Último Tango em Paris

CINEMA EM TELA

Marcus Hemerly: ‘Último Tango em Paris:
Uma jornada de escapismo’

Cinema em Tela - Último Tango em Paris: Uma jornada de escapismo
Cinema em Tela – Último Tango em Paris: Uma jornada de escapismo

Quando Marlon brando faleceu em 2004, muitos cineastas, críticos e profissionais de cinema manifestaram suas lembranças associadas à obra daquele que ainda é considerado o maior ator de todos os tempos. Filmes marcantes como ‘O pecado de todos nós’ e ‘O poderoso chefão’ foram citados, rememorando atuações icônicas e roteiros envolventes. E dentre eles, Arnaldo Jabor de maneira pertinente, lembrou-se da cena de ‘Último tango em Paris (1972), na qual o personagem de Brando traça um diálogo, em verdade, verte uma despedida catártica tom monologal com a esposa morta. A expressão aparentemente insensível, petrificada, tal como o cadáver disposto entre flores e preparado em necromaquiagem.

No entanto, as nuances emotivas pontuadas por extremos são uma sinfonia orquestrada na face de um mestre; sofrendo e odiando-a por ter fenecido. Por certo, o filme não é lembrado apenas por esta passagem, ou pelas cenas de sexo que levaram a boicotes, indiciamentos criminais e censura, ao mesmo tempo em que despontou como sucesso de público e crítica.

Na trama, em uma típica tarde nublada parisiense, os contornos gris unem os caminhos de Paul e Jeanne. Interessados em alugar um apartamento, ele; tentando fugir de sua realidade, ou, de seu despedaçar; ela, de certa forma insegura diante do seu casamento iminente, entrega-se à proposta de paul: encontrarem-se naquele apartamento, que será, a partir de então, seu mundo. Sem nomes, sem acontecimentos de fora, apenas compartilhando momentos ou um silêncio cúmplice.

Naquela cápsula de tijolos, mesmo sem trocar informações sobre o seu passado, se despem emotiva e fisicamente um ao outro. Desde incursões sexuais, até violências psíquicas e físicas, o inesperado casal agregado de forma clandestina pelo destino aos poucos embarca numa viagem sem rumo ou previsão de chegada, de mãos dadas e olhos cerrados pela nau dos insensatos (ou corajosos). 

O filme é notório por várias polêmicas, desde a maneira peculiar de filmar de Bertolucci, consagrado por títulos como ‘1900’ e ‘Cinema Paradiso’, até a famosa cena da manteiga, que por muitos anos supostamente teria sido verdadeira, na qual a personagem de Marlon Brando simula sodomia com Maria Schneider.

De fato, ainda que não tenha havido intercurso efetivo, soube-se que a cena e suas implicações não haviam sido previamente acertadas, de modo que a reação, surpresa e violação quase literal de Schneider, lamentosamente, são reais. Agressividade humana, covardia, impetuosidade e sentimentos conflitantes são explorados de modo intenso a fim de indicar o grau de egoísmo como mecanismo de defesa, normalmente quando contraposto a uma situação de trauma. 

De um lado, o viúvo rude e de sentimentos intransponíveis não entende a razão do suicídio de sua esposa, mola propulsora a seu rompante de autopunição e revolta dirigida a seu derredor, fetichizada em sua nova companhia, Jeanne. De outro giro, a jovem que tenta se agarrar a um resquício de inocência, vê na figura quase paternal, ao menos aparentemente, uma possibilidade de experimentação. Aos poucos, os jogos conscientes e inconscientes causam sentimentos de afago e sevicia quase concomitantes. 

Em 1972, data da première da produção, é possível entender o burburinho causado pelas cenas picantes entre Brando e Schneider. À época, os controversos ‘Calígula’ e ‘Império dos Sentidos’, primeiros filmes não designados ao circuito pornográfico a exibirem cenas explícitas ainda não haviam sido produzidos, e mesmo posteriormente inseridos no circuito de cinema de arte e composição de elenco consagrado, despertariam grande interesse de público.

 O mundo ainda flutuava entre o cinema exploitation de extremos gráficos pontuais e o florescer de comédias, bem como policiais com temática erótica estadunidense, a partir da relativa liberalidade da era pós Código Heys, que regulamentava o conteúdo das atrações americanas. Ainda que a sexualidade na sétima arte remonte, quase que de forma paralela à invenção do cinetoscópio, lembremos as seletas stag parties do início do século 20, a questão ainda era um tabu nos anos 70. E, quem sabe, ainda o é nos dias de hoje.

A famosa crítica de cinema novaiorquina Pauline Kael, chegou a classificar O último tango… como o mais poderoso filme erótico já feito, dentre outros encômios em sua introdução à edição comentada do roteiro, posteriormente novelizado pelo autor Robert Alley. Trata-se de um romance bem escrito e relativamente fiel ao material original, alterando apenas algumas análises quanto às motivações dos personagens e estendendo ou omitindo pequenas sequências. 

Passadas cinco décadas de sua estreia na noite de encerramento do New York Film Festival, em 14 de outubro de 1972, o filme permanece forte, ainda que não tanto pelas polêmicas, que ainda reverberam, mas pela qualidade interpretativa e coragem do roteiro assinado por Bertolucci e Franco Arcalli. Num misto de desvelar voluntário de fantasias, infligir de dor – a si, ou a outrem – como forma de escapada da realidade, as nuances psíquicas cotejam uma moldura sofistica à história. Se o poder de chocar é facilmente levado a efeito, o fascínio decorrente certamente demanda maiores atrativos, e isso é o que vemos a cada revisão da obra.

Marcus Hemerly

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Insólita – Museu & Antiquário  

Marcus Hemerly

‘Insólita – Museu & Antiquário –
O capítulo final de uma galeria dos horrores (e encantos)’

Marcus Hemerly
Marcus Hemerly
Vitto Graziano. Crédito da foto: Luva Editora
Crédito da foto: Luva Editora

No cenário literário mundial, as antologias, coletâneas de trabalhos coletivos, seja em desdobramentos poéticos ou em prosa, vêm servindo de lastro ao surgimento de novos talentos e alcance de público mais abrangente. De forma recorrente, as publicações em participação conjunta se desvelam tanto em formato de revistas, digital ou física, assim como em livros apetecíveis aos olhos, pela leitura e qualidade gráfica, e ao tato. Certamente, o prazer do contato físico com o livro jamais será relegado. Inclusive, as antigas revistas de mistério, não raro, são lembradas com aconchegante sentimento saudosista, ao passo que serviram de inspiração a subgêneros de suspense extremamente populares aos amantes dos sustos e calafrios. 

Inolvidável lembrar da celebrada Ellery Queen’s Mystery Magazine, intitulada a partir do pseudônimo criado pelos autores Frederic Dannay e Manfred B. Lee desde os anos vinte, nos Estados Unidos, especializada em ficção de mistério e crime. No plano europeu, destacaram-se as tradicionais Mondadori, revistas pulp italianas com primórdios ainda na era fascista, posteriormente migrando de formato para os romances policiais e cinema. Inclusive, delineando as feições fundamentais do subgênero conhecido por Giallo, (em italiano, amarelo e coloração das revistas) e o Poliziotteschi.

A par desse cenário, atualmente, o universo da produção artística conta com imprescindível instrumento de financiamento coletivo, denominado Catarse, que vem propiciando o deslanchar de vários projetos que outrora permaneceriam ‘engavetados’. Nessa modalidade de aquisição, apoiador compra o livro, revista ou mídia, antecipadamente, e a recebe após a ultimação das fases de editoração. Caso o projeto não alcance a meta, ao apoiador é estornado o montante. Sempre destacando a força do gênero policial, mistério, ficção de crime e outras derivações, o Brasil frequentemente renova sua safra de autores trazendo à baila textos de peculiaridades criativas que saem da vala comum, num ousar atrativo aos amantes dos quebra-cabeças e enredos de fantasia, horror e mistério. 

Após o sucesso das campanhas O Melhor do Crime Nacional V.2 e Contos do Boca do Inferno, a Luva Editora traz uma nova proposta neste volume final da série Insólita Museu & Antiquário. A fachada diz: ‘Insólita – Museu e Antiquário’. Um local em que se pode sentir o cheiro do tempo, repleto de objetos peculiares. Como você nunca viu esse museu antes? Todos andam dizendo que ele sempre esteve ali.

Mas há algo estranho nos exemplares expostos nesse lugar. Uma cadeira de balanço, uma máscara prateada, um amuleto que parece ser a pata seca de um macaco… E você se lembra de já ter lido contos clássicos de terror sobre cada um deles?! A grande pergunta é: como podem todos eles estarem concentrados nesse museu? Que lugar é esse e que tipo de infortúnio os outros artefatos do antiquário podem causar? Esse último livro da série Insólita te convida a, dessa vez, entrar no museu mais assombrado do mundo e escolher, por conta própria, qual objeto vai te assombrar.

Os três primeiros volumes do Insólita Museu & Antiquário trouxeram traduções de contos essenciais para o desenvolvimento de autores de Terror/Horror, explorando objetos amaldiçoados que marcaram a literatura:  A Pata do Macaco – W.W. Jacobs; A Máscara de Prata – Hugh Walpole e A Cadeira de Balanço – Charlotte Perkins. Agora, no volume final, 21 autores – entre destaques das edições anteriores, organizadores e convidados – expandem ainda mais os limites do sobrenatural. Cada um explora um objeto amaldiçoado de sua escolha, trazendo histórias ainda mais sombrias e perturbadoras. O projeto promovido pela Luva Editora, com organização das autoras e antologistas Fernanda Braite e Mizaki – O Narrador, ainda conta com a participação especial do premiado escritor Oscar Nestarez.

Trabalhando com a revelação de autores brasileiros, a casa editorial se especializou em campanhas dos gêneros Terror e Policial por meio de dezenas de antologias, entre elas os sucessos: O Melhor do Crime Nacional V.2, Os Contos do Boca do Inferno, Urban, Terrores Latinos, Terrores Asiáticos (em parceria com a Laboralivros) e as duas últimas edições de Insólita Museu e Antiquário (A Máscara de Prata e A Cadeira de Balanço).

Gosta da literatura brasileira e prestigia o autor nacional? Compartilhe com os amigos e convide a conhecer o projeto. Ainda há tempo de adquirir seu exemplar! O terceiro volume independe dos antecessores, mas aos interessados, existem combos com promoções dos livros anteriores, além de recompensas especiais, além de surpresas vinculadas a meta estenda. 

Apoie no link: https://www.catarse.me/insolitafinal

Para melhor conhecer a campanha e a editora que sempre protagoniza antologias diferenciadas, seu Editor-Chefe e escritor, VITTO GRAZIANO, nos conta um pouco sobre o processo de editoração. 

Vitto Graziano. Crédito da foto: Luva Editora

1) Conte um pouco de como foi sua trajetória no universo editorial, na condição de autor, até a criação da Luva Editora.

A trajetória da Luva eu classificaria como tudo, menos convencional. Fui um leitor tardio, ainda que tenha crescido numa casa onde minha mãe era formada em Letras. Só fui me interessar de verdade por leitura aos 18 anos, quando percebi que talvez não tivesse o talento necessário para o desenho — minha grande paixão até então. Pode parecer estranho, mas foi justamente a frustração com os traços que me levou às palavras. Achei que escrever seria mais fácil. Não foi. Descobri rapidamente que também não conseguia produzir nada minimamente satisfatório. Mas desse engano — ou melhor, dessa ignorância — nasceu um prazer até então desconhecido. Escrever passou a me encantar. Era dinâmico, me dava liberdade criativa, e ao mesmo tempo me desafiava, principalmente por não poder mais contar com o apoio da imagem para me expressar.

Então veio o caminho óbvio: quer escrever bem? Precisa ler bem. E assim começou minha saga devoradora de livros — risos.

Anos depois, resolvi lançar meu primeiro livro na internet. Tive apenas uma leitora fiel. Nem minha mãe conseguiu se interessar pela violência dos meus textos. Mas havia a Rosa — minha ‘madrinha portuguesa’, como gosto de chamá-la. Apesar das barreiras linguísticas, toda semana ela me pedia novos capítulos no Wattpad. Foi com esse apoio que finalizei meu primeiro livro, e, com a ajuda dela, consegui fazer a primeira tiragem de 100 exemplares.

Na mesma época, fiz uma permuta com o revisor de uma grande agência de publicidade do Rio. Eu cuidaria da arte do livro dele, e ele faria a revisão do meu. Juntos, criamos um selo fictício para dar um ar mais profissional ao projeto. O resultado ficou tão bom que começaram a me perguntar de onde era essa tal de Luva e quanto ela cobrava para fazer livros. O lançamento foi um sucesso inesperado — e, assim que recebi os valores, fiz questão de devolvê-los. Mas a querida Rosa não aceitou. Pediu que eu repassasse adiante. Dessa atitude generosa, além da Luva, nascia também a Incubadora de Sonhos.

Crédito da foto: Luva Editora
Crédito da foto: Luva Editora

2) Encontra-se em Campanha no Catarse o volume final de uma série de antologias denominada ‘Insólita – Museu e Antiquário’, de onde partiu a ideia para o projeto? Dentre as diversas coletâneas lançadas pela editora, existe alguma que lhe dá orgulho especial?

Insólita foi nossa primeira série de real sucesso. A ideia surgiu de uma dificuldade pessoal: sempre tive certa resistência com leituras em língua estrangeira. Apesar de me virar razoavelmente bem com o inglês, sentia falta de ter acesso a textos clássicos traduzidos com qualidade e proximidade. Quis então trazer essas obras fundamentais para os leitores brasileiros — especialmente para os autores iniciantes. Afinal, só se escreve bem se houver boas leituras e boas referências.

Somei esse objetivo à ideia de um antiquário que vendesse objetos com propriedades milagrosas, mas que exigissem alguma contrapartida. Foi assim que A Pata do Macaco, de Jacobs, se tornou o primeiro item da coleção. Depois, por sugestão da Júlia do Passo Ramalho — que coorganizou os três primeiros volumes —, trouxemos A Máscara de Prata, do Walpole. Por fim, A Cadeira de Balanço, da Charlotte Perkins Gilman, foi a escolha da Úrsula Antunes, coorganizadora dos volumes 2 e 3.

Hoje temos quatro volumes (incluindo o final). Embora tenha orgulho de todos, esse último tem um sabor especial: abrimos as portas para que os autores criassem objetos próprios, sem o limitador de um texto-base. O resultado tem sido uma explosão de criatividade — e isso me deixa particularmente contente.

3)  Atualmente, quais são os maiores desafios para   finalizar um projeto editorial?  Nos conte um pouco sobre as fases de confecção de antologias e projetos solo.

O maior desafio, sem dúvida, é o material humano. Um bom autor, para mim, é antes de tudo um bom leitor. É alguém humilde, que reconhece estar em constante aprendizado. A leitura — tanto de clássicos quanto de contemporâneos — é essencial para entender os caminhos que se quer trilhar dentro da literatura.

Superada essa etapa — que já é um filtro importante —, entramos na questão dos recursos. Publicar literatura de gênero no Brasil, seja com apoio da editora, do autor ou por meio de financiamento coletivo, é sempre uma empreitada difícil. Vivemos em um país onde menos de 30% da população leu um livro inteiro no último ano. E, mesmo entre esses leitores, os gêneros mais consumidos são o religioso e o de autoajuda — amplamente promovidos por grandes conglomerados. A ficção, por sua vez, muitas vezes acaba relegada a uma bolha que se retroalimenta.

Mas foi dentro dessa bolha que a Luva nasceu, e é nela que continuo existindo como autor e editor. Por isso, sou grato — mesmo sabendo que, a cada ano, a competitividade cresce e o espaço nas plataformas de financiamento coletivo diminui. Essas plataformas, como qualquer empresa, naturalmente destacam o que traz mais público e retorno financeiro. Não as julgo por isso — é a lógica do mercado. Mas essa realidade nos impõe o desafio de seguir insistindo e inovando.

Quanto à confecção em si, como comentei anteriormente, tudo começa com a escolha de um tema-base que consiga atrair tanto autores quanto leitores. Antologias mais amplas, sem temas rígidos — como O Melhor do Crime Nacional — tendem a alcançar mais participantes, já que muitos escritores já possuem textos prontos ou ideias pré-formuladas. Ainda assim, mesmo com essa barreira inicial, Insólita conseguiu se manter relevante e consistente.

Após o tema, passamos pela escolha dos jurados, abertura de concurso, recebimento e seleção dos textos, até chegarmos à lista final de classificados. Só então começa uma nova etapa: produzir o material temático, criar a campanha na plataforma com textos e imagens exclusivos, e iniciar o aquecimento com os autores para dar início à arrecadação e às lives.

Somente após a meta ser batida é que começa a fase de edição final, revisão e diagramação do projeto. Existe todo um fluxo editorial — e um trabalho em equipe com diversos profissionais — para que o seu livro preferido chegue, com qualidade, à sua estante.

Crédito da foto: Luva Editora
Crédito da foto: Luva Editora

Marcus Hemerly

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A fantasia humana no surrealismo de David Lynch

Marcus Hemerly

‘Uma história real: a fantasia humana no surrealismo de
David Lynch’

Marcus Hemerly
Marcus Hemerly
flyer da coluna Cinema em Tela:  'Uma história real: a fantasia humana no surrealismo de David Lynch'
Flyer da coluna Cinema em Tela: ‘Uma história real: a fantasia humana no surrealismo de David Lynch’

“Todos os filmes são sobre mundos estranhos que você não pode entrar a não ser que você os construa e filme-os. É isso que considero o mais importante em relação aos filmes.
Eu apenas gosto de entrar em mundos estranhos”. (David Lynch)

No filme ‘Uma história real’, (1999), título pouco conhecido do diretor David Lynch, aclamado por suas obras surrealistas em viés, não raro, mais excêntrico, e pelo clássico seriado Twin Peaks, conhecemos a história de Alvin Straight (Richard Farnsworth). Sexagenário de saúde frágil, a despeito de sua obstinação ferrenha, que vive com sua filha Rose (Sissy Spacek), em Laurens, Iowa. Logo no início do filme, percebemos as dificuldades diárias que o núcleo familiar enfrenta, em que pese sua comovente sensibilidade e harmonia, inclusive em relação à comunidade. Querido pelos amigos e vizinhos, é um típico old school man, que aceita com resiliência seu destino iminente.

A partir da notícia de que seu irmão com quem não falava há vários, havia sofrido um derrame, o debilitado idoso decide partir para um reencontro fraternal, de forma ao mesmo tempo impulsiva e resoluta. Como não possui condições de dirigir um carro, decide cruzar uma longa viagem entre estados, deslocando-se em um cortador de grama motorizado. A ideia que parece num primeiro momento tão surreal como os filmes comumente dirigidos por Lynch, revela-se um feito a curtos e vagarosos passos, mas com determinação de gigante. No caminho, Alvin contrapõe as vicissitudes mais simples e as mais incisivas, conversa com outras pessoas da terceira idade e jovens em busca de ensinamentos. A partir de sua experiência, pratica boas ações e, algumas vezes, é destinatário delas, seja por um novo modo de olhar o mundo, seja pela reafirmação de suas imutáveis mazelas.

Uma interpretação forte, qualificada como uma das melhores da carreira de Farnsworth, já doente à época, inclusive, em estado terminal, ele se mataria poucos meses após completar a finalização do filme. Entre um trecho e outro de sua jornada, Alvin interage com diferentes tipos de pessoas, ao passo que uma família se compadece com sua perseverança e oferece-lhe ajuda; no entanto, como que numa missão autoimposta, segue caminho em seu veículo rudimentar, talvez, inconscientemente buscando expiação, não apenas de seu relacionamento turbulento com o irmão, agora enfermo, mas consigo próprio diante de decisões miradas em retrospecto.

Próximo ao final da película, em uma sensível cena num bar, apesar de o valente protagonista não mais consumir álcool, o veterano de guerra partilha um  momento traumático de suas incursões militares a um desconhecido, novamente, sinalizando, ou nos propiciando, uma visão de que mesmo seguindo em frente, a vida lhe foi dura, e ainda o é. O comovente desfecho, minimalista, aliás, como todo o filme, evoca na sensibilidade e empatia com o espectador – afinal, trata-se da história de um homem comum – os traços de uma produção forte e representante da forma mais pura de cinema. 

Desde clássicos contemporâneos como ‘O Homem Elefante’, ‘Veludo Azul’, ‘Duna’ e ‘Império dos Sonhos’, populares na filmografia de David Lynch, recentemente falecido, com ‘Um História Real’, (The Straight Story), de fato baseado em um caso verídico ocorrido em 1994, deparamo-nos com a versatilidade de um grande realizador, que brinda os fãs da sétima arte com um singelo e ao mesmo tempo poderoso road movie. 

O drama humano parece, e reiteramos, apenas parece, perdido em meio ao surrealismo característica do diretor, em sua grande maioria incutido nas tramas policiais ou neo noir. No entanto, esse ‘olhar’  está sempre presente; para quem tem olhos para ver e sentimentos para apreciar.

Marcus Hemerly

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Uma visita ao museu/casa Lasar Segall

Marcus Hemerly

‘Passado e futuro presentes: uma visita ao museu/casa Lasar Segall’

Marcus Hemerly
Marcus Hemerly
'Viúva' (Witwe), de Lasar Segall, pintada em 1920. Foto por Marcus Hemerly
Viúva’ (Witwe), de Lasar Segall, pintada em 1920. Foto por Marcus Hemerly

O cheiro de tintas parece assomar, ainda que de modo inconsciente, quando se entra na edificação localizada no nº 111 da Rua Berta, no tradicional bairro de Vila Mariana, em São Paulo (SP).

Erigido em 1932 a partir de projeto do arquiteto Gregori Warchavchik, a casa serviu de residência e ateliê de um dos mais importantes artistas que atuaram no Brasil, abrigando o museu em memória de Lasar Segall. Nascido em 1889 na cidade de Vilnius, Lituânia, à época pertencente ao território Russo, assentou um nome da Alemanha, intensamente receptiva à arte de vanguarda, tal como a produzida pelo artista. Exemplo de tal viés pode ser identificado no expressionismo, traduzido até mesmo no cinema produzido naquele país, onde sedimentou sua formação nas Academias de Arte de Berlim e Dresden. 

As linhas arrojadas e inovações de sua arte seriam recebidos de forma entusiástica em terras brasileiras, após sua imigração em 1923, onde se radicaria em definitivo e ajudaria a consolidar o movimento modernista, deflagrado na capital paulista pela Semana de Arte Moderna de 1922, que representou divisor de águas na literatura, pintura e música no Brasil. Mesmo aderindo posteriormente, Segall seria imortalizado naquele cenário, junto a nomes como Mario de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Menotti del Picchia, responsáveis pela primeira fase do movimento, que se desdobrou em gerações após a realização da semana de 22.

Lasar Segall faleceu na cidade de São Paulo, em 1957, aos 68 anos, sempre em ativa produção nos campos da pintura, escrita, escultura, entre outras formas de expressão. 

Vista parcial da exposição. Foto por Marcus Hemerly
Vista parcial da exposição. Foto por Marcus Hemerly

O projeto do instituto cultural foi originalmente concebido em 1967, pelos filhos do artista com Jenny Klabin Segall, Mauricio Segall e Oscar Klabin Segall, com a criação de uma entidade civil sem fins lucrativos. A partir da Praça da Árvore, ao final da famosa Rua Luiz Góes, conhecida pelos habitantes como ‘a Rua que divide o mundo’, devido à incerteza quanto à sua alocação geográfica formal, está Museu, também próximo à Casa Modernista, outro importante centro de visitação local, cuja arquitetura é replicada pelos imóveis típicos que recebem os visitantes da antiga morada de Segall. Encartado entre polos de ensino superior, igrejas centenárias, bem como uma variedade de comércio e gastronomia, é ainda circundado pelo charme quase palpável de Vila Marina, que exala cultura e entretenimento.

Além do espaço destinado à exposição permanente da obra do pintor, a museu dispõe de rico acervo documental e fotográfico, oferendo atividades culturais, visitas educativas, além de uma diversificada gama de cursos e oficinas nas áreas de gravura, xilogravura, litografia e gravura em metal. Também é um espaço dedicado ao desenvolvimento e orientação de projetos individuais, escrita literária, história da arte, além de contar com uma biblioteca especializada em artes e fotografia e sala de cinema com exibições de obras de diversas nacionalidades. 

Vista parcial da exposição. Foto por Marcus Hemerly
Vista parcial da exposição. Foto por Marcus Hemerly

Atualmente, o Museu é qualificado como órgão federal, apoiado pela Associação Cultural de Amigos do Museu Lasar Segall – ACAMLS, a partir do aporte de recursos oriundos de instituições públicas e privadas, além do apoio de particulares.

No ano passado, o espaço recebeu mostra especial da pintura ‘Witwe’ ou ‘Viúva’, parte da exposição ‘Arte Degenerada’ após oito décadas de desaparecimento. Considerada perdida, a obra foi encontrada na Europa pelo marchand Paulo Kuczynski. O evento, ocorrido e maio de 2024, também exibiu gravuras produzidas pelo artista na mesma época, celebrando a importância do Museu, não apenas para a história da arte no Brasil, mas reafirmando a relevância internacional do artista. 

Aberto para visitação gratuita de quarta a segundas-feiras, entre as 11h:00 às 19h00, o Museu descortina uma área de jardim e café, adequado às regras de acessibilidade, oferecendo diversão e informação. Um verdadeiro cotejo de bom gosto entre passado e presente, num paralelo harmônico próximo à estação Santa Cruz da linha azul do metrô.

Marcus Hemerly

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Folk horror, folie à plusieurs

CINEMA & PSICANÁLISE

Marcus Hemerly e Bruna Rosalem:

Folk horror, folie à plusieurs: o apelo grupal em Midsommar’

Flyer da coluna Cinema & Psicaálise. 'Folk horror, folie à plusieurs: o apelo grupal em Midsommar'
Flyer da coluna Cinema & Psicaálise.Folk horror, folie à plusieurs: o apelo grupal em Midsommar’

“Sentiu-se novamente incluído no círculo dos homens…”
Kafka, A Metamorfose

Um aspecto interessante que parece nos atravessar cotidianamente é uma espécie de duplo: quando alguma coisa é capaz de ser estranha, obscura, inquietante e oculta, ao mesmo tempo que têm características familiares. Trata-se de algo que, por um lado, reconhecemos como íntimo e conhecido, mas, por outro lado, percebemos o fenômeno enquanto desconhecido. Isso traz ressonâncias e reverberações bastante ambíguas que nos instigam a querer saber mais, mesmo que esta busca possa nos causar incômodos ou sensações do tipo: ‘isso é perturbadoramente belo’ ou ‘é estranhamente fascinante’. 

É possível dizer que, por esta e outras razões, revela-se pronunciado furor pelo entretenimento de terror, suspense, mistério, além do ímpeto em assistir ou ouvir notícias mórbidas e sensacionalistas. No Brasil dos anos 60 a 90, o já extinto jornal ´Notícias Populares´, similar aos tabloides americanos de qualidade e procedência questionáveis, enfeitiçava a atenção de seus leitores, além do famoso telejornal de notícias com forte apelo popular, ‘Aqui Agora’. Na atualidade, ainda temos este mesmo formato de telejornal com notícias, muitas vezes, em tempo real, de evidente apelo midiático, como ‘Cidade Alerta’ e ‘Balanço Geral’, perpetrando verdadeiras ânsias nos espectadores em consumir tais conteúdos. E, no universo das artes e expressão humana, não se vislumbra tendência contrária. A poética do sobrenatural e do gótico, sejam nas artes visuais ou literárias, emerge como fator de alcance de consumo, marcando obras atemporais comumente citadas e que permeiam o imaginário popular. 

Na indústria do entretenimento, a exibição de conteúdos diversos, sejam eles apelativos ou nem tanto, além de uma forma de arte, o cinema é um nicho extremamente lucrativo para isso, cite-se aquele denominado ‘de exploração’ ou exploitation. Alguns exemplos seriam os filmes ‘B’ realizados na Oceania, Ozploitation; Bikersploitation, filmes de motocicleta; Zumbis e Canibais; Blaxploitation, traduzindo elementos, como gírias e estereótipos da cultura negra; Anuxploitation, películas ‘B’ canadenses; Carsploitation, filmes usando carros com corrida, batidas e explosões; Chambara films, aventuras de samurai; Nazisploitation, sobre campos de concentração nazistas; Nudist films, inseridos numa lista prolífica.

Não raro a miscelânea de subgêneros se entrelaça ou minimamente se toca em alguns pontos, o filme de terror ‘Alucarda,(1977)’, de viés sobrenatural, poderia facilmente ser inserido naqueles denominados nunsploitations, filmes eróticos de freiras, contemporâneos à derivação dos chamados ‘WIP – Women in Prison’ (mulheres na prisão). No entanto, o cinema deve ser apreciado, não qualificado, pelo menos quando não inserido no contexto acadêmico. 

Tratam-se de produções rápidas e relativamente baratas, com o objetivo de lucro imediato sem grande apreço, salvo exceções casuísticas, pelos desdobramentos estéticos e artísticos da película. Observa-se nesse panorama, um reflexo evidenciado pela demanda mercadológica. No Brasil, de modo similar, verifica-se tal fenômeno no cinema produzido na chamada ‘Boca do Lixo’ paulistana, quando a partir dos anos 80, as errônea e genericamente rotuladas de pornochanchadas, deram espaço ao cinema explícito. 

Como se sabe, revela-se uma inclinação atual à rotulação e  criação de constantes definições, tais como subtítulos ou subgêneros muitas vezes inócuos. Contudo, em meio a esta ‘sopa de letrinhas’, como o porn torture (‘O Albergue, 2005’), ou o found footage (‘A Bruxa de Blair’, 1999), voltemos a atenção para aquela chamada de folk horror, com representativos pontuais, principalmente a partir dos anos 60, ainda que não denominados inicialmente como tal, pois o termo é relativamente recente, aplicado a partir dos anos 2000.

O terror folclórico, em verdade, se apropria de características regionais ou elementos de folclore, oral ou escrito, a fim de criar os aspectos secundários de suspense, ou mesmo, alinhavar a estrutura de toda a trama, de maior relevo no cinema britânico a partir dos anos 60. Desde clássicos como ‘O Homem de Palha’, (1973), com destaque para a atuação instigante de Christopher Lee, e sua problemática refilmagem de 2006, até celebrados títulos recentes como ‘A Bruxa’ (2015), ‘A lenda do Cavaleiro Sem Cabeça’ (1999) e, finalmente, ‘Midsommar’ (2019).

Na trama de ‘Midsommar’, do aclamado diretor Ari Aster (também do amado e odiado ‘Hereditário’, 2018), temos elementos de roteiro e cinematografia que não só encantam pela sua belíssima fotografia diurna em tons e nuances em vermelho, azul e branco, remetendo ao contexto da seita, como também as questões históricas dos rituais, das tradições ancestrais e da cultura do remoto vilarejo sueco. Acompanhamos um grupo de estudantes que viaja a este lugar ermo na tentativa de estudar o grupo e seus costumes.

Inicialmente, a viagem é marcada por uma tragédia envolvendo a família de Dani (Florence Pugh), então a contragosto de seu distante namorado, Christian (Jack Reynor), embarca junto a ele e seus amigos para o pequeno vilarejo. Lá, a medida em que eles vão se envolvendo no cotidiano daquele grupo, paulatinamente, vão se afastando uns dos outros, caindo nas graças sedutoras da comunidade que oferece acolhimento e pertencimento, amor e cuidado, porém mediante renúncias éticas e morais, ainda que inicialmente não percebidas como tais.

Falando em sedução e grupo, experimentamos na história, verdadeiras figuras performáticas que captaram significativa quantidade de admiradores/seguidores/serviçais que cegamente envolvidas numa espécie de encantamento, aceitaram se submeter aos mais insanos rituais em nome do amor, desde assassinatos em série a suicídio coletivo. São os casos de extrema repercussão de Charles Milles Manson, década de 60, Califórnia, EUA e Jim Jones, década de 70, Jonestown, Guiana. Se olharmos mais criteriosamente, em tempos atuais, assistimos a teatrais líderes religiosos que conduzem gigantescas massas em nome de supostas salvação e prosperidade eternas ao preço do fiel entregar algo que não tem. Evidentemente, não apontando nenhuma denominação religiosa ou doutrina em si, mas indivíduos e episódios que destoam da instituição, num verdadeiro contexto de indulgência e simonia contemporâneos. 

Em Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921), Freud ao explorar fenômenos sociais e coletivos e a dinâmica dos grupos humanos, observa a influência destes grupos no comportamento do sujeito que parece se transformar inconscientemente quando está inserido na massa. O laço grupal e a alienação direcionada aos ritos ou a um líder em comum, o Pai, um Outro, representante da autoridade máxima, instância da lei e grande gozador, faz com que o sujeito perca sua singularidade em meio à identificação coletiva. Ademais, o grupo enquanto espelho que estrutura o sujeito que está imerso nesta trama, tenciona um jogo entre atender a demanda de amor do sujeito ao mesmo tempo que o convoca a renunciar seus princípios e valores para continuar pertencendo à ‘família’. O cerne disso tudo poderia ser: sou amado e, portanto, permito-me também amar, e por que não, gozar disso tudo.

A personagem Dani, parece ter encontrado naquele colorido e acolhedor vilarejo, a possibilidade de novamente ser amada e amar o outro. A morte de sua família orquestrada pela irmã de maneira terrível, que logo investe contra sua própria vida, deixa um grande vazio. Ao encontrar aquele agrupamento, mesmo vivenciando sacrifícios e atividades ritualísticas brutais, inclusive, de forma dúbia, entre aceitação e rejeição, onde até seu namorado é sacrificado, nesse momento, Dani percebe que é necessário cumprir certos mandamentos da comunidade para manter-se enlaçada e completa.

Paradoxalmente, é condição humana o sentimento de desamparo e incompletude desde o nascimento, quando somos arrancados do terno e seguro útero. No entanto, para vivenciarmos a ilusória condição de liberdade que faz parte do crescimento e da experiência de viver, é necessário se desvencilhar daquilo que oferece conforto e segurança. Portanto, pagamos o preço continuamente entre pertencer, ser amado e poder amar, renunciando ao querer. Cabe aqui a velha máxima ‘Não é possível ter tudo’. A boa notícia é que a falta gera desejo, e desejo é vida em movimento.

É certo que todos os elementos clássicos compõem de maneira periférica a escaleta do suspense a partir da construção lenta e o desenvolver não apenas do roteiro, mas das peculiaridades dos personagens. A tensão, num primeiro momento não é óbvia, pois sinaliza ao espectador que algo não é o que parece. E, realmente, nada é evidente quando somos surpreendidos por cenas gráficas que não apenas constroem o terror rural a partir de crenças arraigadas, mas a partir de um caminho inelutável quanto a dramaticidade que orquestra o fim derradeiro. Retornando ao famoso ‘Homem de Palha’, a cena final, (a qual cabe ao leitor descobrir), flerta com a euforia em contraposição à pretensa racionalidade e os meandros mais obscuros da capacidade humana, quando guiada/criada de forma errônea. Todavia, novamente o que é errôneo a partir da visão sociológica e antropológica lançada de forma horizontal à evolução histórica?

Em Midsommar, Dani ao ser acolhida naquelas estranhas e bizarras condições impostas pelo grupo, temos uma perturbadora sensação de que aquilo é possível e aceitável. O subgênero do terror tem o tom de subversão já no início quando os aspectos sinistros envolvendo as danças, os diálogos, os olhares, os ritos acontecem à luz do dia. Deparamo-nos com o sublime dos cenários e o visceral das mortes regadas a muito sangue em vibrante vermelho e desvario contagiante. Ao final, o filme impulsiona a reflexão sobre nossa pequenez diante da finitude, da fragilidade dos corpos diante da solidão e do quanto demandamos do próximo para sentirmos vivos.

Constantemente citado como um dos grandes títulos do horror nos últimos anos, a obra de Ari Aster, justamente por afastar-se dos estereótipos do horror que remanescem pré-concebidos nos espectadores, evoca a possibilidade do terror cotidiano e inesperado. Os cenários lúgubres dos estúdios britânicos Hammer, ou as trevosas locações do suspense gótico italiano, dão lugar à luminosidade do dia e das paisagens, lembrando que o assombro e o medo podem ser alvos como o branco ou cintilante, o azul celeste ou o vermelho sangue. 

Marcus Hemerly e Bruna Rosalem

Marcus Hemerly

Bruna Rosalem

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 Zelig, de Woody Allen. A busca pela aceitação

CINEMA EM TELA

Marcus Hemerly: ‘Zelig, de Woody Allen. A busca pela aceitação’

Card da coluna Cinema em Tela - 'Zelig, de Woody Allen. A busca pela aceitação'
Card da coluna Cinema em Tela: ‘‘Zelig, de Woody Allen. A busca pela aceitação’

“Sou um quase não louco.”
John Cassavetes

“Esse programa pode não ser uma janela para o mundo, mas é certamente um periscópio sobre um oceano do social”, assim era iniciado o programa ‘Provocações’ quando comandado pelo entrevistador Antônio Abujamra. Se, de um lado, o saudoso apresentador, ator e diretor se enveredava por uma constante busca por extrair o máximo de seus entrevistados, não raro, de forma não ortodoxa, daí a ‘provocação’ que intitulava o semanal, o veterano diretor novaiorquino fez algo similar em seus filmes. 

A longeva carreira de Allan Stewart Konigsberg, ou ‘Woody Allen’, é marcada por sucessos que o levaram a premiações do Oscar e de Cannes, mas também o foi por escândalos.  Como sua turbulenta separação da companheira e atriz de mais de uma dúzia de suas produções, Mia Farrow, em decorrência do caso do ator com a filha adotiva do casal, a temática de suas obras, recorrentemente, se preocupa sobre as complexas questões psicológicas. 

Aliás, Allen foi adepto fiel da análise por várias décadas, refletindo uma visão social e psicanalítica do homem moderno inserido na sociedade estadunidense. Suas neuroses, paranoias, estilística e desvios, intercalam tramas mais densas sob o viés comportamental e de crítica social/sociológica – não política, ele faz questão de pontuar – e roteiros de formatação cômica mais acentuada. E, como consequência, de apelo comercial mais atrativo, pois é sabido que em determinados períodos, houve um decréscimo de público em seu próprio país.

É notório que Woody já foi considerado a maior mente cômica no cenário norte-americano, aspecto que remonta à sua atuação em shows de stand up, ainda em seus primórdios. Multiartista, é sempre o responsável pela roteirização de sua impreterível produção anual, que fatalmente recebe o título provisório de “filme de Woody Allen do outono”, estação na qual sempre começa as filmagens de seus longas.  É possível dizer que a própria evolução da sociedade Americana foi paralelizada em termos de mutação de costumes no universo Woodiano. Seu humor ácido, ágil, irônico e sagaz, inúmeras vezes foi encenado pelo próprio diretor, que transpôs, durante seu amadurecimento como realizador, um verdadeiro alter ego às telas, inserindo em seus roteiros, personagem que é sua cópia fiel, formatando-o em contextualização de acordo com cada argumento, mas mantendo seus maneirismos e peculiaridades. 

Decerto, os fãs mais ardorosos até mesmo se ressentem quando Woody não atua em seu projeto anual, inclusive, sua ausência tem sido mais recorrente nas últimas produções, que segundo os críticos, a partir dos anos 2000, retomou um diálogo, mas simples, remetendo às comédias pastelão dos anos 70, num raio de alcance maior de público. A crítica de cinema Neusa Barbosa (Gente de Cinema – Woody Allen, 2002, pag. 190), pondera “A alternância, em sua carreira, de obras de tons mais som- brios e mais leves, culminando na fase mais recente, em que parece ter definitivamente abraçado o objetivo de divertir o seu público, revela que em seu espírito convivem ao menos dois Woody Allens, um é de câmara, outro de vaudeville. Os críticos e o público podem preferir um ou outro, mas o fato é que os dois coexistem na poderosa imaginação do diretor, trocando figurinhas o tempo todo. Que um predomine sobre o outro pode ser apenas uma questão de momento”.

Dentre a evolução de seu cinema, destacamos o título Zelig, de 1983, que gira em torno de um verdadeiro camaleão humano, no qual o personagem que intitula a trama, Leonard Zelig, muda em termos de personalidade e. até mesmo, corporalmente, quando interage com as pessoas a seu derredor.  Num momento, enquanto confabula com cantores de jazz muda a pigmentação de sua pele, se conversa com um obeso, imediatamente adota proporções mais robustos numa simetria em tom de rapport não consciente.  Acompanhamos a trajetória do personagem tratado pela psiquiatra interpretada por Mia Farrow – fase pré-escândalo – que tenta decifrar e até mesmo curar o enigma que o homem sem passado e, possivelmente sem futuro, revela em sua passagem por fatos da história, de maneira muito inventiva que seria posteriormente levada a efeito em filmes como Forrest Gump. 

De vilão a herói, a trajetória de Zelig é contada em forma de documentário fictício, subgênero batizado de mocumentário, do inglês to mock (zombar), em um dos filmes mais criativos e esmerados da carreira do diretor. Neste título em específico, inolvidável tracejar questionamentos que encapsulam proposições pertinentes e identificáveis na sociedade contemporânea, tais como a ânsia pela aceitação até o ponto da auto sabotagem e anulação em temor à detração e repúdio do grupo. Dentre os números filmes questionam o sentido da vida numa abordagem mais existencial, impossível não remetermos à obra de Bergman, fonte inspiradora indissociável da fase mais autoral de Allen, tema por ele explorado no percurso de suas quatro décadas de criação. 

Em que pese a mácula sobre sua popularidade e decréscimo de apoio popular e da classe artística após as acusações de abuso sexual nos anos 90, é sabido que suas produções mais filosoficamente apuradas sempre receberam ardorosa recepção no universo europeu. Certamente, herança da nouvelle vague e cultura de valorização ao cinema de autor, que apresentam profundas raízes naquele país. Não é por acaso que Allen, devotadamente apaixonado por Nova York a ponto de fazê-la coadjuvante recorrente em sua obra, ama Paris como a sua segunda cidade favorita. 

Seu mais recente filme, ‘Coup de Chance’, (2023), rodado na Cidade Luz, e em língua francesa, é provavelmente o último de sua carreira na sétima arte, pois o diretor manifestou seu interesse em dedicar-se à literatura e música, é uma declaração de amor não apenas ao cinema, mas a seus apoiadores constantes. Singelo, direto e eficiente, como nos antecedentes ‘Scoop’ e ‘Match Point’.  Não obstante a tendência ao ostracismo dos últimos anos, Woody Allen permanece como um dos mais importantes realizadores vivos. 

Marcus Hemerly

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Onomástico

Marcus Hemerly: Poema ‘Onomástico’

Marcus Hemerly
Marcus Hemerly
“No curso da vida, um momento perdeu-se em meio  às linhas”
Criador de Imagens no Bing – 4 de novembro de 2024 às 1:44 PM

No curso da vida,

um momento perdeu-se em meio  às linhas.

Outro,  mudo, calou à passagem do tempo,

fingindo-se de cego às páginas em aberto.

Um amor que não brotou,

O ódio, aos poucos ancorou.

Meu próprio epíteto virou um rosto,

o próprio Eu, consciente,

desgostou.

Do índice, restam espaços em branco,

Sem prólogo ou epílogo.

Resta, ao final, 

nomes perdidos ao vento,

em fria referência bibliográfica.

Marcus Hemerly

CONTATOS COM O AUTOR

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