O leitor participa: a sorocabana Renata Rodrigues nos apresenta sua Tia Nena em: 'Dizia minha tia…' 10

Tia Nena (in memoriam)

“Fazer nada por opção é muito diferente de fazer nada por falta de opção. Quem foi criança antes da TV fechada e do controle remoto, do videogame, do tablete e celular sabe muito bem disso.”

 

Dizia minha tia, quando ficava à toa, que passou o dia “comprando bobo e vendendo pasmado”.

Fazer nada por opção é muito diferente de fazer nada por falta de opção.

Quem foi criança antes da TV fechada e do controle remoto, do videogame, do tablete e celular sabe muito bem disso.

As férias eram curtas, mas alguns dias eram intermináveis sem nada para fazer.

Uma vizinha um pouco mais velha que eu me contou sobre um dia assim em sua infância. Eram férias de verão e ela, com a irmã, estavam sentadas na sarjeta sem nenhuma vontade de fazer nada que havia para ser feito.

Tinham por volta de dez anos de idade e, se entrassem em casa, a mãe logo as escalaria para alguma tarefa abominável, como secar os pratos, guardar os calçados ou tirar o pó dos móveis.

A irmã riscava o chão com um palito de picolé quebrado quando teve uma ideia e a convidou para brincar de “pedir esmolas”.

Ela ficou irradiada com o convite e, na mesma hora, começou a se preparar para tal, soltando os cabelos presos, fazendo um pequeno rasgo na roupa e escondendo os chinelos no jardim. Sua irmã procurou onde molhar as mãos e, com a poeira do chão, sujou a si mesma de maneira cinematográfica. Em tom de segredo, combinaram como seria a brincadeira: iriam alguns quarteirões longe de casa e se revezariam na fala e na cara de choro, diriam que precisavam comprar remédio pro irmãozinho doente e assim evitariam de ganhar mantimentos e roupas.

Numa faísca de alegria, foram correndo em direção da primeira casa e ficaram eufóricas com duas moedas que receberam após representarem tão bem. E seguiram batendo palmas de casa em casa, de rua em rua, uma moeda aqui, uma nota ali, um cachorro barulhento, uma senhora chata, até ouvirem seus nomes aos berros numa voz bem conhecida e irritada.

Sem combinarem uma palavra e com os olhos em pânico, correram tudo que suas pernas podiam de volta a casa.

Claro que o palco onde estrelaram não era assim tão distante: apenas algumas ruas de casa. As pessoas não eram tão desconhecidas e seus disfarces um pouco amadores, o que fez a notícia chegar aos ouvidos da mãe ocupada com muita clareza.

Levaram uma surra ardida e  tiveram que devolver o total da coleta de casa em casa com a mãe a tiracolo e um pedido de desculpas vexaminoso.

Seu pai foi participado do ocorrido e lhes deu de castigo uma semana sem “pôr a cara na porta da rua”. Foram dormir mais cedo e ela jura ter ouvido o pai rir na cozinha sobre protestos ameaçadores da mãe. E a história virou lenda na família anos mais tarde, mas elas aprenderam a lição.

Quando o marasmo tomava conta de seus dias, a primeira que reclamava ouvia da outra: vá pedir esmolas!

Que nada, melhor mesmo era ficar comprando bobo e vendendo pasmado.

 

 




O leitor participa: Renata Rodrigues nos apresenta sua tia Nena em: ‘Dizia minha tia…’ 8

 Tia Nena

(…) Curiosa, esperou que a abrissem e, como os demais, pôde ver em seu conteúdo apenas uma lata um pouco maior que uma tradicional lata de pó Royal…

 

Dizia minha tia, do alto de sua sabedoria que “a ignorância é uma benção!”

Concordo de todas as maneiras e já vivi e ouvi situações onde era melhor não ter o conhecimento da causa.

Uma delas se passou com um amigo chamado Pascalle, mais velho que eu uns vinte anos,  descendente de italianos e que veio com os pais e os irmãos mais velhos para o Brasil nos anos 50.

Durante sua infância era comum receberem pacotes vindos da terra mãe com os mais diversos sortimentos: de brinquedos a remédios, alimentos e documentos. As remessas demoravam meses para chegar à sua casa, pois vinham de navio, ou por conhecidos que voltavam de viagem vez ou outra. Telefone era coisa de gente rica e o correio funcionava como a principal comunicação entre as partes da família, porque para um bom italiano todos são família: avós, tios, primos e até cunhados.

Um dia ao chegarem a casa, a vizinha lhes entregou uma caixa que o carteiro havia trazido pela manhã. Curiosa, esperou que a abrissem e, como os demais, pôde ver em seu conteúdo apenas uma lata um pouco maior que uma tradicional lata de pó Royal. Ao abrirem encontraram um pó assim, parecido com pimenta do reino. Seu pai mexeu a latinha e, soltando o conteúdo já compactado, molhou o dedo indicador na língua, molhou no pó e voltando o dedo à língua disse:

─ Parece condimento… tio Pepê deve estar vendendo a prezzo del’ouro na Toscana!

Apesar de família, seu pai se mordia pelo sucesso do cunhado nos negócios de gastronomia nessa cidade da Itália.

Procuraram por toda caixa e nenhuma identificação, rótulo ou bilhete explicando do que se tratava. Educadamente, deram um pouco da especiaria para a prestativa vizinha e seguiram com a vida, testando o pó “vindo de lá” em vários pratos preparados daquele dia em diante.

Mas, nada da iguaria dizer a que veio: nenhum sabor especial ao molho de tomate, ao recheio do ravioli ou tampouco à sopa de capeletti. E seu pai a reclamar da suposta fortuna do marido de sua irmã com algo tão insonso: era mesmo um impostore a ganhar a vida com a boa-fé dos outros.

Passado algum tempo a lata foi abandonada na dispensa com quase nada ao fundo e sua mãe decidiu não falar mais do assunto para o bem dos humores e estômagos de todos. Nem mesmo a vizinha tão prendada conseguiu fazer bom uso do presente e, quando ninguém mais se importava com isso, o carteiro deixou embaixo da porta de entrada um envelope todo amassado com um pequeno bilhete escrito em italiano e com data antiga que sua mãe leu em alto e mal português:

Querido irmão: com tristeza lhe envio parte das cinzas de nossa mãe, que faleceu no último domingo de Páscoa. Assim que a receber, por favor, mande rezar uma missa em sua memória. Com amor, Giordana!

Sim. A ignorância é uma benção, meu amigo poderia ter vivido em paz sem saber que tinha comido sua avó depois de morta!