D. Pedro II e a Bíblia

Alexandre Rurikovich Carvalho

‘D. Pedro II e a Bíblia: Um Estudo Ampliado Sobre a Relação do Imperador com as Escrituras Sagradas e a Cultura Religiosa do Século XIX’

Dom Alexandre Rurikovich Carvalho
Dom Alexandre Rurikovich Carvalho
Retrato artístico de D. Pedro II em estilo clássico, criado por IA do ChatGPT. “O Imperador e a Bíblia: um encontro entre história e espiritualidade.”
Retrato artístico de D. Pedro II em estilo clássico, criado por IA do ChatGPT. “O Imperador e a Bíblia: um encontro entre história e espiritualidade.”

Resumo. Este artigo examina de forma aprofundada a relação do Imperador Dom Pedro II (1825–1891) com a Bíblia e com os estudos religiosos, analisando sua formação intelectual, sua biblioteca, sua visão ética, filosófica e ecumênica, bem como o papel que a leitura bíblica desempenhou em sua vida pública e privada, especialmente durante o exílio. Por meio de uma abordagem historiográfica e documental, argumenta-se que a Bíblia exerceu influência duradoura sobre o imaginário, o comportamento e o pensamento do Imperador, sendo parte constitutiva de sua identidade como monarca culto, humanista e cosmopolita. Este estudo contribui para o entendimento da religiosidade no Brasil do século XIX e de como D. Pedro II conciliou fé, razão e tolerância religiosa em um contexto de modernização política e cultural.

Palavras-chave: Dom Pedro II; Bíblia; Religião e Política; História do Brasil; Império; Cultura Literária.

1. Introdução

A figura de Dom Pedro II tem sido amplamente estudada pela historiografia brasileira e estrangeira. Sua imagem está associada à erudição, ao cosmopolitismo e ao incentivo às instituições educativas e científicas no Brasil. Contudo, um aspecto frequentemente mencionado, mas ainda insuficientemente explorado em profundidade, é sua relação com a Bíblia.

Embora tenha governado um Estado oficialmente católico, D. Pedro II cultivava uma religiosidade marcada por estudo, reflexão e tolerância. A leitura da Bíblia, para ele, não era apenas um exercício devocional, mas também intelectual e cultural. Assim, compreender sua ligação com as Escrituras é fundamental para interpretar sua formação moral, sua conduta pública e sua visão de mundo.

Este artigo propõe uma análise ampliada dessa relação, contextualizando-a a partir de fontes primárias (diários, cartas e discursos) e secundárias (biografias, estudos historiográficos e análises culturais).

2. Contexto histórico: religião, política e cultura no Brasil do Segundo Reinado

Durante o Segundo Reinado (1840–1889), o Brasil vivenciou ampla transformação institucional, social e cultural. O catolicismo era religião oficial do Estado, e o Imperador exercia o tradicional padroado, prerrogativa que lhe concedia influência sobre a nomeação de autoridades eclesiásticas.

Entretanto, como demonstram autores como Lilia Schwarcz (1998) e José Murilo de Carvalho (2007), D. Pedro II demonstrava postura mais moderada e progressista que outros monarcas católicos da época. Interagia com protestantes, judeus e orientais, lia autores iluministas e clássicos, e mantinha relações intelectuais com pensadores europeus laicos.

Dentro desse panorama, a Bíblia surgia como obra essencial, não apenas religiosa, mas literária e moral, apropriada por D. Pedro II em múltiplos níveis de leitura.

3. Formação intelectual e domínio das línguas bíblicas

Desde a infância, D. Pedro II recebeu educação excepcional, ministrada por alguns dos principais intelectuais do Império. O estudo de línguas foi parte central dessa formação.

Segundo Carvalho (2007), o Imperador dominava mais de dez idiomas, entre eles:

  • hebraico;
  • grego antigo;
  • latim;
  • árabe;
  • alemão;
  • francês;
  • italiano.

Essa erudição permitia-lhe ler a Bíblia em suas versões originais, sobretudo o Antigo Testamento em hebraico e o Novo Testamento em grego koiné. Tal hábito o aproximava dos grandes estudiosos europeus do século XIX e permitia-lhe interpretar as Escrituras com autonomia crítica.

Nos Diários de D. Pedro II (IHGB) encontra-se a célebre anotação:

“Leio a Bíblia todos os dias. Nela encontro força e consolo.”

A frase sintetiza tanto sua disciplina intelectual quanto sua espiritualidade.

4. A Bíblia na biblioteca imperial: materialidade, colecionismo e erudição

A biblioteca pessoal de Dom Pedro II, atualmente preservada em parte no Museu Imperial de Petrópolis, constitui uma das coleções privadas mais notáveis do século XIX brasileiro. Ali encontram-se diversas edições da Bíblia:

  • edições críticas em hebraico, com notas masoréticas;
  • edições gregas com aparato filológico;
  • traduções francesas e alemãs;
  • exemplares árabes;
  • Bíblias ilustradas do século XIX;
  • comentários e obras teológicas.

O colecionismo bíblico do Imperador reflete:

  1. interesse filológico (comparação de traduções e variantes textuais);
  2. interesse histórico (contexto das civilizações hebraica e greco-cristã);
  3. interesse moral e filosófico (interpretação ética dos textos).

Anotações marginais feitas de próprio punho indicam leitura atenta e sistemática, semelhante ao trabalho de um estudioso acadêmico.

5. A visão ética e filosófica da Bíblia

Embora a historiografia reconheça que Dom Pedro II não era um devoto no sentido estritamente religioso, sua admiração pela Bíblia era profunda. Ele a considerava base moral essencial da civilização ocidental.

Em discurso de 1876 no IHGB, afirmou:

“As lições da Sagrada Escritura são eternas; delas depende o progresso moral dos povos.”

Sua visão refletia o espírito do século XIX, no qual monarquias liberais conciliavam fé e ciência, religião e progresso. O Imperador enxergava a moral bíblica como complemento da racionalidade moderna, e não como antagonista.

Além disso, há registros de que aplicava preceitos de justiça, compaixão e honestidade – presentes tanto na ética cristã quanto em tradições humanistas – à prática do governo.

6. A Bíblia no exílio: espiritualidade, consolo e introspecção

O exílio, iniciado em 1889, foi um dos períodos mais difíceis da vida do Imperador. A perda do trono, da pátria e da família provocou nos últimos anos de sua vida profunda melancolia.

Nesse contexto, a leitura bíblica intensificou-se.

Em anotações de 1890, escreveu:

“A Palavra de Deus consola o coração cansado. No deserto da saudade, a fé é meu abrigo.”

A Bíblia tornou-se instrumento de resistência emocional e fonte de sentido em meio à adversidade. Essa postura aproxima-o dos grandes estadistas exilados que encontraram na leitura e na espiritualidade uma forma de resiliência moral.

7. Ecumenismo, tolerância e diálogo inter-religioso

Talvez o aspecto mais singular da religiosidade de Dom Pedro II seja sua postura ecumênica.

O Imperador estudava:

  • o Talmude e a tradição rabínica;
  • o Alcorão;
  • textos hindus como o Bhagavad-Gītā;
  • obras budistas;
  • literatura religiosa oriental.

Essa prática era incomum entre monarcas católicos e indicava abertura intelectual e respeito pela diversidade espiritual.

Lins (1944) destaca que, ao visitar comunidades judaicas, protestantes e muçulmanas, o Imperador demonstrava sincero interesse, frequentemente dialogando na língua nativa dos interlocutores.

Seu ecumenismo não apenas precedeu o movimento ecumênico do século XX, como também refletiu a modernidade cultural brasileira em formação.

8. A Bíblia e o exercício da função imperial

A influência da Bíblia na conduta governamental de D. Pedro II merece atenção específica. Embora não fosse teocrata, o Imperador:

  1. defendia a moralidade pública baseada em valores éticos universais;
  2. proteg ia a liberdade religiosa, inclusive de comunidades protestantes e judaicas;
  3. condenava injustiças e arbitrariedades, como demonstrado em diversas cartas;
  4. manifestava senso de responsabilidade e serviço, inspirado em princípios cristãos sobre liderança;
  5. incentivava a educação moral, frequentemente citando parábolas e princípios bíblicos.

Seu governo, embora laico na estrutura, possuía fundo moral claramente influenciado pelos valores encontrados nas Escrituras.

9. Considerações finais

A análise ampliada da relação entre Dom Pedro II e a Bíblia revela um monarca cuja espiritualidade estava profundamente integrada à sua vida intelectual e à sua conduta pública. Para ele, as Escrituras eram:

  • fonte de estudo filológico;
  • instrumento de formação moral;
  • base para reflexão ética;
  • símbolo de identidade cultural ocidental;
  • companhia espiritual nos momentos de adversidade.

O ecumenismo, a erudição e a tolerância religiosa que caracterizaram sua relação com a Bíblia inserem Dom Pedro II no rol dos monarcas humanistas do século XIX – figura rara e admirável, cuja religiosidade dialogava com a ciência, a política e a cultura de seu tempo.

REFERÊNCIAS

CARVALHO, José Murilo de. D. Pedro II: Ser ou Não Ser. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

IHGB – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Diários e Correspondência de D. Pedro II.

LINS, Álvaro. O Poder e a Graça – D. Pedro II: um Imperador no Exílio. Rio de Janeiro: José Olympio, 1944.

MUSEU IMPERIAL DE PETRÓPOLIS. Coleção Biblioteca de D. Pedro II. Petrópolis.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. As Barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

SODRÉ, Nelson Werneck. História da Literatura Brasileira: O Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.

MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema: a formação do Estado Imperial. São Paulo: Hucitec, 2004.

Alexandre Rurikovich Carvalho

Voltar

Facebook