em seu peito, trazia também um sorriso em sua face.

Várias barras e embalagens de chocolate abertas jaziam no chão ao lado da cama…

Aquela cena o emudecera. Eles estavam mortos. Entretanto a expressão estampada em seus rostos irradiava uma serenidade que era reconfortante. Com lágrimas nos olhos, mas estranhamente aliviado e feliz por vê-los daquele jeito, Tiago ligou para uma agência funerária.




Rannie Colle: conto 'Empatia'

Rannie Colle: conto ‘Empatia’

 

Eu a conhecia como a palma de minha mão, nesses quinze anos de casados eu era, não apenas seu amante, mas também o seu melhor amigo e confidente; Suas histórias eram minhas histórias: ou por tê-las vivido junto a ela, ou por eu tê-las escutado tantas e tantas vezes que elas já faziam parte de mim… e, por isso, tudo era tão duro.

– Vamos? – disse Milli empolgada como uma criança que vai ao parque com uma excitação e ansiedade que eu não conseguia entender.

Eu estava deitado no quarto, distraído olhando para o guarda-roupas e para as paredes trincadas com a tinta já descascando e clamando por uma nova pintura: eu havia concordado em ir, só que queria adiar ao máximo a partida… e tentava não pensar nisso… todos os nossos sonhos e nossos triunfantes planos, tudo tinha um começo naquele triste passado que tentávamos esquecer, e tudo tivera sua origem lá, naquela cidade para onde estávamos indo…

 

– Vamos? Você não consegue me alcançar?…

– Claro que consigo…

Corríamos na beira mar, jovens e presunçosos, com todo um futuro pela frente… Otimista, eu olhava para sua pele morena e seu sorriso encantador enquanto ela me desafiava. E claro, corremos: sempre corríamos na beira-mar pela manhã, e não eram raras essas disputas; depois nos empurrávamos com o perdedor acusando o outro de trapacear, e frequentemente rolávamos na areia indo terminar tudo em um relaxante banho de mar.

 

Eu tinha que responder alguma coisa, então sabendo que era inútil ficar adiando eternamente o inevitável, eu disse:

– Vamos! – E, por um instante, vi em seu sorriso a alegria radiante de tantos anos atrás. Como poderia o tempo ter feito tamanho estrago em nós?

O suor escorria de minha testa enquanto eu ainda a observava: ela ainda era linda, os cachos negros de seus cabelos, e seus olhos castanhos, sua pele escura e seus dentes impossivelmente brancos, e belos, continuavam a mexer comigo mesmo depois de tantos anos.

Eu sabia que havia concordado por impulso, por estar seduzido, por querer ver aquele brilho de felicidade novamente em seus olhos. E, não obstante, já estava arrependido. Entretanto eu não podia, e nem sei ao certo se queria mesmo voltar atrás.

Foi nesse contexto que, decidido a ir adiante, perguntei:

– Você já arrumou as malas?

– Já… você está pronto?

– Estou, não há nada que eu precise agora, desta vez estarei preparado para qualquer eventualidade. O carro está revisado, e o tanque está cheio. Vamos tomar um café e vamos então, há muita estrada pela frente…

– E o que o meu amor vai querer para o café?

E ela preparou um delicioso café com torradas para mim, como há anos já não fazia. Seu gesto me arrancou algumas lágrimas de felicidade e despertou entre nós um romantismo já há muito esquecido.

Isso nos fez adiar a viajem para após o almoço…

E foi assim que pegamos a estrada de volta para aquela praia, aquela antiga praia no sul em que eu passei as férias uma vez, e onde ela nasceu e nos conhecemos: onde fomos felizes por algum tempo, mas também onde ela foi definitivamente marcada e humilhada.

Teria ela esquecido de tudo? Os anos teriam simplesmente apagado ou atenuado aquela dor? Ou a tornado mais suportável? As lembranças se avolumavam: boas e ruins se sobrepunham umas as outras:

 

– Olha só, o casalzinho está se divertindo na praia – disse um dos seis caras que nos cercaram enquanto trocávamos um beijo depois de termos caído na areia.

– É, o guri tem fogo! – disse o outro – esses negros acham que podem fazer de tudo! Eles invadem nossa praia, tiram o nosso sossego, nossos empregos, e só falta expulsarem a gente daqui com seu comportamento indecente! O que mais vocês vão fazer agora? – disse ele olhando para mim – Vão fazer sexo na areia? Vão nos espantar com nossas famílias? Assustar nossas crianças? Quando é que vocês vão aprender a serem civilizados e parar com esse seu comportamento asqueroso e imoral?

Pego desprevenido, e espantado com aquela agressividade ante uma simples demonstração de afeto, eu tentei responder:

– Não cara, relaxa, não é nada disso… a gente só tava trocando uns beijos… a gente sempre faz isso… – era inútil, no entanto, porque ódio já estava estampado em seu olhar. Ainda assim tentei tranquilizá-lo: – tudo bem, olha, já estamos indo embo.…

Eu nunca cheguei a completar a frase pois, naquele instante, levei um chute na boca. Depois, três deles me arrastaram para longe dela e me seguraram enquanto se revezavam a estuprando.

Aquele dia, há quase vinte anos, terminou comigo espancado e desmaiado na areia, e com ela cheia de hematomas, vomitando e chorando na praia deserta…

 

Mais tarde, quando vencendo o medo fomos até a delegacia para prestar depoimento, ela reconheceu dois dos policiais que faziam parte dos agressores. Não havia nada a fazer ali. Foi quando, do fundo de minha alma, jurei silenciosamente que me vingaria.

E juntos decidimos de forma sensata que nos mudaríamos para bem longe…

Jamais comentei com Milli o desejo de vingança suscitado naquele momento de ódio, mesmo porque, o passar dos anos o tornou desnecessário e insensato.

Seriam vinte anos tempo suficiente para perdoar e esquecer? – eu pensava comigo mesmo e mais: – Era possível perdoar sem que houvesse sido feita a justiça? Sem que quem perpetrou o mal estivesse arrependido? Sem nunca ter havido qualquer tipo de reparação pelo dano cometido?

Esse tipo pensamento desciam queimando com o café que tomávamos no final da tarde em uma lanchonete, e envenenavam a minha alma me atormentando mesmo muito tempo depois, quando já estávamos de volta à estrada:

 

– Você tem certeza Milli? Tem certeza que quer voltar para lá?

– Tenho, lá é a minha terra, é onde eu nasci e cresci, e é também onde nos conhecemos… e fomos felizes juntos por um tempo…

– Sim, sim, eu sei meu amor… mas…

– Não fica assim vai, por favor querido… eu sei o que você deve estar pensando…  Eu entendo o seu receio…

– É que…

– Olha, escuta: Eles estão bem velhos agora, devem estar até aposentados, se é que estão vivos… e nós estamos mais fortes, e depois, a gente não pode deixar que um acontecimento infeliz destrua tantas outras lembranças felizes que temos, pode?

– Não…

Milli não compreendia minha aflição. Não era isso o que eu temia. Na verdade pouco me importava com eles. Porém estava preocupado com ela: com as recordações que poderiam advir do local e o seu possível impacto em nossas vidas. E, quando ela percebeu que minha expressão continuava taciturna, ela emendou:

– São só as férias amor…  A cidade deve ter crescido, é praia, devem ter muitos turistas agora, deve ser praticamente impossível se encontrar sozinho na beira mar como antigamente… e eles não podem mais nos fazer nenhum mal…

– Eu sei, eu sei Milli… mas é que… Tudo bem Milli, você tem razão… mas eu não consigo…

– Bem, só me promete que vai ficar tranquilo? Por mim vai, meu amor? Eu preciso muito rever a minha família…

– Está certo…

Meus medos pareciam ter se provado vãos. Até uma noite, na segunda semana de nossa estadia, quando fomos a um barzinho, eu os reconheci.

Eles realmente estavam decadentes, e confesso que não os teria reconhecido se não fossem pelas suas tatuagens; o tempo infelizmente não havia os separado como faz tantas vezes com bons amigos. Eles bebiam e gargalhavam alto, como verdadeiros bufões, quando um deles nos viu.

Tenho certeza de que não nos reconheceram, pois éramos muito jovens na época, eles mal haviam me visto uma vez, e as feições de Milli mudaram muito nesse meio tempo. Infelizmente, no entanto, algumas coisas não mudam:

 

– Ei! – um deles gritou – Ei, negro sujo!

Sem poder acreditar no que eu estava ouvindo, os encarei com um sorriso irônico. A indignação só veio quando um garçom foi até nossa mesa, nos pediu desculpas, mas disse que seria melhor para todos que nós saíssemos.

Fiquei atônito: era um menino escuro, de feições latinas, e estava defendendo os racistas…

– Isso é contra a lei sabia? – eu lhe disse, e ele me respondeu envergonhado:

– Eu sei senhor, por favor me desculpe, eu sei que eles estão errados (eles são uns porcos), mas são antigos na cidade, e são amigos de um dos proprietários… e se nós pedirmos para que eles saiam, eles vão depredar o bar, já fizeram isso antes e tivemos um grande prejuízo…

Milli já ia levantando da mesa para ir embora quando eu disse que sentasse. Ela me obedeceu assustada e com um pouco de medo de meu tom de voz…

Aquilo estava me doendo muito. Já tinha passado dos limites do suportável, e embora eu tenha ficado consternado com com o seu pranto quando ela me viu levantar, eu não podia aceitar uma humilhação como aquela, não vinda deles…

Fui, sem medo, até a mesa deles e falei bem alto para que todos naquele barzinho me ouvissem:

– Negro Sujo? – Você é mais negro que eu!

– Quem gosta de negrinhas é um negro sujo e fedido! Traidor da raça!

– Raça? Que raça? Sua bosta! Você não ama sua mãe? Ou é o seu pai que é negro?

Seus olhos ferviam de fúria e ele começava a se levantar:

– O quê? – ele disse me fuzilando com o olhar

– O que eu falei seu racista ignorante! Vocês devem um pedido de desculpas para mim e para a minha esposa sentada ali naquela mesa… ah, e para os seus pais ou avós, sei lá!

Milli era só lágrimas, seus olhos vidrados não viam nada a sua frente, e ela se repetia constantemente balbuciando encolhida na cadeira: Por que você está fazendo isso? Por que você está fazendo isso? Para! Por favor para! Vamos embora… eu quero ir embora…

Só que eu não conseguia ver, nem ouvir nada além de meu ódio, e em meu ódio, sem querer eu a machuquei despertando lembranças insuportáveis…

– Desculpas? Quem você pensa que é seu mestiço de merda? Quem você pensa que é para vir a minha cidade trazendo uma vadiazinha escura, e ainda por cima me ameaçar?

– Essa cidade é tão dela quanto sua, seu nazista imbecil – e quando eu disse isso percebi que todos no bar olhavam assustados para nós. Só que eu não me importava. Que olhassem.

Foi quando levei um muro na cara e cai. Ainda desconsertado, e meio que por instinto quando ele ia chutar minha boca, peguei um revólver que trazia escondido sob a jaqueta e disparei me levantando em seguida.

Eu havia comprado a arma depois de ter concordado com Milli em voltar para lá. Ela não sabia disso e estava tão assustada quanto os outros. Talvez mais.

Suado, com um ódio implacável, e apontando novamente para aquele verme, que cuspia sangue, eu continuei:

– Há vinte anos! Há vinte anos vocês destruíram a minha vida e a dela…

Ao ouvirem isso, os olhos deles se arregalaram pela primeira vez, e a olharam como se a tivessem reconhecido. Depois me fitaram atônitos, como se estivessem vendo um fantasma…

E eu fiquei feliz ao ver o seu espanto, e o seu medo. Tão feliz que não escutava mais o choro e os soluços de Milli e sua súplica rouca para que eu não fizesse aquilo, para que eu não destruísse as nossas vidas… e para que não a expusesse…

Por isso, quando um outro deles esboçou um movimento, sem pensar, e sem hesitar, eu disparei. Eles estavam com medo e recuavam. Só que eu não consegui parar até deixar os seis caídos, e provavelmente mortos, no chão.

Algumas pessoas tentavam dialogar comigo e me acalmar enquanto a polícia não chegava…

Milli apareceu ainda há pouco na delegacia, para prestar depoimento, entre lágrimas. Depois  ela veio me ver. Ela devia estar me odiando, embora não demonstrasse. Eu estraguei tudo… ela só pediu para que eu ficasse calmo, e eu havia falhado.

 

– Por quê? Eu te pedi tanto, por quê? Eles não te fizeram nada!

– Como?

– Eles não te fizeram nada diretamente! Você sabe disso! Se alguém era para estar cheia de ódio era eu! E não você! Eu é que fui humilhada e ofendida. Você não tinha o direito! Você sabe, eu namorava o Rafael naquela época! Foi comigo e com o Rafael que eles fizeram tudo aquilo… Você sabe disso né? Eu te contei essa história milhares de vezes… Não foi com você! Você nem estava lá! Foi no Rafael que eles bateram, foi ele que eles espancaram, e estupraram depois de mim, e que mataram na minha frente! Tudo bem, você chegou depois, e entrou na minha vida, e me salvou, me deu conforto, e eu vou ser eternamente grata por isso… e eu, eu te amo, de verdade, eu te amo… mas agora você destruiu as nossas vidas… Agora eu vou ficar sozinha… Você foi tão egoísta… por quê?

– Eu… eu te amo também.

 

O Rafael… o primeiro namorado dela… Eu a conheci alguns dias depois de seu assassinato, e a convenci a ir na delegacia prestar queixa. Lá, vimos dois deles e guardei suas tatuagens em minha memória. Eles eram policiais e aquilo me deixou mais indignado ainda.

Eles nos olhavam ameaçadoramente, eu ainda queria denunciá-los, só que Milli estava muito fragilizada e desistimos. E Milli foi morar com uma tia em São Paulo onde eu já morava…

Por fim, com o tempo, de amigos nos tornamos namorados e dois anos depois nos casamos. Durante todo esse tempo eu sequei as suas lágrimas de tal forma que as confundia com as minhas. Sua dor era também minha dor. Pouco me importava se havia sido ele que estava com ela quando tudo aconteceu…

Pouco importava qualquer coisa agora: ela talvez jamais me perdoasse…

E eu jamais sairia da prisão…




Rannie Cole: mais um conto: 'O Acidente'

Rannie Cole: mais um conto: ‘O Acidente’

Conto: ”O Acidente

– Tu viu a cara do moleque? – ela perguntou

– ká-ká-ká-ka… vi sim, a gurizada de hoje não tem noção.

– É, seu idiota! Você deixou ele dar em cima de mim e não fez nada – disse Jana fazendo beicinho e fingindo indignação.

– E o que é que tu queria que eu fizesse? Ele tava tentando faturar a dele, tadinho… rs

– Você poderia ter chegado e se imposto, sei lá. Mostrado para ele que eu tava acompanhada…

– Ah, Sinto muito, mas eu queria tanto ver a tua reação, kkk… dei umas boas gargalhadas com o papo sonso de vocês

– Tu tava ouvindo? Seu cafajeste!

– Tava sim, passa o baseado pra cá, deixa eu dar uma tragada…

Essa foi a última conversa dos dois. Estava uma noite escura, e parecia haver faltado energia, pois a rodovia por todo o percurso da serra não estava iluminada, e para piorar a situação a neblina tornava o caminho praticamente invisível.

Pouco depois de ter pego o baseado da mão de Jana, Rafael viu algo que parecia ser um clarão vindo da direção contrária, ele desviou e bateu no guard-rail, que cedeu, e o carro rolou serra abaixo.

Ao acordar, uma forte dor de cabeça lhe nublava o raciocínio. O air-bag havia salvo sua vida. Chovia forte. E ele não conseguia ver nada fora do veículo… Olhou para o lado: Jana estava imóvel. Saia sangue de sua boca. Ele a sacudiu, mas era inútil. Ela estava fria. Tentou se mover: sua perna estava presa. E, de repente, toda a cena lhe veio a cabeça e ele começou a chorar. Jana estava morta! Ele queria morrer. Por que não havia morrido?

Os raios, seguidos de trovões se sucediam. Tirando por seus flashes, a escuridão era total. A chuva engrossara. Sua perna doía. Sua cabeça doía. Ele era um imbecil. Por que foi beber? Por que havia ido naquela festa idiota?

– Fique calmo – ele ouviu a voz de Jana dizer. Por um instante esqueceu que ela estava morta. E  tocou em seu rosto empapando sua mão no sangue já frio que se espalhava. Aquilo o fez tremer, intensificando seu choro e o desejo de morte. Por fim, ele adormeceu.

O sol da manhã o fez despertar. Ficou horrorizado quando percebeu que era real. O carro estava de cabeça para baixo, com toda parte da frente esmagada em uma árvore. Do seu lado estava Jana, imóvel, pálida, banhada em seu próprio sangue. Sua perna estava dormente, presa nas ferragens. Ele queria sair, mas era impossível. Começou a gritar por socorro, porém, em poucos minutos parou. Estava fraco, além disso não estava na estrada. Para qualquer lado que olhasse, ele só conseguia ver o mato.

– Putz o que é que a gente vai fazer – disse Jana olhando para ele toda ensanguentada

– Jana? Você está viva?

– Não! É o meu fantasma o coió! É claro que estou viva! Mas falando sério, você consegue se mexer?

– Eu estou com a perna presa. E ela está dormente.

– O celular tá funcionando?

– O meu está sem bateria, e o seu?

– Putz o meu quebrou!

– Bem, eu consigo sair, vou atrás de ajuda… me espera aqui.

– Como se eu pudesse sair…

O tempo ia passando e ele ia ficando fraco e tonto. Estava feliz por Jana estar viva. Por um momento acreditara que ela tinha morrido. Seria o inferno se isso tivesse acontecido mesmo… A tarde começava a despontar no céu quando Rafael adormeceu…

Acordou, quando o crepúsculo começava a cair, com um homem do campo tendo jogado um pouco de água em seu rosto:

– Tudo bem moço?

– Não sinto a minha perna. Está presa entre as ferragens. Dá pra chamar uma ambulância?

– Ich, com a chuva que deu ontem, e a estrada como tá, ela vai levar mais de dia pra chegar!

– Então me ajuda a sair daqui…

– Você tem sorte mesmo hein? Se eu não tivesse sentido um impulso de dar uma volta para esses lados você podia ficar mais de semana ai preso, nunca passa ninguém por essas bandas. – dizia o senhor enquanto o puxava para fora do automóvel.

– Se você chama isso de sorte…

– Desculpa… – disse o camponês enrubescendo – o que eu quis dizer é que você poderia morrer esquecido por aqui…

– Não… a minha namorada foi atrás de ajuda… estranho ela não ter voltado ainda.

Uma vez fora do carro, e recostado em uma árvore ainda sem sentir suas pernas, Rafael perguntou então ao caipira se ele a tinha visto. Ela era uma jovem loira, de uns vinte anos de idade, magra, e estava suja de sangue. Acrescentou, também, que ela e que tinha saído do carro cedo, procurando por socorro.

O camponês então o encarou como quem encara um louco, e com espanto no olhar respondeu: “Aquela ali?” apontando para o veículo.

Rafael olhou para o carro e viu o corpo de Jana ali, inerte.

 

*          *          *

 

Era já fim de tarde quando eles chegaram próximos do veículo, e ela disse para o senhor que a acompanhava:

– Ele está ali, naquele carro… você ajuda a gente? – O senhor se abaixou e olhou para o corpo ali esmagado entre as ferragens do carro, e o air-bag, e disse da melhor forma que ele conseguia:

– Moça, eu sinto muito, mas ele está morto…

– Não! – ela gritou em prantos. – Ele estava vivo há pouco… não é possível! – um momento depois, secando as lágrimas, ainda apavorada, mas tentando ser racional, disse: – bem… quem é que a gente chama? Os bombeiros? A ambulância? O IML?

– Olha dona, com a estrada como está vai ser impossível eles chegarem hoje… só amanhã à tarde provavelmente… mas vamos ligar, vem comigo. Se você quiser pode pernoitar lá em casa hoje…  Minha mulher fez um ensopado, eu sei que não…

– Quê? Não mesmo! Você tá loco? Ensopado! Como se eu pudesse pensar em comer numa hora dessas! Eu não vou deixá-lo aqui sozinho… meu Deus! Ele morreu enquanto eu procurava ajuda…  tadinho, tadinho… mas vai, pode ir… você liga para o SAMU pra mim? Eu espero aqui… obrigado!

– Olha moça, desculpa mas eu tenho que ir pra casa porque a minha esposa está me esperando. Mas não se preocupe, eu volto mais tarde e trago algo para você comer.

– Obrigado Sr., desculpa por eu ter gritado, é que eu, eu, eu estou perdida, eu não sei o que fazer…

– Tudo bem… eu sei. Procure manter a calma tá?

 

*          *          *

 

– Bem garoto, não adianta fazer nada, ela deve ter ficado do outro lado.

– Outro lado? Ela está morta! Você não vê?

– Morta… Não, sim… depende do ponto de vista. Do outro lado eu acho que é um termo mais correto. Bem, vamos, eu tenho uma porção de coisas para fazer… eu sabia que ia ter visita, mas não imaginava que seria tão cedo, achei que iria ter mais uma semana ainda…

– Como assim? Vamos deixá-la aqui? Eu não vou abandoná-la…

– Escuta, você escolhe. Mas eu não posso ficar aqui ok? Vamos até a minha casa e eu te explico tudo…

– Mas e ela? Como eu posso deixá-la? Eu a amo…

– Escuta filho, ela vai ficar bem, não se preocupe com ela tá? Eu posso te garantir isso. Ela nem está mais aqui…

– Eu sei…

– Não foi isso que eu quis dizer, olhe…

E Rafael olhou para o corpo de Jana, e o mesmo parecia ir ficando cada vez mais impalpável e intangível, como um holograma. Então, espantado ele falou:

– Como você fez isso? É algum truque barato? Você está debochando da minha cara? Isso não tem graça sabia?

– Não, fique tranquilo, isso não é um truque… eu jamais brincaria com você num momento tão delicado.

– Então qual é a sua? Quem é você afinal?

– Ah, finalmente você me perguntou! Meu nome é Ulisses José dos Campos…

– Desculpa Sr., é que com tudo isso… Eu estou muito mal… vocês já removeram o corpo dela é isso?

– Não, não é bem isso…

– Sr. Ulisses José dos Campos… Que engraçado, você tem o mesmo nome do meu falecido bisavô…

– Exatamente…




Rannie Cole publica um novo conto: 'Da Terra ao Céu'

Rannie Cole: conto ‘Da Terra ao Céu’

 

Eu estava tomando café com um amigo quando eu a vi pela primeira vez. Ela tinha cabelos pretos, lisos, cortados na altura do ombro. Usava óculos de aros pretos, grandes e redondos. Era um pouco alta, tinha um corpo esguio, e olhos escuros. Além disso, suas tatuagens, um desenho em preto e branco, e uma frase da qual não me lembro, me faziam ficar olhando fixamente para ela, na altura do ombro.

Quem era? O que pensava? Quais eram seus sonhos? Essas eram coisas que eu nunca saberia. Todavia era legal ter devaneios.

Ela nem me notara, eu sabia disso. Minhas roupas esfarrapadas, meu cabelo, já começando a ficar calvo, por cortar, além da barba por fazer me informavam que eu não seria um dos seres da espécie considerado atraente.

Os feios, assim como os brutos, amam. E eu comecei a frequentar a loja em que ela trabalhava todos os dias. E nunca cheguei a trocar uma palavra com ela.

 

Vi quando ela ficou grávida. E acompanhei sua gravidez de perto. Vi sua barriga crescer imaginando como seria o bebê, se seria menino ou menina… e, às vezes, delirava a imaginando como minha esposa, e a criança como nosso filho. Afinal eu a via todos os dias. Ela era minha família. O amor da minha vida. E, no entanto, ela jamais me olhara.

Acompanhei o resultado seus exames pré-natal e quando ela se afastou de licença maternidade eu fiquei perdido. Como eu ficaria sem minha mulher? Então descobri onde ela morava e comecei a frequentar o bairro onde ela morava. O supermercado onde ela ia. E passei a me sentir vivo novamente… e meu coração bateu acelerado quando o bebê nasceu e o vi pela primeira vez na maternidade. Ele parecia comigo. Eu sei que é impossível… mas ele parecia comigo! E isso me deixou tão feliz…

A criança tem três meses já. Ela voltou a trabalhar. Voltei a frequentar a loja em que ela trabalha. Seu rosto parece cansado. Um pouco da vitalidade que ela tinha parece ter se esvaído. No entanto, deve ser normal.

Todo fim de tarde vou eu a observo de longe enquanto ela pega a criança. Já decidi que ela também é minha filha. Não importa que eu nunca tenha nem mesmo beijado sua mãe. Ou que ela nunca tenha falado comigo.

A menina engordou um pouquinho e está meio corada. Não tenho com o que me preocupar. Mas tenho notado que tem estranho que aparece todo dia na creche. E ele fica olhando para minha filha de uma forma estranha…

 

Recorte de Jornal:

 

Um homem de estatura mediana foi assassinado brutalmente ao impedir na tarde de ontem que o ex-namorado de XXX sequestrasse sua filha.

Segundo XXX ela não conhecia a vítima, apenas lembrava vagamente do mesmo como um cliente da lanchonete onde ela trabalha. Ela afirma que seu EX havia batido nela a deixando caída no chão e levado sua filha. Foi então que ela viu esse desconhecido aparecer como um anjo e correr até o pai da criança e brigar com o mesmo. Nisso, segundo XXX, ela pode ligar para a polícia e não viu quando o estranho foi esfaqueado.

YYY foi preso mais tarde enquanto deixava seu endereço com uma mala. Ele responderá pelo assassinato de HHH que segundo XXX é um anjo que Deus colocou em sua vida para salvar sua filha de um pai violento e abusivo.

 

Rannie Cole

 

 




Rannie Cole: conto 'Pela 'Família Cristã'

Rannie Cole publica o conto ‘Pela ‘Família Cristã’, que trata da questão da homofobia

 

Estava escuro ainda quando Jeane abriu os olhos. A cabeça doía um pouco. Ela estava confusa. O quarto em que acordara não era o seu. Estava seminua e, embora estivesse sozinha na cama, gostaria de lembrar como fora parar lá. Era horrível aquela sensação de não saber se ficou com alguém ou não. De estar na casa de uma desconhecida e ter que sorrir e fingir quando ela chegasse com um café da manhã. “Droga!” como ela gostaria de lembrar-se do rosto da menina. Se ela era bonita ou não…

Não que fosse exatamente uma novidade acordar com uma amnésia temporária. Isso já lhe acontecera umas duas vezes. Só que, geralmente, ela acordava na própria casa, ou na de uma amiga. Vezes essas que ela bebera demais e, portanto, sabia o motivo de seu esquecimento. Dessa vez, no entanto, o próprio local em que estava lhe era estranho, e ela não se recordava nem mesmo de ter bebido mais que dois goles de vinho. Precisava lembrar-se de nunca mais misturar o Rivotril com álcool. Nem mesmo com uma dose.

Ao passar a mão na cabeça para ajeitar os cabelos, Jeane sentiu umas casquinhas se soltarem acima da testa e percebeu que era sangue coagulado. Num primeiro momento: pânico. Porém, ela refletiu que tudo parecia estar bem, e poderia não ser nada: “devo ter batido a cabeça, só isso.” – pensou. Resolveu então chamar: – Ei. Ei, tem alguém ai? – nada. O silêncio, todavia, foi interrompido pelo celular que estava sobre o criado-mudo e começou a tocar. Não era o seu telefone, então teve receio em atendê-lo. Mas, ouvi-lo tocar deu lhe a ideia de procurar o seu, e ligar para alguém; encontrou-o no chão, ao lado de sua saia, mas sem bateria. E não havia nenhum carregador à vista. Estava arrependida de ter saído de casa.

– Vamos, menina! – ele insistia com ela – Vai ser legal. Tem uma garota que você tem que conhecer!

– Pode ser outro dia? Eu tô cansada hoje.

– Quê, cansada!. Você sempre dá uma desculpa… vamos! Eu juro, ela é a tua cara! Foi feita para você, você vai amar. E depois Jeane, você está precisando transar, menina. Senão, vai acabar virando uma vadia amarga como eu.

Jeane relutara, mas ele era o seu melhor amigo. Era uma Diva, cheia de trejeitos, extremamente afeminado, e se arrumava melhor do que ela. Mas era seu melhor amigo. E depois, fazia tanto tempo que ela não saia, desde seu término com Lara, que acabou se convencendo de que seria bom espairecer. Por isso, saíram.

No barzinho ela conheceu Daniela. E ela era tudo que Roberto/a tinha lhe dito: linda, meiga, e inteligente. Chegou a achar que a garota era até boa demais para ela. No entanto, Dani teve que ir embora mais cedo. Trocaram telefones e ficou nisso. Então, não satisfeito, com a sensação de ter sido cortado, Roberto/a cujo nome de guerra era Angel, decidiu levá-la a uma boate LGBTS… Mas Jeane não lembra-se de ter entrado lá. Eles viram umas viaturas paradas frente à boate e decidiram ir a um barzinho ali perto.

Jeane foi ao banheiro da suíte. Olhou-se no espelho e viu que tinha mais sangue do que imaginava em sua nuca. Lavou demoradamente o rosto, sentindo a água gelada em sua face. Depois, molhou os cabelos limpando o sangue que havia neles. E, de repente, percebeu que estava tranquila e até razoavelmente despreocupada dada a gravidade da situação.

Após enxugar o cabelo, ela foi se vestir, mas percebeu que suas roupas estavam rasgadas e sujas de sangue. Abriu o guarda-roupa e viu apenas vestes masculinas ali. Não hesitou em vestir uma calça jeans e uma camiseta preta. Só então arriscou abrir a porta do quarto.

Na mesinha de centro da sala, e por todo o chão, havia cacos de uma garrafa de vinho. E duas taças quebradas. Ela começava a recordar:

– “Oi” – ele tinha um rosto bonito e encarava o Roberto: – Oi – disse Jeane, encarando-o, e depois sorrindo para Angel, que parecia interessado. – Meu nome é Cristian. Tá vendo aquela menina lá na mesa do canto? É a Michelle. Ela tá a fim de ti, e gostaria de saber se tem alguma chance. – Ah, senta aqui com a gente e diz pra ela vir também.

Na copa, Cristian e Angel estavam caídos no chão, com uma poça de sangue. Jeane correu até Angel, mas era tarde. Ele estava frio. Ela o sacudiu, abraçou o seu cadáver e começou a chorar, lembrando:

– Sabe Michelle, minha amiga aqui amou você; disfarça, mas acho que ela está mal-intencionada essa noite. – disse Angel, olhando com ares de deboche para Jeane. – Ela é uma menina muito má!

– Ah fica quieto, sua bicha! – disse Jeane, brincalhona, para Angel.

– Que tal irmos nós quatro lá para casa? ─ sugeriu Michele, segurando com doçura a mão de Jeane, que estava encantada e decidida…

Eles seguiram o carro de Michelle até sua casa na zona norte. Estacionaram. Entraram, e tudo parecia bem, até que Cristian pegou uma garrafa de vinho com apenas duas taças e serviu uma para Michelle.

– Ei, e a gente? ─ perguntou Angel, ainda tranquilo.

– Vocês já vão ter o seu! – respondeu rudemente Cristian, enquanto erguia a taça. Depois, brindou:

– A um novo mundo, livre de aberrações!

Angel olhou para a estante e viu, entre outros livros, “Minha Luta”, de Adolf Hitler, ao lado da Bíblia e de “A Família Cristã”, e percebeu o que estava acontecendo ali:

– Escuta cara, eu não estou entendendo esse teu papo, mas valeu mesmo, obrigado por tudo; de qualquer forma a gente vai indo, OK? Está tarde já…

– Vocês ficam aí, seus lixos! Vocês foram julgados e condenados!

Eles tentaram correr. A garrafa de vinho quebrou na cabeça de Jeane e ela apagou. Foi tudo muito rápido. Angel deve tê-la defendido…

– SAIAM COM AS MÃOS NA CABEÇA! – intimou o policial. – VOCÊS ESTÃO PRESOS POR INVASÃO, TENTATIVA DE ASSASSINATO, ROUBO E AGRESSÃO!

Jeane saiu com as mãos para o alto e viu Michelle com um leve hematoma, sorrindo malevolamente para ela, ao lado da viatura policial. Um tiro foi disparado acidentalmente e Jeane caiu…

Um policial, primo de Michelle, membro devoto da igreja, e parte de um grupo religioso chamado “A Família Cristã” foi indiciado, mas liberado por “atirar em legitima defesa” em uma assassina de alta periculosidade, sendo condecorado também por isso mais tarde.




Rannie Cole: conto ‘A Voz'

RannieRanielton Dario Colle: ‘A Voz’

 

Um sonho: eu atravesso a porta, ela está ali. Está escuro. Deitada sob os lençóis ela sonha. Um sonho. E eu tenho medo que acabe. Deito ao seu lado. Acaricio seus cabelos. E beijo sua testa. Acordo: na cama eu e dois gatos. Esfrego os olhos. Vontade de não levantar. Olho para o banheiro: a porta fechada. E lentamente me ponho sentado na cama. Um dos gatos se levanta sonolento. O outro nem se mexe. Essa é a rotina: caminho lentamente, ainda acordando até o banheiro, lavo o rosto e vou preparar o café. As vezes escovo o dente antes e depois; as vezes só depois.

Quem é ela? Uma estranha. Só existe ali, naquele cenário. – “Você está bem?” – sussurra uma voz em meu ouvido. Não há ninguém. São apenas recordações de algo que não existiu que tomam forma. Existem fisicamente em minha mente. – Sim – eu respondo para mim mesmo. Para a voz em meu ouvido. Para o meu delírio. Solidão? Não, eu me faço companhia. Ela me faz companhia. Sento a mesa e saboreio uma torrada quente com margarina vegana. Tomo um gole de café. – “Está bom?” – a voz pergunta – Sim – eu respondo num murmúrio.

E tem sido assim todos os dias. Vou para o trabalho. A secretária me recebe me informando dos telefonemas. Os clientes. As correspondências. Entro em minha sala. Fecho a porta e olho desanimado para a pilha de papéis em minha mesa. – “Tudo bem, você consegue” – a voz sussurra. Ela tem sido minha melhor companheira nos últimos anos. A voz…

Termina o dia. Para casa. Alimentar os gatos. Assistir a um filme. Jogar videogame. Tomar um copo de uísque. Ir dormir…

Durante anos foi assim. A voz me acompanhava por tudo. Ela me dava dicas, me ajudava a resolver problemas. Praticamente me ditava as defesas de meus clientes. Mas então, do nada, ela parou. Partiu, e eu estava só. Fiquei perdido. Acordei tarde. Não lavei o rosto. Não fui trabalhar. Eu simplesmente não sabia o que fazer. Pensei que ela voltaria então retomei à rotina. Só que não era a mesma coisa. Nunca mais será. Perdi horários: compromissos, causas, clientes. A falência veio junto à sua partida. Eu rezava a noite. Implorava por ela, pela voz. Mas nada. Então eu me dei conta do que era a solidão. A verdadeira solidão.

Tentei conversar com minha secretária, mas não era a mesma coisa. Com outras pessoas. Mulheres em barezinhos. Mulheres da vida. Colegas… nada. Eu jamais me sentiria inteiro novamente. Até que decidi ir a um médico. Ele jamais ouviu uma história como a minha. Mas me mandou a um psiquiatra. O psiquiatra me falou que eu tinha esquizofrenia. Caso raro. Sumiço espontâneo das vozes. Pediu tratamento conjunto com uma psicóloga. Então outra voz começou a falar comigo. Diferente da primeira, esta me xingava, me ofendia. Sugeria que eu me matasse. Que eu matasse outras pessoas. Dizia que eu era um fracasso. Um nada. Um ninguém. Que estavam me enganando… Então vieram os remédios. Uma aposentadoria forçada por invalidez. A tentativa de suicídio. A escuridão. O medo.

E os gatos sumiram: sem vozes, sem vida! A solidão infinita dos dias. Nem filme. Nem TV. Nem videogame. Sem vontade para ler… a existência se tornou um fardo. Então parei com os remédios, e um dia ela voltou: veio para dizer adeus. Foram lágrimas sem fim. E um sono agitado depois: Lençóis suados. Então a porta a minha frente: Eu abri. Entrei. Um lugar estranho. Uma luz. Uma criança. E elas eram eu: A luz. A criança. A porta. A voz.

Eu acordei em uma sala branca. Havia soro no meu braço. E minha mãe me olhava com lágrimas nos olhos: “Você está bem?” – ela sussurrou em meu ouvido. Como quando eu era criança. Meu pai transparecia tristeza e preocupação em seu rosto. Então veio um homem vestido de branco e disse que tudo ia ficar bem. Estávamos só nós dois na sala.