Gonçalves Viana: 'Ave Maria no Morro'
“Herivelto Martins, que viveu de 1912 a 1992, foi um talentoso compositor, extraordinariamente versátil. Criou uma obra tão variada que parece ter sido composta por vários autores.”
Herivelto Martins, que viveu de 1912 a 1992, foi um talentoso compositor, extraordinariamente versátil. Criou uma obra tão variada que parece ter sido composta por vários autores.
Sua obra ia do samba-batuque dos terreiros (Praça Onze, A Lapa) à fossa dos sambas-canções eivados de conflitos conjugais (Bom Dia, Segredo, Caminhemos); à picardia do samba (Isaura, Odete); ao tango marginal (Carlos Gardel, Vermelho 27).
Herivelto falava quase todas as línguas musicais, da valsa (Timoneiro, Mamãe) à marchinha de tintura espanhola (Malaguenha); do samba-exaltação (A Bahia Te Espera), à rancheira (Gaúcho Velho) e à toada (Rancho da Serra); da marchinha (Minueto, Seu Condutor); à guarânia paraguaia, vertida para o português (Noites do Paraguai) e ao choroso samba-canção (Cabelos Brancos).
Não bastasse todo esse ecletismo, ousou compor um samba-canção com cadência de oratório (Ave Maria no Morro) com tal fidelidade, que o Cardeal Dom Sebastião Leme tentou impedir sua execução nas rádios, para evitar fumaças de heresia ou profanações dos ritos católicos.
Talvez, essa enorme variedade se deva à ajuda de parceiros assíduos, caso de David Nasser, Marino Pinto, Roberto Roberti e Benedito Lacerda.
E foi justamente com este último que ele protagonizou o seguinte fato:
Certa tarde, Herivelto disse a Benedito que desejava fazer uma música falando do entardecer no morro, de forma mais lírica, mais sentimental, sem pôr o Carnaval no meio. Nessa época, era costume das rádios tocar, às seis horas da tarde, músicas sacras, como a “Ave Maria” de Gounod ou de Schubert. Era bonito ver o entardecer chegando, o sol sumindo no horizonte, as luzes acendendo-se, e as rádios tocando aquela música suave, enquanto, na igrejinha da favela, no morro do Pinto, os moradores rezavam coletivamente uma ‘Ave Maria’, pedindo uma vida melhor, antes de se retirarem para os seus barracões.
Dessa visão, Herivelto escreveu os seguintes versos:
E quando o morro escurece,
Elevo a Deus uma prece
Aos poucos, foram surgindo outros versos, como “Sinfonia de pardais/ anunciando o anoitecer…” inspirado pela lembrança do barulho dos pardais, aninhando-se nas árvores da Praça Tiradentes, no final da tarde, onde ficava jogando bilhar.
Quando ele mostrou a Benedito os primeiros sons da música, esperando contar com ele para terminarem a canção, ouviu dele: – Oh, compadre! Isso é música de igreja, eu não entro nessa parceria nem a pau!
Herivelto, então, terminou a canção sozinho. Nessa altura da sua carreira, ele já tinha formado a dupla Preto e Branco, primeiramente com Francisco Sena e, depois, com Nilo Chagas.
Com o enorme sucesso da dupla, Herivelto trouxe Dalva de Oliveira – com quem estava vivendo – para ajudar nos vocais.
Dalva de Oliveira (Vicentina de Paula Oliveira) (1917-1972), a partir de 1937, passou a viver com Herivelto e a cantar e a gravar com a dupla. Mas, em um programa na Rádio Mayrink Veiga, o apresentador César Ladeira os anunciou como Dalva de Oliveira e a dupla Preto e Branco, um verdadeiro trio de ouro! A partir de então adotaram o nome Trio de Ouro.
Voltando à música de igreja, após a recusa de Benedito Lacerda em ajudar, Herivelto ficou decepcionado, mas não desanimado. Passado algum tempo, ele terminou e ensaiou a música com o Trio de Ouro, e resolveu mostrar novamente ao Benedito, agora completa e arranjada. Chegou à rádio e disse: – Faz um Fá Maior aí. Agora, um prelúdio, feito piano. Herivelto pegou o violão, Dalva entrou – Dalva com vinte e poucos anos e com sua voz maravilhosa em toda a sua plenitude – e a dupla dando suporte por baixo, Benedito ficou embasbacado e totalmente boquiaberto.
Gravada na Odeon, em 1942, Ave Maria no Morro, se constituiu num dos maiores sucessos da música popular brasileira, sendo exaustivamente gravada no Brasil. Praticamente todos os grandes cantores (as) e intérpretes nacionais gravaram Ave Maria no Morro, foi o caso de Ângela Maria, Elza Soares, Agnaldo Rayol, Nelson Gonçalves, Gal Costa, Caetano Veloso, João Gilberto, entre outros. Eduardo Araújo e Sylvinha gravaram uma belíssima versão country ou rock rural, que fez enorme sucesso. Houve até mesmo uma versão em esperanto.
Quando a música estourou, Benedito Lacerda, parceiro de tantas obras, logo gritou: “Ô! Herivelto, eu estou nessa parceria também, né!?” — “Não, Benedito, nesta você não está, esta é ‘música de igreja’, lembra?”
A exemplo do que ocorreu no Brasil, no exterior, também, grandes artistas gravaram-na em sua língua pátria ou, como fizeram alguns, em castelhano.
Em italiano temos: Andrea Bocelli, Zucchero, Luciano Pavarotti, etc. Em alemão, várias gravações: Monika Martini, Manuela, Goombay Dance, e outros. Em castelhano: Sarita Montiel, Mariachi Mencey Azteca, Los Tres Soles del Paraguay, e demais artistas.
Além dos poloneses: Czeslaw Wydrzy, Leszek Orkisz; dos belgas: Helmut Lotti, Violeta Villas; dos suecos: Gabriela Kozik, The Hootenanny Singers. Temos ainda gravações na Filipinas, Grécia e Holanda e assim por diante, mundo afora.
Certa vez, em 1994, eu estava assistindo, na TV, a uma apresentação da banda de heavy metal e hard rock, os Scorpions, no México, quando o vocalista anunciou ‘Ave Maria no Morro’, fiquei atento para ver como seria. Eles fizeram uma bela apresentação, mas cantaram em castelhano. Como eles são alemães, julguei que fossem cantá-la em alemão, pois existem muitas gravações em alemão.
Excepcionalmente, muito marcante para mim, foi a apresentação de uma jovem cantora alemã – jovem na época, 1964 – de codinome Manuela — cujo nome verdadeiro era Doris Inge Wegener, nascida em Berlin aos 18/08/1943. Na Rádio Piratininga havia um programa para brotos, comandado pelo disc-jockei Ferreira Martins que era apresentado das 15 às 16 horas, e que sempre tocava ‘Ave Maria no Morro’ na voz de Manuela. Essa música estava em um álbum que, por milagre, foi lançado no Brasil. Seu carro chefe era “Mama ich sag dir was” (Mamãe eu te diria algo). Eu não sosseguei enquanto não consegui o disco, até garimpando em São Paulo, pois em Sorocaba não chegava muita novidade. Esse disco foi lançado aqui, em 1964, pela Continental.
Acontece que no LP, todas as faixas traziam o nome da música em alemão e a tradução em português, mas justamente ‘Ave Maria no Morro’ estava só em português e, também, não constava o autor da versão. Então, eu queria saber o que dizia a versão, só muito tempo depois é que eu descobri que, na letra em alemão, é incrível, haviam mudado todo o enredo, assim como todo bom “versor”¹ o faz em qualquer língua do planeta.
Trata-se da história de um mendigo sentado em uma esquina qualquer do Rio de Janeiro. Ele apanha seu violão, dedilha uma melodia, começa a cantar uma canção, mas ninguém dá a mínima atenção, correndo apressados para os seus afazeres, deixando sua bandeja completamente vazia. Quando o mendigo já está sem esperanças, ele ouve o tilintar de duas moedas de ouro caindo na sua lata, ele olha para cima e vê uma senhora toda de branco, muito bonita se afastando… era a própria Nossa Senhora que o tinha socorrido!
Essa versão alemã ficou tão ou mais pungente que o original. Eu acho a interpretação de Manuela uma das melhores de todas as gravações já feitas desse clássico de Herivelto Martins, exceto a original do Trio de Ouro.
As várias versões que ouvi em castelhano parecem ter sido feitas a partir dessa versão germânica, pois o enredo é praticamente o mesmo. Ou pode ser vice-versa, já que não verifiquei as datas das versões.
Gonçalves Viana – viana.gaparecido@gmail.com
Ave Maria no Morro
Barracão de zinco sem telhado
Sem pintura lá no morro
Barracão é bangalô
Lá não existe felicidade de arranha-céu
Pois quem mora lá no morro
Já vive pertinho do céu
Tem alvorada, tem passarada, alvorecer
Sinfonia de pardais anunciando o anoitecer
E o morro inteiro
No fim do dia
Reza uma prece, Ave Maria
Ave Maria, Ave
E quando o morro escurece
Elevo a Deus uma prece
Ave Maria, Ave Maria
(Herivelto Martins)
(1) Versor – Neologismo sugerido pelo autor, significando aquele que faz versão.