Celso Lungaretti: 'em defesa da memória de Raulzito'

Celso Lungaretti

PREFIRO DETONAR ESSA MERCANTILIZAÇÃO AMBULANTE DO QUE VER AQUELA VELHA CUPIDEZ PREVALECENDO SOBRE TUDO

O jornalista Jotabê Medeiros está lançando um livro sobre Raul Seixas que, como o de Rodrigo Janot sobre a própria imagem no espelho de seu narcisismo exacerbado, preencherá muitos espaços no noticiário não em função da obra em si, mas de um factoide suposto ou real.

 Janot fez com que se tornasse conhecida uma mirabolante tentativa não levada às últimas consequências de assassinar o ministro Gilmar Mendes em plena sessão do Supremo Tribunal Federal, só que a data alegada não bateu com detalhes factuais e sua versão caiu no mesmo descrédito que tudo referente ao ex-PGR nos inspira.
Fiquei contente em saber que a noite de autógrafos ficou às moscas e que alguém disponibilizou a auto-oniro-biografia na web, de forma que ele pouco deve ter lucrado desmoralizando a si mesmo e inspirando dúvidas sobre a própria sanidade mental.

O livro sobre o Raul contém elucubrações a respeito de o maluco beleza haver, de alguma forma, contribuído para a prisão e tortura de Paulo Coelho  por parte do DOI-Codi.

Mas, não há nada realmente conclusivo, fica tudo no campo das especulações e de uma ilação tirada a partir de um relatório da repressão que também não é taxativo.

Então, informo ao biógrafo fofoqueiro (e não é a primeira vez que escrevo isto) que tais relatórios e inquéritos eram verdadeiros sambas do crioulo doido. Primeiramente, porque condensavam informações arrancadas de torturados e estes, percebendo o que os inquisidores sabiam ou acreditavam saber, geralmente o corroboravam para evitar mais torturas. 

Depois, ao encerrarem os inquéritos, os responsáveis apresentavam tudo que haviam apurado como se tivesse sido afirmado por todos os réus, quando, na verdade, era a soma do que vários haviam admitido, um pouco cada um.

Porque coonestávamos tais farsas assinando embaixo? Porque as informações que tentávamos preservar no limite das nossas forças eram aquelas que poderiam levar à queda de militantes e ao desmantelamento de redes. 
Para informações que teriam uso apenas judicial não dávamos a mínima: sabíamos que nossas sentenças não dependeriam de provas, mas seriam previamente definidas pelos serviços de Inteligência das Forças Armadas e os pseudos-julgadores, nas auditorias militares, apenas dariam um jeito de fazê-las parecerem consistentes.

Ocultismo livresco e fantasia de Merlin

Na década passada, recebi um levantamento de tudo que havia a meu respeito nos arquivos do Deops. Parecia obra de ficção. Eu era citado como presente em episódios que nem sequer conhecia (caso de um tribunal revolucionário do qual não fui juiz, embora a propaganda enganosa das viúvas da ditadura até hoje repita tal fake news).

Como recebi aqueles depoimentos na íntegra e não apenas os trechos a mim referentes, também notei que em várias ações armadas a autoria era atribuída a um número excessivo (o dobro do real, ou mais) de companheiros. 

 Em alguns casos, eu sabia exatamente quantos e quais tinham atuado. Noutros, baseei-me nas características da ação, que nem de longe demandavam tanta gente no planejamento, execução e apoio. Preferíamos, por motivos de segurança, reduzir o pessoal envolvido ao mínimo necessário.

JAMAIS deveria ter sido incluído numa biografia. Por que e para que colocar sob suspeição, sem certeza nenhuma, um mito libertário da magnitude do Raul?

 Pior, a meu ver, foram as reticências de Paulo Coelho, que nem confirmou, nem negou tal indignidade, mas disse haver suspeitado disso e se mantido calado por 45 anos. Esta afirmação profundamente infeliz (e jamais acreditarei que tenha sido incidental, em se tratando de um profissional da palavra), evidentemente levou água para o moinho dos interessados em insuflarem uma polêmica artificial.

Daí a repórter que o entrevistou para a Folha de S. Paulo ter incluído esta pérola no seu texto: 


Medeiros, por sua vez, crê que Coelho não                               tem a menor dúvida, hoje, após ver o documento, de que Raul o entregou’.

Que documento? Aquele mesmo da repressão que, noutro trecho da entrevista, é assim mencionado pela entrevistadora: “Mas, mesmo os papéis oficiais não são conclusivos”. Durma-se com um barulho desses…

.OS MAGOS CARLOS CASTAÑEDA E PAULO COELHO EXIBIRAM O MESMO NÚMERO: A TRANSMUTAÇÃO DE LOROTAS EM OURO   De resto, já que Paulo Coelho habilmente ajudou a magnificar uma besteirinha dessas sem assumir francamente o ônus de acusar o ex-parceiro e receber o troco de quem acha tudo isso uma deplorável forçação de barra (meu caso!), vou lembrar o que me fez nunca mais levá-lo a sério.

Quando bebi e papeei algumas vezes com o Raul no início da década de 1980 (mais sobre isso aqui e aqui), muita coisa se apagou da minha mente por causa das disputas de levantamento de copos que travávamos, mas algo me chamou tanto a atenção que retive para sempre na memória.

Segundo Raul, ambos eram tão interessados em ocultismo que se davam ao trabalho de traduzir, apenas para uso próprio, livros quase desconhecidos de bruxos famosos do passado. Se bem me lembro, não só os que estavam publicados em idiomas vivos, mas até do latim.

Então, somando dois e dois, encontrei quatro. Percebi que Paulo Coelho de mago nunca teve nada e apenas utilizara essas informações que possuía para vestir uma fantasia de Merlin e enganar os otários com livros bem inferiores, p. ex., aos de Carlos Castañeda.

 Só que o mexicano e sua literatura fantástica sobre bruxos e cogumelos havia sido desmascarado por um jornalista investigativo. Embora fizesse tudo que podia para esconder-se da imprensa, um repórter mais teimoso acabou descobrindo que Castañeda não passava de um pesquisador que fora a fundo no resgate de cultos primitivos do país azteca. 

Aí, percebendo que faturaria muito mais fingindo ter vivenciado pessoalmente tais experiências ao invés de haver tomado conhecimento delas prosaicamente gravando depoimentos, jogou a tese acadêmica que estava escrevendo no lixo e lançou o ficcional A erva do diabo, em cuja veracidade tanto bicho-grilo acreditou piamente. 

 (por Celso Lungaretti, jornalista, escritor e ex-preso político)



Gonçalves Viana: 'Sessão das dez'

Raulzito ainda não era o notório Maluco Beleza, o pai do rock brasileiro, o nosso Raul Seixas. Mas foi justamente a condição de produtor musical que propiciou a oportunidade de ele e seus parceiros poderem gravar o tão sonhado e ansiado álbum conceitual, tendo a banda assumido o nome de ‘Sociedade da Grã-Ordem Kavernista’”.

 

Lá pelos idos de 1971, quatro músicos acharam por bem reunirem forças no sentido de gravarem um disco. Pretenciosos que eram, queriam gravar um álbum conceitual, nos moldes de álbuns como Freak Out! (1966) do Frank Zappa & The Mothers of Invention; Tommy (1969), a ópera-rock do The Who; o album divisor de águas do Pop/Rock: Sgt. Peppers Lonely Heart Club Band de um grupinho chamado The Beatles e, também, do genérico nacional Tropicália (1968), de Caetano e Gil, mais a troupe tropicalista composta por: Mutantes, Tom Zé, Gal Costa, Nara Leão, os poetas Capinan e Torquato Neto e o maestro Rogério Duprat.

Sérgio Sampaio

Pois é, esses visionários que queriam, porque queriam lançar, já no primeiro disco, uma ópera-rock, formavam uma banda que era constituída por: Sérgio Sampaio, cantor e compositor, nascido em 13 de abril de 1947, em Cachoeiro de Itapemirim/ES, que era primo do compositor Raul Sampaio, autor de sucessos, na voz de outro famoso conterrâneo, Roberto Carlos.

Outro era Edivaldo Souza, mais conhecido como Edy, nascido em Salvador/BA, em 10 de janeiro de 1938, cantor e artista performático que, após esse disco, passou a adotar o nome de Edy Star.

Míriam Batucada

Também fazia parte, a cantora de samba, Miriam Ângela Lavechia, nascida em São Paulo/SP, em 1º de janeiro de 1947, seu nome artístico era Miriam Batucada. Ela ficava batucando um pandeiro imaginário com as mãos. O quarto componente era um produtor musical, da Gravadora CBS, um tal de Raul Santos Seixas, que nasceu em 28 de junho de1945, em Salvador/BA, cantor, compositor e um dos pioneiros do rock brasileiro.

Em 1968, Raul com o seu conjunto Os Panteras, vieram ao Rio de janeiro, para gravar o seu primeiro disco, ‘Raulzito e Os Panteras’, na EMI-Odeon. Infelizmente, o disco não vendeu e Raulzito e os seus Panteras acabaram passando por sérias necessidades e, até mesmo, fome, no Rio de Janeiro. Com isso voltaram para Salvador.

Raul Seixas

Mas, Raulzito teve uma segunda chance, seu amigo Jerry Adriani, convenceu o então Diretor-Presidente da CBS, Evandro Ribeiro, a dar a ele o emprego de produtor musical.

Raulzito ainda não era o notório Maluco Beleza, o pai do rock brasileiro, o nosso Raul Seixas. Mas foi justamente a condição de produtor musical que propiciou a oportunidade de ele e seus parceiros poderem gravar o tão sonhado e ansiado álbum conceitual, tendo a banda assumido o nome de “Sociedade da Grã-Ordem Kavernista”.

Muitas lendas cercam esse disco, cujo projeto inicial era o de uma ópera-rock. A principal delas reza que Raul, sendo o produtor musical da gravadora, teria aproveitado a ausência do Diretor-Presidente, que estava em férias, usando de todos os equipamentos, aparatos e recursos do estúdio, para gravar o tão almejado disco. Eles teriam gravado à noite, e ninguém da CBS ficara sabendo disso.

Quando o Diretor-Presidente voltou, suspendeu o projeto, e Raul foi demitido do cargo. Então, o disco que era composto de onze faixas, intercaladas por vinhetas, mas cujas letras já haviam sido mutiladas pela censura do Regime Militar e, ficando também sem o apoio da gravadora para a divulgação do trabalho junto às rádios e programas musicais, redundou em um enorme fracasso, não obtendo sucesso de público e, muito menos, de crítica.

Em face disso, o disco, que tinha o pomposo nome de SOCIEDADE DA GRÃ-ORDEM KAVERNISTA APRESENTA “SESSÃO DAS 10” foi abandonado à própria sorte pelos executivos da matriz, nos Estados Unidos, que não haviam gostado do resultado final.

O projeto foi levado a cabo, em conjunto, pelos quatro kavernistas. Cada um cantou, sozinho, duas canções; Raul e Sérgio cantaram, juntos, outras três. Raul tocou praticamente todos os instrumentos. As composições são todas de Raul e Sérgio, exceto “Soul Tabaroa” de Antônio Carlos e Jocafi e “Chorinho Inconsequente”, parceria de Sérgio Sampaio com Edy Star.

Os kavernistas utilizaram vários estilos em suas composições, desde uma seresta (Sessão das Dez), cantada por Edy Star; um chorinho (Chorinho Inconsequente) interpretado por Miriam Batucada e, até mesmo, um samba, composto e gravado por Raul Seixas, “Aos Trancos e Barrancos”, o único samba composto em toda a sua carreira.

Miriam Batucada não foi a primeira opção de voz feminina no grupo. A prioridade era de Diana, esposa de Odair José, mas como ela já era contratada da CBS, e estava gravando ‘jovem guarda’, foi descartada. Pensou-se, então, em Lena Rios que estava iniciando na gravadora, por indicação de Torquato Neto. Nesse interim, apareceu nos estúdios, Miriam Batucada que, com sua voz rouca e um incrível bom humor, conquistou a todos ganhando a vaga.

Depois de muito tempo condenado ao ostracismo, por ter ficado fora de catálogo, esse disco acabou assumindo o status de Cult. Somente em 1995 voltou às lojas, no formato de CD, primeiro, numa edição limitada da Rock Company e, depois, pela Sony (2000 e 2010). A edição de 2000 foi muito criticada por não trazer as letras, nem a ficha técnica e fotos. Já, a de 2010 veio completa, inclusive com o som remasterizado.

As edições de 1995 e de 2000 são difíceis de ser encontradas. Os LPs originais (vinil), então, nem se fala, são itens de colecionador, chegando a valer pequenas fortunas.                   

        Gonçalves Viana – viana.gaparecido@gmail.com

 

SESSÃO DAS DEZ

EU COMPREI UMA TELEVISÃO À PRESTAÇÃO,

À PRESTAÇÃO                                                                             Vinheta

EU COMPREI UMA TELEVISÃO, QUE DISTRAÇÃO,

QUE DISTRAÇÃO, QUE DISTRAÇÃO.

“A nossa homenagem aos boêmios da velha guarda.”

Ao chegar do interior,

Inocente, puro e besta,

Fui morar em Ipanema.

Ver teatro e ver cinema

Era minha distração.

Foi numa sessão das dez

Que você me apareceu,

Me ofereceu pipoca.

Eu aceitei e logo em troca

Eu contigo me casei.

Curtiu com meu corpo

Por mais de dez anos

E depois de tal engano

Foi você quem me deixou.

Curtiu com meu corpo

Por mais de dez anos

E foi tamanho desengano

Que o cinema incendiou

Curtiu com meu corpo

Por mais de dez anos

E depois de tal engano

Foi você quem me deixou.

“Foi demais, rapaz, aliás esta seresta está demais”

(RAUL SEIXAS)