Celso Lungaretti: 'O CALCANHAR DE AQUILES DO SERGIO MORO'

Celso Lungaretti

O CALCANHAR DE AQUILES DO SERGIO MORO

Nos últimos dias publiquei a minha melhor série de muito tempo para cá (Dois capitães entrelaçam as milícias do RJ com os torturadores da ditadura),  na qual, depois de aprofundar o tema da absorção de antigos membros da repressão política do regime militar na modalidade criminosa então emergente e destacar as flagrantes afinidades das milícias brasileiras com as máfias italianas,  conclui apontando uma grave vulnerabilidade de Sergio Moro, um personagem que tem tudo para sobreviver à atual derrocada do bolsonarismo e continuar encarnando a ameaça de um estado policial na eleição presidencial de 2022.

Mas, colocado no finalzinho da 3ª e última parte da série, tal alerta corria o risco de passar despercebido, daí  este artigo complementar em que chamo a atenção especificamente para ele, começando por reproduzi-lo (em verde):

                                                                                                                                           .

Em 2010, as milícias já controlavam 41 comunidades (eufemismo de favelas) do Rio de Janeiro, segundo levantamento do Ministério Público Estadual. O número, claro, deve ter crescido desde então, ainda mais a partir de 2018, quando colocou um pé nas mais altas esferas governamentais…

Elas começaram vendendo proteção e hoje extorquem de várias outras maneiras os moradores das áreas sob seu controle, cobrando, p. ex., comissões sobre venda de botijões de gás, água, TV a cabo ilegal e transporte.

Estão também envolvidas na/no:

— grilagem de terras de reservas ambientais pertencentes à União;

— extração de pedra e saibro nessas áreas;

— venda das terras com registro legal;

— venda de material de construção;

— construção de imóveis;

— furto de petróleo cru que passa pelas tubulações da Petrobras após extração na costa do Rio de Janeiro;

— comercialização de mercadorias ilegais; e

— até no despejo ilegal e derrubada de imóveis de um condomínio para que nele pudessem instalar-se milicianos.

Ou seja, assim como as várias máfias italianas, as milícias passaram da extorsão camuflada em fornecimento de proteção para uma atuação bem mais ampla e diversificada, combinando negócios ilícitos e outros legais, amiúde recorrendo a pressões, intimidações e até violências para atingirem seus intentos nos dois casos, além de cada vez mais influírem nos três poderes da República e neles se infiltrarem. 

O imperativo de o Estado brasileiro combater decididamente esse tipo de organização criminosa salta aos olhos.

Por último, uma pergunta que não quer calar: por onde anda aquele juiz que, em 2004, escreveu uma razoável tese (acesse-a aqui) sobre a Operação Mãos Limpas (por ele apresentada como “uma das mais exitosas cruzadas judiciárias contra a corrupção política e administrativa” que “havia transformado a Itália em (…) uma democracia vendida”)?  Morreu?

Não, está bem vivo, mas Giovanni Falcone, se também o estivesse, decerto não se orgulharia desse pretenso discípulo.


Pois, ao integrar o governo Bolsonaro e até contribuir para a implementação de algumas das medidas presidenciais que claramente favoreciam as milícias, ele atuou não para evitar a atuação mafiosa, mas para alçá-la a um patamar mais elevado.

Se o Brasil se tornar efetivamente uma democracia vendida, parte da culpa, sem dúvida, lhe caberá.

Seu nome, todos já devem ter adivinhado, é Sergio Fernando Moro.  

.

Ou seja, as obsessivas lamentações a respeito do que Moro fez ou deixou de fazer com o Lula sensibilizam principalmente os contingentes que já não votariam nele de jeito nenhum.

Pode causar-lhe considerável dano, contudo, a constatação de que ele já em 2004 esforçava-se ao máximo para atrelar sua imagem à da Operação Mãos Limpas mas, ao participar do Governo Bolsonaro, envolveu-se com um presidente que desde sua exclusão do Exército vinha mantendo relações altamente comprometedoras com a organização criminosa brasileira cuja trajetória mais se assemelha à das várias máfias italianas. 

Tal duplicidade pode desmascará-lo aos olhos de muitos e muitos que acreditaram piamente nas lorotas por ele espalhadas desde quando ainda era um quase desconhecido precisando se promover.

Pior: Lula pode mesmo ser culpado por praticar ou fechar os olhos à corrupção política que marca toda a história da República brasileira, mas as milícias do Rio de Janeiro exploram as comunidades mais pobres e vulneráveis, barbarizam, torturam e matam.

Se Moro quisesse mesmo ser o Giovanni Falcone brasileiro, como tanto forçou a barra para fazer-nos crer, eram as milícias do Rio de Janeiro ele deveria combater em primeiro lugar, não Lula e o PT. 

O certo teria sido liderar cruzadas tanto contra a corrupção política quanto contra as máfias do Rio do Janeiro. Mas, ele priorizou o inimigo menos perigoso e jamais combateu as milícias com o rigor que se impunha (muito menos quando tinha o dever de fazê-lo, como ministro da Justiça). 

Isto precisa ser explicado àqueles eleitores que ainda acreditam na imagem fantasiosa que a mídia dele espalhou. 

Dois juízes empenhados em destruir as máfias italianas foram assassinados ao cumprirem fielmente seu dever. Moro pega carona no martírio deles, mas jamais correu verdadeiro perigo. (por Celso Lungaretti)

OBSERVAÇÃO: RECOMENDO FORTEMENTE A LEITURA DA SÉRIE Dois capitães entrelaçam as milícias do RJ com os torturadores da ditadura, QUE COMBINA RESGATE DA HISTÓRIA DOS ANOS DE CHUMBO COM MEU DEPOIMENTO PESSOAL SOBRE UM DOS PRINCIPAIS FORMATADORES DAS MILÍCIAS, O CAPITÃO GUIMARÃES. EIS OS LINKS:

— 1ª PARTE

— 2ª PARTE

— 3ª PARTE

A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL ESTÁ AUTORIZADA, DESDE QUE SEJA DADO O CRÉDITO AO AUTOR E À FONTE (BLOG NÁUFRAGO DA UTOPIA)

 

 

 

 




Celso Lungaretti: 'Como ficarão o Brasil e a esquerda após o bode ser retirado da sala'

Celso Lungaretti

Como ficarão o Brasil e a esquerda após o bode ser retirado da sala

Já dá para enxergarmos a luz no fim do túnel: a tentativa de imporem ao Brasil um retrocesso de séculos na marcha para a civilização esfarela a olhos vistos. 

 Não serão os mais predatórios dos capitalistas selvagens,  os mercadores da fé que trocaram a Bíblia pelo Evangelho da Prosperidade, os obscurantistas que ecoam os disparates de um astrólogo picareta,  os frutos tardios do tenentismo e do integralismo ou os milicianos homicidas que determinarão nosso futuro; somos nós, os decentes e civilizados, que o construiremos.
O quadro que se desenha é o seguinte: o Jair Bolsonaro, cuja total falta de condições psíquicas e intelectuais para o exercício do cargo que um destino insólito lhe jogou no colo está sendo escancarada pelas crises sanitária e econômica, vai se tornar cada vez mais errático, tempestuoso, destrutivo e autodestrutivo, até tornar imperativo o seu afastamento imediato.  
Isto tende a acontecer ainda em 2020, ascendendo então ao governo uma composição de forças políticas de centro-esquerda, centro e centro-direita. O pacto dos governadores contra o presidente negacionista já é um embrião desse arco de forças centrista.
E será dessa composição que vai sair o próximo presidente eleito. Por enquanto, quem desponta com mais força são o Rodrigo Maia, o Flávio Dino,  o João Dória e o Ciro Gomes. 

Uma incógnita é se o Sergio Moro vai entrar nesse balaio ou se tornará o líder da direita intransigente.

Outra, se o Lula conseguirá manter o PT aferrado ao populismo de esquerda que caducou na atual década ou o Fernando Haddad o conduzirá para a composição centrista. 

No primeiro caso, vai consumar sua trajetória para a irrelevância. No segundo, terá chance de sobreviver politicamente, mas não como força majoritária da esquerda; tal página da História já foi virada, embora a ficha demore a cair para alguns.

No cenário futuro que delineei, não vejo motivo para apoiar ninguém. Minhas simpatias pessoais, claro, iriam para o Flávio Dino e o Ciro Gomes. Mas, está claro para mim que não são os santos milagreiros capazes de tornar a democracia burguesa algo além do tapume que encobre a dominação do poder econômico.
Nossa prioridade absoluta é a depuração e reconstrução da esquerda, que precisa libertar-se das ilusões democrático-burguesas e, pouco a pouco, ir resgatando sua credibilidade e combatividade.
O norte da esquerda tem de ser uma atuação em escala nacional na defesa dos interesses dos explorados, participando intensamente de suas lutas cotidianas, de forma a ir acumulando forças até voltar a ser capaz de apresentar-se como alternativa de poder.
Colocar seus representantes em posições de destaque no Executivo e Legislativo é secundário, pode no máximo ter utilidade tática, pois se trata do que a esquerda vem fazendo desde o advento da Nova República sem conseguir realmente mudar o Brasil, que continua sendo um dos países mais desiguais do planeta e sempre tendente ao autoritarismo. 
As conquistas obtidas nos períodos em que os donos do PIB consentiram que a esquerda populista gerenciasse a dominação burguesa em troca de algumas migalhas do banquete dos poderosos não passaram de miragens: o poder de facto as revogou como quis e quando bem entendeu.

Então, seremos os piores cegos se continuarmos não querendo ver que nada de permanente obteremos em favor dos explorados atuando como coadjuvantes do reformismo e dos jogos de carta marcada eleitoreiros. Estaríamos apenas os coonestando.

 Temos de caminhar por nossas próprias pernas de novo, fixando como objetivo final a construção de uma sociedade que priorize o bem comum e a cooperação solidária entre os seres humanos para que todos obtenham seu quinhão das conquistas da civilização, podendo então usufruir da verdadeira liberdade (aquela que não é limitada pela insuficiência do necessário para uma sobrevivência digna).
Esta, claro, será uma longa caminhada. Mas, é melhor darmos logo o primeiro passo do que continuarmos patinando sem sair do lugar, como vimos fazendo desde 1985. (por Celso Lungaretti)