Sob o cheiro do sabão e da terra

Clayton Alexandre Zocarato

Conto: ‘Sob o cheiro do sabão e da terra’

Clayton Alexandre Zocarato
Clayton A. Zocarato
Imagem criada por IA do Grok
Imagem criada por IA do Grok

No coração do interior paulista, onde o café crescia como mato e o tempo escorria devagar entre o tilintar das xícaras de esmalte e o barulho seco do pilão, vivia-se uma velhice que não pedia licença para chegar. 

Ela vinha aos poucos, silenciosa, dobrando as costas, rareando os cabelos, afiando os ossos como se o corpo quisesse voltar ao pó antes da hora.

Era assim com dona Giuseppina, a nonna, que um dia fora moça de tranças longas, vinda da Lombardia com o pai e as irmãs, fugida da fome e das guerras pequenas. 

Agora, velha, tornara-se parte da paisagem — mais antiga que a casa de taipa, mais resistente que o tronco do cafeeiro.

Os banhos de Giuseppina eram um ritual. 

Naquela época, início dos anos 1940, não havia encanamento nem banheiro no sentido moderno; o banho era tomado no balde de ferro, sob o sol do terreiro, ou na cozinha, onde o calor do fogão a lenha aquecia a água em tachos fumegantes. 

A neta, Lina, era quem ajudava. 

Com o cuidado das mãos novas, ela despejava a água quente nas costas da avó, e o vapor subia como se quisesse carregar junto o cansaço dos anos.

Giuseppina falava pouco durante o banho.

Ficava ali, sentada no banquinho de madeira, os joelhos salientes, o corpo cheio de marcas — cada mancha, uma história; cada veia, um fio de memória. 

A pele, enrugada e fina, lembrava o papel de pão que embrulhava o café moído para vender na feira. 

E, enquanto Lina ensaboava as pernas da avó com o sabão de cinza feito em casa, o cheiro forte de soda e gordura misturava-se ao aroma doce do café secando no terreiro, compondo uma sinfonia que era, ao mesmo tempo, doméstica e sagrada.

A casa era simples, mas cheia de sinais de fartura de outros tempos: o relógio parado na parede, as imagens de santos trazidas da Itália, o baú de madeira escura onde se guardavam lençóis bordados e cartas amareladas.

Lá fora, o terreiro se estendia em vermelho e verde — grãos maduros e outros ainda verdes, secando sob o sol do interior. 

O som das peneiras, o rolar dos grãos, as vozes dos colonos italianos e caboclos misturados faziam da fazenda um pedaço de mundo.

Aos domingos, depois da missa, as mulheres se reuniam na cozinha grande para preparar o almoço: macarrão feito à mão, frango ensopado, pão de milho e vinho ralo. Era tradição — o domingo não existia sem o cheiro do molho e o barulho das panelas. 

E Giuseppina, mesmo já cansada, fazia questão de comandar tudo: dizia quantos ovos iam na massa, a hora certa de escaldar o frango, e, no fim, abençoava a mesa com um gesto lento, como quem reza para que o tempo não leve embora as pequenas certezas da vida.

Mas o corpo dela, teimoso, começava a pedir descanso. 

As pernas inchavam, o olhar se perdia.

Às vezes, falava em italiano, lembrando da neve que cobria os campos da infância, das oliveiras e das procissões com velas.

Ninguém mais entendia bem o que ela dizia — o idioma da memória é sempre outro, incompleto e vago. 

Lina, mesmo sem compreender as palavras, respondia com carinho, secando-lhe o cabelo com a toalha grossa e dizendo que logo o verão passaria, que o calor cansava a todos.

O tempo, porém, não passava para Giuseppina. 

Ele se acumulava, pesado, no corpo e nas lembranças.

Até que, numa manhã sem vento, ela não quis mais o banho. Disse apenas:

— Hoje, não precisa, Lina. A água pode esperar.

Foi o presságio.

Naquela noite, o corpo velho de Giuseppina, cansado de resistir, adormeceu para não acordar mais. 

A notícia correu pelas colônias, espalhando-se como cheiro de café torrado: “A nonna Giuseppina se foi.”

Mas, ali, não havia funerária, nem caixão comprado.

No interior de São Paulo daquele tempo, a morte ainda era um assunto doméstico.

O corpo ficava na sala, coberto por um lençol branco bordado por ela mesma. As mulheres preparavam o defunto com o mesmo zelo com que preparavam o pão: lavavam-no com água morna, penteavam-lhe os cabelos, vestiam-no com a melhor roupa. 

Lina, com as mãos trêmulas, repetiu o gesto dos banhos, só que agora o corpo não respondia.

Enxugou o rosto da avó com o mesmo pano de outrora, como se a limpeza pudesse manter viva a lembrança do calor que ali existira.

Os homens, do lado de fora, construíam o caixão de tábuas de cedro.

Pregos, martelo, vela — tudo improvisado, mas feito com uma devoção silenciosa. 

O velório durou a noite inteira.

Rezar o terço era tradição, e as vozes se erguiam compassadas, mesclando português arrastado e italiano antigo.

O padre só chegaria dois dias depois, então coube às mulheres cuidar da alma da falecida, entre cânticos, lamúrias e o cheiro doce das flores colhidas no quintal.

Quando o sol nasceu, o enterro seguiu a pé até o pequeno cemitério, atrás da igreja, ladeado de eucaliptos altos. 

Os homens carregavam o caixão nos ombros; as mulheres, de preto, vinham atrás, rezando. 

A terra fofa do interior paulista abriu-se para receber mais um corpo, mais uma história.

Não havia mármore, apenas uma cruz de madeira com o nome e o ano: Giuseppina Bianchi, 1867 – 1944.

Lina ficou por último. 

Levou consigo a bacia de ferro usada nos banhos e um pedaço do sabão de cinza, agora endurecido. 

Colocou-os ao lado da cruz e murmurou, quase em segredo:

— Pra senhora continuar limpinha, nonna.

O vento passou entre os eucaliptos, levando consigo o cheiro da terra molhada e do café maduro.

O tempo seguiu, como sempre faz, cobrindo de esquecimento o que não se pode guardar inteiro.

Mas, nas manhãs seguintes, quando Lina aquecia a água no fogão e via o vapor subir, jurava sentir, por um instante, o mesmo cheiro de sabão e de pele antiga, o mesmo silêncio do corpo que um dia ensinou que a velhice não é o fim — é apenas o começo do retorno à terra.

E assim, entre o cheiro do sabão e da terra, o ciclo se completava: a água lavava, o fogo aquecia, e a terra guardava.

Era o jeito das coisas naquele tempo — simples, duro e cheio de dignidade.

Clayton alexandre Zocarato

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Sobre envelhecer

COLUNA PSICANÁLISE E COTIDIANO

Bruna Rosalem: Artigo ‘Sobre envelhecer’

Bruna Rosalem
Bruna Rosalem

É inevitável: se tivermos sorte, um dia envelheceremos. Apesar de querermos associar a velhice com a chegada mais próxima da morte, isto nada quer dizer, pois o final da vida pode vir muito antes, seja na infância, seja na juventude. De qualquer maneira, o fim virá sem aviso prévio para todos nós.

O fato é que em nossa sociedade das aparências, ninguém quer falar do velho ou da velha. Chovem as ofertas dos métodos rejuvenescedores, das plásticas, das aplicações do famoso ácido hialurônico (o conhecido botox), das lipoaspirações, das harmonizações faciais, e muitos outros procedimentos que prometem uma repaginada naquele velho corpo ou naquele rosto cansado, no alcance de uma nova imagem para ser admirada e contemplada diante do espelho.

Quanto mais distante dos sinais do envelhecimento, mais sucesso, maior felicidade. Como se fosse possível lutar contra o tempo que nos lembra a cada ano nossa envelhescência.

Apesar de conscientes que um dia deixaremos este mundo, inconscientemente nosso psiquismo não opera sob uma lógica cronológica, ele é atemporal e obedece a si mesmo. Nele, não existe tempo antes, durante, depois.

O inconsciente não envelhece nunca e ainda faz questão de pulsar reminiscências da infância em encenações, falas coerentes e incoerentes, atuações, repetições. Ser um sujeito velho nem sempre significa amadurecer. Há idosos em corpos jovens e jovens em corpos velhos.

Corpo e psiquismo não se acompanham mutuamente. Podem ser muito discrepantes, por sinal. Para muitos, olhar-se passa a ser um exercício penoso ao se deparar com os rastros dos anos que se passaram marcados por inúmeras perdas de entes queridos e vivência do luto, traumas muitas vezes não tratados, não escutados, esquecimentos, doenças superadas ou em tratamento, a eventualidade de ter que viver em sua própria companhia, abrindo as portas para a solitude.

Ainda há que se lidar com as marcas deixadas no real do corpo, alterações estéticas inerentes, ainda que negadas. Rugas e excesso de verrugas, expressões na pele mais marcantes, manchas, queda de cabelos, dores diversas, movimentos mais difíceis de realizar e menor mobilidade.

Vista cansada, uso de óculos para ver de longe ou de perto. Uso frequente de colírio, pois o olho já não consegue se lubrificar sozinho. Às vezes, uma bengala ajuda a se sustentar durante uma simples caminhada, mas que exige um esforço tremendo.

Cremes com colágeno, reforço de vitaminas, alimentação mais restrita, cálcio para os ossos que estralam o tempo todo. Coluna torta. Atividade sexual mais espaçada, vagarosa. Menos horas de sono. Mais tempo livre.

Mas que tempo? Este elemento imaterial, intocável, quase como uma entidade, mas que faz presença constante. Como diria Cazuza: “O tempo não para.” Quando nos damos conta, já se foram vinte, trinta, quarenta anos. E como disse no começo, com sorte, ainda estamos vivos. Porém é preciso sustentar um corpo em processo de degenerescência e dos possíveis enfraquecimentos dos laços sociais e afetivos.

Na sociedade do espetáculo, ser velho é estar à margem. Com frequência, no lugar dos esquecidos. Do abandono, do ostracismo, do ultrapassado. O velho não pode curtir a vida porque já é tarde demais para fazer alguma coisa e muito menos começar algo novo.

Mesmo que ainda “há tanta vida lá fora”, como diria Lulu Santos. Sorte ou azar, cada um que pense como quiser, o psiquismo não se importa quantos aniversários já completamos. Ele continuará pulsando e desejando. E desejar é sinal de vida!

Se a vida tem algum sentido, achemos o nosso. Do nascimento à morte, é neste ínterim sem adivinhações ou bola de cristal que seguiremos. O sentido que realmente importa é aquele que cada sujeito dá para si em cada breve momento da sua passagem por este planeta.

Aquilo que semeia, colhe e deixa para os demais. A cada crise, um aprendizado pode ser elaborado e novas maneiras, arranjos e identidades podem ser construídas para ressignificar as experiências. Assim não sobrará espaço para adoecimentos físicos, psíquicos, pensamentos e ideias depressoras.

Nas belas palavras de Guimarães Rosa, “penso que chega um momento na vida da gente, em que o único dever é lutar ferozmente para introduzir no tempo de cada dia, o máximo de ‘eternidade’”. Então, procure criar e recriar sem limites. Ame e permita ser amado. Afinal, cada um envelhece à sua maneira.

Guimarães Rosa pode estar nos dizendo que ter o coração batendo e estar respirando nem sempre são sinais de estar vivo, mas que cada instante é preciso significar a vida, ‘eternizar’ as vivências, sentir os quereres, os propósitos, os anseios…

Te convido a refletir sobre as possibilidades de enxergar a vida na velhice, sem medo. Apenas mova-se e atravesse este fantasma.

Bruna Rosalem

Contatos com a autora

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Mais uma importante colaboradora do ROL: Mara Branco

Artigo: ‘A FEMINIZAÇÃO DA VELHICE’, por Mara Branco

Mara BrancoA nossa nova colaboradora é gaucha, mora em Sorocaba e integra os principais grupos culturais da Região.  Estará presente na 5a. Noite Lítero-Musical, dia 19, no salão do Lions, em Itapetininga.

Mara Branco, cinquenta e oito anos, três filhas e quatro netos. Diretora de Escola da Prefeitura Municipal de Sorocaba (SP). Professora, nos cursos de Pós-Graduação na Faculdade de Conchas (SP). Pedagoga, Mestranda em Educação, Master of Business Administration em Gestão Escolar, Psicopedagoga, Especialista em Direito Educacional e Alfabetização. Trabalhos publicados: “Memorial da caminhada epistemológica na construção do meu ideário enquanto gestora escolar”; “Alfabetização através da Arte”; Programa Nacional do Livro Didático – Aspectos Positivos e Negativos”; “Distúrbios de Aprendizagem – Hiperatividade: Como identificar se nosso aluno está realmente no mundo da lua?” e “Letramento”. Na poesia ensaiando alguns rabiscos no mundo da paixão, dos sonhos, num mundo bucólico, delicioso, encantador e emocionante, um brincar com palavras num bailado de sílabas. Como cita nosso querido Augusto Cury: – “… ser educador é ser poeta do amor…”.

 

Nessa semana, que comemoramos o Dia Internacional das Mulheres, vários assuntos são abordados, principalmente a luta por um lugar ao sol.

Nossa história foi escrita principalmente por homens e sobre as atividades dos homens na esfera pública — guerra, política, diplomacia e administração.

Nós mulheres somos geralmente excluídas e, quando indicadas, somos geralmente retratadas em papéis de gênero estereotipados, como esposas, mães, filhas e amantes.

E o que falar da mulher da terceira idade? Mulheres que nasceram na metade do século XX. Mulheres sofridas e marcadas pela discriminação, pelo sexismo. Estatisticamente sabemos que existe uma maior proporção de mulheres do que homens com idade avançada.

Os problemas e mudanças que acompanham essa etapa de vida são predominantemente femininos, pelo que se pode dizer que a velhice se feminizou.

As mulheres são discriminadas por preconceitos sexistas e gerofóbicos: não só por serem mulheres, mas também por serem velhas e nos trazem além de discriminações como gerofobia, pobreza e solidão, mudanças e perdas físicas e sociais.

A gerofobia é o termo que se usa para descrever os preconceitos e estereótipos, em relação às pessoas idosas, fundados unicamente em sua idade.

O termo sexismo é usado de maneira geral, é usado como exclusão ou rebaixamento do gênero feminino.

12, segundo o IBGE a terceira idade era constituída de 23 milhões de idosos, onde as mulheres representavam 55% e sabemos que esse crescimento e verticalizado. Ainda segundo estatísticas, as mulheres vivemos 9 anos a mais que os homens. O sexismo torna-se um fator predominante num mundo que valoriza a beleza física, a sexualidade, a juventude e a produtividade nos colocam numa posição de fragilidade e vulnerabilidade, principalmente no mercado de trabalho, onde homens e jovens são mais valorizados, tendo como consequência a pauperização da velhice, problemas de saúde e consequentemente o abandono.

A etapa do ninho vazio, quando os filhos ou filhas saem de casa, é um período em que muitas mulheres experimentam sentimentos de depressão e de perda, relacionados ao crescimento de seus. Para a mulher, que dedicou sua vida e suas energias para sua família e na criação dos filhos, necessitar redirecioná-la torna-se ameaçador. Quando sua tarefa principal de mãe e provedora desaparece, isso pode representar, para muitas mulheres, um sentimento de perda, particularmente quando a criação dos filhos foi a tarefa principal e não foi planejado o que fazer depois.

A mesma sociedade que cultua o jovem e enfatiza a importância do homem faz com que se preste pouca atenção à mulher idosa. Tendo em vista que a velhice é um assunto de mulheres.

Não resta dúvida de que a sociedade atual se depara com um segmento populacional que está aumentando e que, por sua vez, é vulnerável. Isso tem sérias implicações para os profissionais de ajuda e para os formuladores de política pública. As políticas sociais devem voltar-se para garantir uma renda mínima para a subsistência econômica das mulheres de idade avançada. O recebimento de um rendimento nessa idade deve ser um direito e não uma recompensa por ter trabalhado fora de casa e ter contribuído para um sistema de aposentadoria. Deve-se criar um sistema de saúde universal que garanta serviços médicos a todas as mulheres idosas independente de seus rendimentos. Deve-se oportunizar emprego, em particular a estas donas de casa que têm sido marginalizadas, e programas educacionais para viúvas.

Sugere-se a criação de programas destinados a prevenir a dependência. Nesse sentido, cabe lembrar que a família tem suprido o vazio que os programas de governo não atendem. Mas nem sempre existe uma família disponível, pois muitas mulheres idosas nunca tiveram filhos ou nunca se casaram e seu sistema de apoio familiar é quase inexistente.

Resumindo, os assuntos como solidão, pobreza, mudanças sociais e saúde dentre outros, são realidades e mitos na vidas de muitas mulheres idosas que vivem em uma sociedade sexista e gerofóbica.

É responsabilidade dos profissionais da saúde e da gerontologia estarem alertas às situações dessas mulheres na sociedade atual, de forma que possam estar preparados para escutar seus pedidos e legitimar e corrigir a realidade das injustiças e tensões na vida das mesmas

Aqui, deixo muito claro que a terceira idade não precisa de bolsa velhice, mas sim de políticas púbicas que façam cumprir a legislação vigente.

Quero ainda citar um termo recente, chamado “envelhescência”. É a fase situada entre a maturidade e a velhice, situa-se na faixa etária dos 55 aos 70 anos.

A envelhescência nada mais é que uma preparação para entrar na velhice, assim com a adolescência é uma preparação para a maturidade.

Deixo aqui um poema de reflexão…

ENVELHESCENCIA

Terceira idade

Melhor idade

Última idade

O tempo passou

E aqui chegamos

Sofridos

Calejados

Amados ou

Desprezados

Alguns sozinhos

Outros acompanhados

A juventude foi ficando a distância

Deixando a lembrança

Deixando a saudade

Saudade da vida

Saudade de outra idade

 

Por: Mara Branco