Parasita

CINEMA & PSICANÁLISE

Bruna Rosalem e Marcus Hemerly

‘Parasita: Entre realidades visíveis e invisíveis.
Ser, não-ser e o nada’

Card da coluna Cinema & Psicanálise. ''Parasita: Entre realidades visíveis e invisíveis. 
Ser, não-ser e o nada'
Card da coluna Cinema & Psicanálise. ”Parasita: Entre realidades visíveis e invisíveis.
Ser, não-ser e o nada’

“Não nos esqueçamos que as causas das ações humanas costumam ser
inumeravelmente mais complexas e diversas do que depois sempre as
explicamos, e raramente se delineiam de maneira definida.”
Fiódor M. Dostoiévski

Quanto se pensa em cinema asiático, inicialmente, a tendência precípua é lembrar das produções japonesas mais populares no ocidente. Evidentemente, não se afasta o mérito da festejada obra de Akira Kurosawa, a título de exemplo, responsável por paralelizar o sucesso comercial a criações de viés extremamente artístico, desde situações contemporâneas até adaptações shakespearianas transpostas ao Japão feudal. Impossível não citar sua versão para ‘Rei Lear’ (Ran, 1985) e ‘Macbeth’ (Trono Manchado de Sangue, 1957), as quais retratam os mais densos e complexos dramas humanos. Indubitavelmente, seu astro recorrente, o expressivo Toshiro Mifune, teria o status de estrela hollywoodiana. 

Kurosawa ainda assentaria seu nome no novo mundo a partir do seu trabalho mais conhecido, ‘Os Sete Samurais’, (1954) – alguns referem como sua obra-prima – que inspiraria outro clássico dos westerns estadunidenses, ‘Sete homens e um destino’, (1960), popularizando-se com um elenco estelar, com nomes como Yul Brynner, Charles Bronson e Steve McQueen. No entanto, a vertente da sétima arte em testilha não é lembrada tão somente pela ilha japonesa. 

O cinema chinês já era extremamente popular quando de sua roupagem muda nos primórdios da imagem em movimento. Imperioso lembrar, o cinema falado surge em 1927 com o filme ‘O cantor de jazz’. Seja a partir de histórias mais sofisticadas em seus contornos teatrais e existencialistas, ou mesmo, derivando as feições de terror voltadas ao sobrenatural das lendas nipônicas e ao body horror, ainda nos anos 50, o tom flagrantemente experimental perpassa a criação asiática desde seus primórdios.

Nas últimas duas décadas, países como Tailândia e Coreia, de modo relevante, têm inovado com realizações que flertam com o horror mais gráfico de violência extreme, que descendem do cinema exploitation dos anos 70 e 80. Produções policiais consagradas que foram elevados ao título de clássicos modernos, como a festejada trilogia ‘Infernal Affairs’ que serviu de inspiração ao filme. ‘Os Infiltrados’, de Martin Scorsese; cita-se ainda, o intenso e visceral filme de serial killer ‘Eu vi o diabo’ de 2010.

No plano internacional, assim como o cinema produzido na Espanha e Argentina, os roteiros altamente inventivos e pouco ortodoxos daquele continente conquistam o gosto de novas audiências. No início do novo milênio, o mundo encantado por toda a poesia do filme ‘O tigre e o dragão’, do tailandês Ang Lee, que já havia alcançado notoriedade desde os anos 90, inclusive adaptando brilhantemente a obra de Jane Austen, com o sucesso de crítica ‘Razão e Sensibilidade’, (1995).  

Traçado esse pequeno parâmetro, alcançamos a grande surpresa do Oscar de 2020, o longa ‘Parasita’. A despeito da merecida expectativa em torno do drama cômico sul coreano, a partir do imediato sucesso nos festivais, o filme literalmente ‘roubou a cena’, arrebatando quatro estatuetas em premiações chave da cerimônia, tais como roteiro original, direção e entrou para a história como a primeira obra fílmica não falada em língua inglesa a vencer como Melhor Filme.  

No roteiro de Bong Joon Ho, que também dirige a trama, a família de Ki-Taek, subempregada e, posteriormente, desempregada, vive em condições precárias num porão sujo de Seul. Quando o filho adolescente da família começa a ministrar aulas de inglês a uma moça de família rica, os Park, a partir de meios dúbios, aos poucos, os Kim se infiltram no staff da família privilegiada. Valendo-se das mais engenhosas conspirações, gradativamente, vão tomando o lugar dos empregados antigos, e, ao mesmo tempo, se imiscuem de forma indissociável à rotina de seus empregadores. 

Aliado a inúmeros questionamentos de ordem sociológica e política subjacentes às diferenciações gritantes de classe econômica, a película suscita situações pouco usuais gerando respostas ainda menos convencionais. As relações grupais que ali se desenham são complexas e um tanto duvidosas. Deparamo-nos, aos poucos, com uma família passível de cometer atos ilegais tentando fugir da extrema pobreza que gera ansiedade com vistas a um futuro incerto e, possivelmente, desesperador.

Na história americana, vemos inúmeros relatos de pessoas que coabitam casas de maneira parasitária, ou seja, se formos tomar o título do filme, parasita, segundo a definição biológica: organismo que vive dentro de outro, usufruindo de moradia e alimentação de forma danosa ao hospedeiro. Pessoas que vivem atrás de portas, paredes, entradas escondidas ou em uma espécie de alojamento subterrâneo como se fosse duas casas em uma. A família ‘original’ que reside no lugar desconhece a existência de outras pessoas. Estas últimas buscam alimento quando os moradores estão dormindo ou ausentes. Assim passam a viver por algum tempo desta maneira, parasitando o outro, sugando seus recursos e tirando proveito dos pertences alheios. A produção ‘A espreita do mal’, (2019), retrata bem este estilo de vida.

O termo para esta prática é definido por phrogging, palavra inglesa derivada de frog, sapo em português. Isto é, viver ‘pulando’ de imóvel em imóvel. Há dois motivos para isso: a busca por uma vivência fora dos padrões normais, observando sorrateiramente a vida alheia, seus costumes e intimidade. E o outro motivo é a necessidade de hospedagem e alimento. Muitos jovens americanos são considerados phroggers. Em 2013, estudantes de uma universidade de Ohio descobriram um morador habitando no porão da escola. No Japão, em 2008, uma família descobriu que uma mulher estava morando no porão de sua casa.

Em ‘Parasita’ esta situação nos leva a reflexões que vão muito mais além da questão da falta de recursos para viver minimamente bem. O ponto excruciante que a família Kim demonstra ao longo da trama parece ser a insuportabilidade de estar na miséria sabendo que existe diante de seus olhos um fantástico mundo de fartura, conforto e ostentação logo adiante. Um admirável mundo novo diametralmente oposto à sua existência neste universo. E este fato é inconcebível.

No contemporâneo livro do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, ‘Sociedade do Cansaço’, discute questões como a corrida pela alta performance, a realização concomitante de várias atividades em um curto período de tempo, a dificuldade de contemplação, afinal é preciso agir imediatamente de maneira performática e sempre eficaz em diversos ramos seja trabalho, esporte, arte, mercado financeiro, acadêmico, onde não haveria espaço para reflexões, apenas positividade e produção a qualquer custo. 

Byung-Chul Han retrata uma sociedade cansada deste ritmo, porém longe de pensar outras possibilidades para isso, afinal o que importa é o acúmulo e não mais a experiência. Pessoas se tornam carrascas de si mesmas, incorporando cobranças incessantes, um ‘ideial de eu’ inalcançável, seguindo a premissa do ‘eu consigo’, ‘yes, we can’. E assim qualquer conquista é possível. Basta querer. Temos então uma sociedade depressiva, transtornada, constantemente inconformada, insuficiente, hiperativa e doente. 

Neste meandro, podemos traçar que mesmo sendo evidente que os Kim vivem em condições extremamente precárias, a realidade escancara-se na impossibilidade de possuir o que é do outro e viver nos mesmos moldes. Ou seja, na sociedade performática a qualquer custo, muitas vezes sem escrúpulos de Byung-Chul Han, a saída para a família Kim é infiltrar-se, incorporando os Park quase que por osmose, sem impor limites, condutas e regras. É manipulando, mentindo, trapaceando e usurpando que os Kim poderiam viver aquele sonho. Não importam os meios, mas sim os fins. Ou seja, ‘é porque quero, que conquisto’. Simples assim.

No entanto, o plano macabro escorre por água abaixo. O que presenciamos ao final, é o filho imerso em seus delírios agora comprando a casa e obtendo ‘o que é de dele por direito’. Um recurso defensivo para lidar com a situação caótica que se configurou e sua cruel realidade, difícil de ingerir, já que é privado aos Kim herdar, comprar ou possuir qualquer fragmento da vida dos Park. Aquela vida luxuosa e vencedora aos moldes da sociedade do sucesso, da produtividade e da alta performance não lhe pertence. E jamais pertencerá. Seu delírio é refúgio.

É notório que existem verdades e versões, para Nietzsche, “a verdade e a mentira são construções que decorrem da vida no rebanho e da linguagem que lhe corresponde”. Nesse sentido, a busca pelo que se deduz de direito, muitas vezes, amolda um caleidoscópio de indistinção entre a figura do indivíduo e do rebanho (coletividade). Não raro, sem amarras ortodoxas do julgamento, fazendo com que o conceito de justiça social, que é dinâmico, a depender do período histórico, seja buscado sem qualquer pudor, e em ‘Parasita’ isso é gritante. Em meio aos percalços dos Kim e dos Park, a pergunta que assoma poderia ser: o quanto a invisibilidade de uns é motivação/fundamentação para arruinar o outro, reduzi-lo a nada? Afinal, para os Kim, ao se amalgamar a casa, os Park poderiam nunca ter existido.

Realmente, a linguagem cinematográfica nos instiga a tamanha provocação.

Bruna Rosalem e Marcus Hemerly

Bruna Rosalem

Marcus Hemerly

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Nomadland: uma reflexão sobre a transitoriedade

CINEMA & PSICANÁLISE

Bruna Rosalem e Marcus Hemerly:

‘Nomadland: uma reflexão sobre a transitoriedade’

Card da Coluna Cinema & Psicanálise: 'Nomaland: uma reflexão sobre a transitoriedade'
Card da Coluna Cinema & Psicanálise: ‘Nomaland: uma reflexão sobre a transitoriedade’

“Passou a diligência pela estrada, e foi-se;
E a estrada não ficou mais bela, nem sequer
mais feia.
Assim é a ação humana pelo mundo afora.
Nada tiramos e nada pomos; passamos e
esquecemos;
E o sol é sempre pontual todos os dias”.
Fernando Pessoa

No meio selvagem, é sabido que diversas espécies lidam com seus iminentes predadores a partir de sua capacidade de camuflagem e adaptação, seja a partir de suas próprias características orgânicas e fisiológicas, seja por peculiaridades comportamentais. O fenômeno é observado na alteração de matiz das borboletas e camaleões, ou mesmo no período de hibernação dos ursos e migração das aves. E quanto ao ser humano, é possível fazer aproximações neste viés? Seríamos uma espécie que se adapta às situações ou criamos dispositivos para lidar com as contingências da vida?

A despeito do sujeito ser atravessado ao longo de sua jornada por situações inusitadas, muitas vezes, necessita criar mecanismos para sustentar tais situações específicas ou, ainda, vivenciar ‘jogos narcísicos’ entre ora ceder a algo ou alguém, ora enfrentar a todos, na tentativa de preservar certa ordem cultural e social, além de manter os laços grupais nas mais diversas esferas como laborais, familiares e amorosas; o ser humano, não raro, necessita transpassar uma odisseia, tantas vezes, desbussolada.

O tema é retratado de forma bastante sensível no filme ‘Nomadland’, 2020, em livre tradução, ‘Terra de nômades’, ilustrando uma recorrência contemporânea pela qual pessoas resolvem (ou, talvez, lhes é imposta) uma nova realidade de sobrevivência: a vida na estrada, quase que sem um rumo determinado, passando a viver com poucos recursos e, na maior parte do tempo, sozinhas.

O título, dirigido por Chloé Zhao, vencedora do Oscar de melhor filme no ano de 2021, apresenta a personagem de Fern, vivida pela sempre versátil Frances McDormand, também vencedora do Oscar na categoria de melhor atriz, que captou a atenção do público e crítica desde os aclamados clássicos modernos Gosto de Sangue, 1985 e Fargo, 1995. Destaque também de Frances McDormand pela escrita e direção, além de uma forte entrega no filme policial Três anúncios para um crime (2017).

Fern, sexagenária, diante da crise econômica que assola sua cidade em Nevada, segue a vida, após perder o marido de forma dramática, cuidando-o até a doença o levar de vez. Dirigindo uma espécie de van, para manter-se na estrada, busca vários tipos de trabalhos sazonais em fábricas, indústria de alimentos, como empacotadora, entre outros. Cruzando o país, depara-se, conforme desbrava longas estradas, com outras pessoas na mesma condição de nômades, porém cada qual com suas motivações, histórias de vida, projetos e perspectivas.

Em sua nova rotina, ela conhece um acampamento que provê assistência a outros nômades modernos, e, até mesmo, se permite flertar romanticamente em meio à sua nada convencional realidade. Vemos na produção o quanto esta maneira de viver destoa de sua família. Este aspecto fica claro quando Fern vai, forçosamente, à casa da irmã, devido a um problema mecânico em sua van, pedir dinheiro emprestado a ela. Acompanhamos um diálogo bastante interessante ao ouvir da irmã de Fern, o quanto estar na estrada, viver enquanto homeless, algo como uma “sem-teto”, era muito melhor do que estar em companhia da família. Ao anoitecer, Fern parece não suportar dormir na cama confortável do quarto de hóspedes, prefere retornar ao veículo e deitar no pequeno espaço que lhe convém. Ali é mais seguro. É, de fato, seu lar.

O filme é baseado no livro ‘Nomadland: Surviving America in the Twenty-First Century’ da jornalista Jessica Bruder, lançado em 2017, que estuda o fenômeno identificado no território estadunidense de pessoais mais idosas que se deslocam pelo país em busca de trabalho, de forma mais recorrente, após a recessão econômica de 2007/2009. O tema já foi brilhantemente trabalhado na literatura a partir do livro ‘As Vinhas da Ira’, de John Steinbeck, posteriormente adaptado ao cinema por John Ford, (1940). Assim como em Nomadland, a família Joad, após perder suas terras em meio à grande depressão dos anos 30, cruza o país a procura de trabalho, num cenário totalmente avesso à sua origem primeva, de, literalmente, raízes agrárias.

Em um olhar mais superficial, o espectador poderia classificar Nomaland como um road movie, subclassificação de filmes que são desenvolvidos na estrada, desdobrando-se nos mais variados gêneros e períodos, tais como Thelma & Louise (1991), Sem Destino (1969), Central do Brasil (1998), Na Natureza Selvagem (2007), Kalifórnia (1993), entre inúmeras festejadas produções. No entanto, as feições quase documentais exaltam o realismo e pertinência da problemática sociológica trazida à baila. Não raro, a imersão de um personagem em uma jornada, concomitantemente interior, é um instrumento de autodescoberta ou reinvenção de si próprio e sua interação com o meio que o circunda. Todavia, a jornada de Fern, a despeito da característica resoluta que apresenta força à personagem, não se põe a uma marcha existencial, ainda que eventualmente, possa ganhar tais contornos, na medida em que a rotina e novas interações a estimulam – ou provocam – ainda que indiretamente.

Conforme adiantado, trata-se de uma súbita e imposta realidade com a qual ela precisa andar de mãos dadas, ainda que não voluntariamente. O ponto de interesse, contudo, também repousa no limiar entre a aceitação como um cenário transitório, ou o acalentar de um novo comum que começa a sorrir em feições serenas, afinal ela não está sozinha, há outros sujeitos no decorrer das histórias que se cruzam, provando o quanto estar na estrada e vagar de lugar em lugar, entre sentimentos e sensações, pode ser uma experiência fantástica. O filme nos convida a refletir sobre a transitoriedade, uma capacidade formidavelmente humana.

Em seus escritos sobre este tema, Freud (1915) dialoga com um poeta enquanto ambos caminhavam, e, segundo o poeta, dizia estar triste pela constatação de que toda a exuberância daquela paisagem natural que observava, assim como toda a beleza criada pelos humanos, estaria fadada à extinção, à finitude. Neste passo, é inevitável que a sensação de desamparo tão fundamental para o entendimento e constituição do sujeito, nos atravesse. Desde os primórdios do nascimento, estamos lidando com o fenômeno de presença e ausência. Ora somos nutridos, acolhidos, tendo nossas demandas supridas, ora deparamo-nos com a espera por algo, a demora, mesmo que ainda a noção de tempo não esteja simbolizada, é evidente que sentimos na carne os efeitos da ausência, seja o alimento que não vem a contento, o carinho das presenças materna e paterna, uma dor que não cessa, um mal-estar não apalavrado.

Segue o poeta dizendo que tudo aquilo que um dia foi amado e admirado ao longo de sua vida parecia-lhe desprovido de valor por estar fadado à transitoriedade. Freud então contesta esta afirmação colocando que justamente pelas coisas não serem eternas é que as fazem privilegiadas. Atribuímos mais valor àquilo que um dia deixará de existir.

Por serem efêmeros, os objetos e as relações objetais que estabelecemos durante a complexa jornada da existência, podem se tornar valiosos. É, muitas vezes na contingência que reside o belo, o surpreendente, o admirável. Freud nos traz a relação da transitoriedade com a escassez do tempo; a possibilidade do fim eleva o valor da fruição.

Nomadland, além de trabalhar muito bem o estilo de vida de pessoas que por diversos motivos se tornaram nômades, transitando entre cidades e atividades laborais para se manterem na estrada, é um filme que aponta o quanto pode ser exuberante a simplicidade da vida, desde contemplar o anoitecer ou o clarear do dia, admirar as aves e seus trajetos, o som do mar chocando-se com as rochas, a presença constante de animais selvagens cruzando o caminho dos viajantes, o contato com a natureza que traz frescor e leveza à alma.

A produção ainda nos remete a pensar sobre o sentido que cada personagem dá a sua vida. Que realmente a pergunta existencial, “Qual o sentido da vida?” que insistimos em fazer, não tem uma resposta única e verdadeira. Viver não é uma ciência exata, mas uma experiência passageira. E por que não, incrível? Uma das viajantes que cruza o caminho de Fern conta que sua jornada em breve findará devido ao avanço de um tumor cerebral. Porém o que esta personagem nos aponta é que este fato, por mais triste que seja, não invalida suas belíssimas vivências. Ou seja, somos atravessados constantemente pelos saberes que construímos ao longo do tempo. Isto traz significação à vida, aos moldes e estilos de cada sujeito. A ideia da transitoriedade tem seu valor por sabiamente nos advertir que nada é para sempre. O que fica impresso são os efeitos trazidos pelos ensinamentos.

Novos lugares, novas histórias, dramas e enredos, possibilidades e experimentações. Fern aprende com o outro, seja oferecendo uma escuta à dor, seja compartilhando alegrias e conquistas. A vida pode ser mais, ir além. Não um além frenético, paranoico, a busca pela tal felicidade (ilusória, diga-se de passagem), mas, um além possível, significativo, precioso, terno e pacífico.

Ao final, a inquietude que, num primeiro momento lhe causa estranheza e insatisfação, passa de algoz a companheira. Essa imersão, revela novas formas de versatilidade até então desconhecidas, e assim como Diógenes em seu barril, vagando à procura de um par honesto. Se ‘perdendo’ é que Fern realmente se encontra. Poucos se entregariam a tal jornada.

Bruna Rosalem e Marcus Vinicius

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Marcus Hemerly

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O vazio

COLUNA PSICANÁLISE E COTIDIANO

Bruna Rosalem: ‘O vazio’

Bruna Rosalem
Bruna Rosalem
O vazio
Imagem criada pela IA do Bing

Vazio. Na definição do dicionário Houaiss: “Que não contém nada, apenar ar”. “Que falta fundamento, valor, substância, realidade.”. “Ausência de conteúdo, oco, vão.”. “Falta de saciedade, sentimento de insatisfação.”. Curiosamente, vazio também nomeia uma parte do boi, muito utilizada em churrascos, “o vazio da carne”.

Numa outra ótica bem diferente, temos o lugar de vazio do analista numa sessão de manejo psicanalítico. Aquele que faz semblante do morto, o que permite ao sujeito escutar-se em sua própria história.

Várias definições tentam significar esta palavra e trazer algum sentido. Nas ciências exatas, por exemplo, na Matemática, temos o conjunto vazio. Na Física, a ideia de vácuo, ou ainda, o espaço não ocupado por matéria.

Se utilizarmos vazio enquanto metáfora, teremos uma série de possibilidades em que esta palavra pode ser aplicada: “Estou me sentido vazia, oca por dentro, uma tristeza sem fim.”, “Meu estômago está vazio, sinto fome!”; “Acho que minha vida está vazia, não tenho sonhos, desejos, nem propósitos…”.

Paradoxalmente, a palavra vazio sugere ausência, mas ao colocá-la em cena, ela se presentifica. Anne Frank, adolescente alemã de origem judaica, vítima do Holocausto que ficou famosa pela publicação póstuma de seu diário, dizia: “Aquele vazio, aquele vazio enorme está sempre presente.”. Isso demonstra que não há como escapar desta sensação, certamente em algum momento de nossas vidas sentiremos este tal vazio que, para cada sujeito, se inscreve e se expressa de maneira singular.

Há ainda aquele sentimento de angústia que nos toma, entrecorta a carne, deixa o coração apertado, como uma espécie de ‘rombo’ no peito, um vazio na alma.

No luto, é muito comum sentir a sensação do nada, de oco. Perder alguém muito querido e amado deixa essa sensação, como se algum conteúdo fosse arrancado do corpo. É como ter a carne dilacerada, destruída, restando apenas buracos, lacunas.

A sensação de vazio muitas vezes pode tornar a existência insuportável. E por   mais que lutemos para ocupar este espaço em que ‘o nada’ existe (soa até contraditório), não há o que ser preenchido, já que o vazio enquanto metáfora, é uma tentativa de apalavrar a dor de sentir que algo perdeu o sentido, o brilho, o fervor, a excitação.

Consciente disso, é possível que o vazio se torne objeto de investigação para o sujeito abrir-se para o desconhecido, para o enigmático inconsciente com vistas a possíveis elaborações.

O vazio é um sentimento inevitável em nossa história, a questão é como lidaremos com algo tão presente e tão visceral. Precisaremos mergulhar pelas profundezas de suas raízes… quem sabe.

Bruna Rosalem

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Deitar-se no divã: uma possibilidade de reescrever a própria história

PSICANÁLISE E COTIDIANO

Bruna Rosalem:

‘Deitar-se no divã: uma possibilidade de reescrever
a própria história’

Bruna Rosalem
Bruna Rosalem
Imagem criada pela IA do Bing

Desde a paciente mais icônica de Freud, Anna O. e seu pedido ao médico neurologista que a deixasse falar sem interrupções, dizia “a limpeza da chaminé”, através de seu relato livre, a técnica psicanalítica depois pensada por Freud ao ouvir o desejo de sua paciente em falar livremente, tornou-se uma espécie de ‘cura pela palavra’. 

É claro que este método investigativo do psiquismo não foi construído assim tão facilmente, mas nos revela o quanto a possibilidade de falar o que vier à mente a um sujeito numa posição subjetiva de suposto saber de algo que o paciente não tem acesso, e mais ainda, poder escutar-se e inserir-se em sua própria história, nos dá notícias de que esta prática de escuta e fala tem possibilitado que os sujeitos reescrevam novos caminhos para uma vida menos angustiante e mais criativa.

A psicanálise nada promete, porém ao colocar o sujeito diante de seus próprios temores, desejos nefastos, ímpetos proibidos, repetidas decepções amorosas, de uma confusa orientação sexual, vícios desgastes, comportamentos sintomáticos, de um mal-estar indecifrável, baixa ou nenhuma libido sexual, gagueira e um nervosismo tremendo ao falar em público, das dificuldades em conseguir um emprego por nunca se achar suficiente, do árduo trabalho de luto, de um diagnóstico inesperado de uma grave doença, de perdas financeiras, de não conseguir engravidar, adicções diversas, fobias, dores inexplicáveis em determinadas partes do corpo, ou ainda, sentir-se incapaz de terminar qualquer tarefa…enfim, são inúmeras as aflições que nos atingem, deitar-se no divã pode ser o começo para transformar este vórtice perturbador que se inscreve na carne e traz sofrimento.

Divã (do turco diwan) é um móvel de origem oriental, uma contribuição para a psicanálise que o tomou como um dos instrumentos de manejo na análise. Diversas cores e formatos, uns mais largos, outros menores e estreitos, coloridos ou mais neutros, ornados com almofadas, mantas e afins. Tudo para tornar este novo espaço, a ida da poltrona para o divã, confortável e atrativa, por que não? Afinal, em análise a tal ‘passagem’ é a entrada do sujeito numa próxima etapa de seu percurso, mais intensa, mais íntima, mais aberta à escuta de seus fantasmas.

A superação das entrevistas iniciais, ‘entre – vistas’, do olho no olho, analista e analisante, para um lugar de quase isolamento, onde não há mais alguém olhando diretamente e a sensação de solidão, deitado, o sujeito depara-se com uma outra perspectiva de escuta. 

A figura do analista ainda se faz muito presente, porém ao ‘perder-se de vista’, ‘ausentar-se’ do campo visual do sujeito, o psicanalista espera romper de maneira mais enfática a lógica comum de diálogo, da reciprocidade, da troca, das modalidades usuais de conversa. Agora, no divã, torna-se mais palpável as possibilidades de regressão, de acessar conteúdos mais profundos, latentes, reveladores, a intensidade da transferência aumenta, abrem-se caminhos para que os sonhos entrem em cena como mais uma fonte de investigação da vida psíquica do analisante.

É como se o sujeito permitisse conversar consigo mesmo, obter as próprias respostas e explorar novos horizontes sem a preocupação de ser validado. Certamente que este processo é bastante trabalhoso, leva tempo, disposição e muito desejo. E não há garantias. Há um caminhar, um sentir, um vivenciar. Momentos, histórias, experiências. Quem sabe um recontar.

Ao se entregar aos desafios do divã, notadamente um sentimento de desamparo é irrompido. Afinal, a primeira porta de entrada para o mundo veio através de um olhar, ‘da janela da alma’, seja da mãe, seja de quem o projetou ao ser que está chegando. Perder este contato é de fato um árduo exercício. A psicanálise vem nos ensinar neste momento, que é possível se sentir desamparado sem a necessidade de um amparo. É justamente neste ensejo que o sujeito tem a possibilidade de se questionar acerca de suas dores, sem que um outro esteja lá prontamente para acolhê-lo. Há uma inversão na lógica do discurso, ou seja, nem sempre o questionamento do sujeito vai encontrar uma resposta que o satisfaça, muitas vezes são mais dúvidas que vão surgindo, mais indagações, mais chances de viradas, elaborações e saídas criativas.

Por mais estranhamento que possa provocar a passagem ao divã, são nos efeitos deste movimento que a análise pode ajudar o sujeito a atualizar seu passado no presente próspero, num esperançoso futuro.

Estendido no leito (de morte?), um outro ser pode ressurgir das cinzas que outrora impregnadas em seu corpo o forjava. Reescrever narrativas, descobrir o amor (o ódio também), amar e deixar ser amado, desfazer-se do secreto prazer pelo sofrimento, libertar-se da prisão dos pensamentos, correr o risco de ser livre.

Bruna Rosalem

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O Operário: Uma narrativa da carne

COLUNA CINEMA E PSICANÁLISE

Bruna Rosalem e Marcus Hemerly:

‘O Operário: Uma narrativa da Carne’

Coluna Cinema e Psicanálise – ‘O Operário: Uma narrativa da carne’

É tudo o que vemos ou parecemos. Mas um sonho dentro de um
sonho? (Edgar Allan Poe
)

Uma figura esquelética sentada em um ambiente parcamente mobiliado, sonolento, quase cerrando os olhos diante da exaustão. Tem em suas mãos um exemplar de O Idiota, de Dostoievski. Antes de dormir, o homem subitamente levanta os olhos sobressaltado com a queda do volume a seus pés. Em verdade, Trevor Reznik (Christian Bale) não dorme há um ano, talvez, um dos fatores a explicar seu corpo magérrimo de onde irrompe ossos protuberantes e um rosto profundo, intensificado por olheiras. 

O título ‘O operário’, (do diretor Brad Anderson, 2004), traduz a ocupação do personagem central da obra, que diante de sua peculiar imagem desperta desconfiança, e até mesmo desprezo de seus superiores e colegas de trabalho, a despeito da tentativa de permanecer inserido no grupo que passa boa parte do dia consertando máquinas em um galpão escurecido e cinzento.

Gradualmente, a partir de falas espaçadas e vazias de Trevor, percebemos que algo aconteceu, mesmo sem precisar quando ou o porquê, resultando na mudança de comportamento, e, principalmente, de aparência do personagem. Em determinado momento, um de seus antigos colegas chega a dizer: “O que aconteceu com você? Costumava ser legal”, sinalizando sua anterior ‘feição de sociabilidade’. Em sua atual realidade, as únicas ações não robóticas são a interação com a garota de programa Steve, que parece lhe nutrir peculiar devoção com tímida reciprocidade, e constantes visitas ao aeroporto para um café, um pedaço de torta que nunca come e uma conversa com a garçonete. 

A tensão aumenta quando o estado letárgico de Trevor culmina num acidente no qual um dos operadores de máquina perde o braço. Sua exclusão, agora formal do grupo, parece incontestável e o perturba coadjuvantemente à chegada de um novo empregado que, de maneira estranha, parece perceber não só sua inquietude, mas até mesmo a motivação, ainda que não consciente, do personagem. 

No decorrer do filme, pequenas dicas são semeadas, que, em sua maioria, tornam-se percebidas pelo espectador na segunda sessão, quando o quebra-cabeça e o final catártico são revelados.  Além do ambiente onírico, gravado em um verão escaldante de Barcelona, simulando Los Angeles, Bale teve de emagrecer 28 kg, em um verdadeiro esforço de camaleão, considerando que um dos seus trabalhos seguintes seria ‘Batman Begins’ de Christoffer Nolan, no qual teve que ganhar considerável massa muscular. Sua dieta no período de ‘O operário’ consistiu de uma maçã e uma lata de atum por dia, durante quase três meses, criando um aspecto que produz mal-estar e ao mesmo tempo realça sua interpretação hipnótica sinalizando a deterioração do personagem. 

É sabido que alterações corporais drásticas ou de maquiagem recorrentemente são recebidas com um favoritismo no âmbito da crítica e, principalmente, nas premiações. Lembremos de Nicole Kidman em ‘As Horas’, (2002), interpretando Virgínia Woolf e Charlize Theron em ‘Monster’ (2003), ambas usando próteses faciais que lhes renderam o Oscar de melhor atriz, além do recente A Baleia (2022), cujo personagem interpretado por Brendan Fraser usava uma espécie de prótese que pesava cerca de 130kg para se parecer como um obeso mórbido. No entanto, a transformação de Bale foi totalmente corporal, aliás, sua versatilidade já remonta a seus primeiros trabalhos, como no sempre lembrado ‘Império do Sol’, de Steven Spielberg, com apenas 13 anos. 

Na trama que acompanhamos, Trevor parece transitar entre realidade e fantasia. Condensando elementos vividos no passado, fragmentos desconexos de memórias recentes, criadas ou ainda vivenciadas em algum lugar no tempo e espaço, o operador de máquinas perde-se a todo instante. Ora interage com seus próprios delírios, ora tenta desvendar pequenas pistas de um jogo de forca que de tempos em tempos aparece em sua geladeira. Ao longo do filme não sabemos se ele está enlouquecendo ou simplesmente sonhando. Quando conversa com alguém, ficamos em dúvida se tal pessoa existe ou se é uma alucinação resultante de uma vida nada saudável, na qual dormir é quase impossível.

Assim como Trevor busca incessantemente entender o mistério de sua própria vida, o espectador se depara, retire-se, com quase imperceptíveis sinais ao longo da narrativa. A mencionada figura misteriosa que surge na pele de um novo funcionário desperta imediato interesse de Trevor. Ele é forte, tem um carro vermelho, usa boas roupas e, detalhe, os dedos de uma das mãos estão dilacerados, assim como no acidente provocado por Trevor em seu amigo. Na realidade, somente o operário consegue ver este homem, inclusive ele insiste em afirmar que ele aparece numa foto na casa de Steve. Ao se deparar com a imagem, Trevor entra num grande conflito com a moça, achando que fosse seu ex-companheiro e estava sendo traído. Mais adiante na película, vimos que era o próprio Trevor na fotografia.

Este fato, dentre outros que vão surgindo sutilmente em recortes, vão compondo um verdadeiro quebra-cabeças. Afinal, o personagem alucina ou estaríamos presos num longo sonho fragmentado que nunca acaba? O que sabemos é que Trevor apresenta insônia e pouco se alimenta. Mas o que de fato provocou esta situação? 

Sua carne sofre. Seu corpo esvaece lentamente. Algo o consome de dentro para fora. É comido vivo. Suas entranhas são tomadas como último recurso antes que Trevor possa não existir mais. Ainda há luta para manter-se vivo, seus delírios agem como defesas do Eu para evitar desintegrar-se de vez. A frase escrita em um pequeno papel na parede diz: “Quem é você?”, Trevor responde: “Eu sei quem é você!”. Neste momento colocamo-nos diante de uma regressão que transforma o rumo da história.

O operador de máquina paga com seu corpo e alma por ter assassinado uma criança. Um atropelamento sem prestar socorro culminou numa fuga de si mesmo, algo que se tornou insuportável. Trevor é um morto-vivo, um ser que circula entre remorso, dor, culpa. Ressente-se pela falta de atitude diante daquele menino estendido no chão e é consumido por isso.

O cara forte com botas de cowboy dirigindo o carro vermelho sempre foi ele. O filme deixa claro o quanto sua aparência era bem diferente do que vemos na atualidade. Trevor era vigoroso e saudável. Parecia estar de bem com a vida. Até que tudo mudou. 

Mais do que retratar um homem arrependido, a obra nos aponta que sentimentos e emoções estão encarnados, ou seja, é impossível separar psiquismo de corpo. Soma (carne) e psique são um só. Na história remota, houve tentativas de separar corpo e espírito, corpo e alma (no sentido de metafísico). Doenças psicossomáticas, por exemplo, são evidências emblemáticas desta unicidade. As afecções não obedecem a anatomia. Em Trevor vimos que a privação do sono e a magreza extrema tornaram-se consequências de seus atos. Mas qual relação? Nem sempre há. Mais uma vez evocando a história passada, as histéricas apresentavam inúmeros sintomas conversivos como paralisias dos membros e facial, gagueiras, tosse contínua, dificuldades na fala, entre outros. Grosso modo, travavam uma luta entre desejo e censura, culminando nestas manifestações somáticas numa espécie de sinfonia sem maestro.

O sofrimento de Trevor nos dá indícios de chegar ao fim quando ele se entrega à polícia. Paradoxalmente, agora encarcerado, conquista sua liberdade. Dormir é acalento a sua alma e, quem sabe, gradativamente, seu corpo livre da tortura e aflição, recupere o vigor de outrora. O operário nos provoca muitas reflexões, e uma delas é a seguinte: por mais que lutemos para esconder do outro ou de si mesmo aquilo que nos aflige, este gasto enérgico é em vão. O corpo falará, insistirá e jamais cessará. 

Considerando a obra lida pelo personagem no início do filme, de maneira diversa do príncipe Míchkin, que retorna a uma Rússia corrompida, protagonista de O Idiota, que representa pureza e ingenuidade, Reznik é um simulacro oposto da inocência, absorvendo a culpa em obliteração à realidade, a ela cerrando os olhos. A culpa, no entanto, não o abandona, mas o consome dia após dia.  

A narrativa deste momento histórico que Trevor vivencia é contado através dos sulcos de sua carne. Parafraseando S. Freud, se a boca se cala, falam-se os dedos, no caso aqui, seu corpo denuncia.

Bruna Rosalem e Marcus Hemerly

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O Animal Cordial: a duplicidade homem e fera 

COLUNA CINEMA E PSICANÁLISE

Marcus Hemerly e Bruna Rosalem:

‘O Animal Cordial: a duplicidade homem e fera’ 

Card da coluna Cinema e Psicanálise
Card da coluna Cinema e Psicanálise

“Conheces esse mistério? O estranho é que a beleza é uma coisa não somente terrível como também misteriosa. É o diabo em luta com Deus e o campo de batalha é o coração dos homens”. 
Irmãos Karamazov. Dostoiévsky. Por Marcus Hemerly e Bruna Rosalem

O cinema brasileiro é bem definido sob o ponto de vista de períodos e sua interação/comunicação com o público.

De um lado, historicamente, quando se contempla as tendências na produção sob o ponto de vista autoral ou comercial – ainda que se trata de manifestação artística – inolvidável se mostra lembrar do cinema novo, o cinema marginal, e ainda, voltando um pouco mais no tempo, das chanchadas realizadas pela Vera Cruz e Atlântica. Houve um tempo, no qual o brasileiro fazia cinema para o brasileiro, quando os títulos mais intelectualizados, ou mesmo apelativos da Boca do Lixo, disputavam público com aos blockbusters americanos.

Paralelamente às produtoras independentes, as leis de reserva de mercado ou a posterior criação da Embrafilme, é possível asseverar que mesmo de forma velada, o terror esteve sempre presente nesse panorama evolutivo. No entanto, que terror? Por óbvio, as diversas facetas do horror se desvelam a partir de nuances indiretas, até mesmo não identificáveis prontamente como tal; seja por sua inserção na comédia, seja em razão das derivações não perceptíveis como no cinema importado, de alto investimento.

De um lado, temos os lobisomens, vampiros e demais criaturas sobrenaturais – assim como os famosos monstros da Universal Studios – evidenciando de maneira incontestável a natureza e intenção da produção. No Brasil, contudo, o horror, até mesmo por escassez de recursos, gravita de forma velada, psicológica, não raro, simbólica, a partir de sutilezas que se coadunam com o conflito interior e, não raro, o social. 

Importante pontuar que esta tendência é notada em outras nacionalidades, de igual forma despidas de investimento mais significativos, em formatação prática que remete à limitação como elemento criativo inovador. Com a dita retomada da produção nacional, entre grandes orçamentos e realizações independentes, dos mais variados gêneros e matizes, o terror, renove-se, sempre foi objeto de revisitação, e, não apenas isso, praticamente atua como significativa parcelas dos títulos elencados nos últimos tempos.

Conforme adiantado, apesar de irradiar as feições do horror das mais versáteis formas, cite-se o recorrentemente referido “O Jovem Tataravô”, comédia fantástica de 1936, o primeiro filme autenticamente rotulado como pertencente ao gênero Terror, inclusive, autotitulado como tal, foi a parte inicial da trilogia Zé do Caixão, concebida por José Mônica Marins, em “À meia-noite levarei sua alma”, lançado em 1964. Novamente, vemos o sobrenatural alinhado às crendices populares além de violação a concepções morais e religiosas que, no contexto sociológico da época, amoldam repúdio e desconforto, assim como se assentariam na contemporaneidade os jump scares.

Nas décadas subsequentes, após a crise do Polo Paulista nos anos 90, as realizações pontuais no meio carioca, a extinção da Embrafilme e do Concine, a partir de vários fatores, se desembocaria na redescoberta do cinema nacional. Entre realizações milionárias e as produções de guerrilha com baixíssimo orçamento, a arte floresce justamente no nicho naturalmente discriminado ou outrora relegado como impraticável em terras tupiniquins. O terror. Ressaltando, por óbvio, o estilo próprio que desborda em traços mais humanos, psicológicos e, recorrentemente, retratando problemáticas sociológicas.

Nesses meandros criativos, salta aos olhos dos apreciadores da sétima arte o curioso roteiro concebido e dirigido por Gabriela Almeida Amaral, que havia chamado a atenção da crítica pelo bem esmerado curta-metragem “A Mão Que Afaga (2012), agora destacando-se no longa O Animal Cordial, (2017). Na fita, Murilo Benício, replicando a ótima atuação em O Homem do Ano – a despeito dos vieses distintos – vive o dono de restaurante Inácio. Nos primeiros momentos da sequência de abertura, nos deparamos com a tensão entre o patrão e os empregados do restaurante, principalmente com o cozinheiro, interpretado por Irandhir Santos. A dedicação, ainda que artificial, permeada pelo aparente senso de deslocamento, intercalado ainda por uma provável tensão matrimonial sinalizada de forma indireta, é interrompida por um assalto nas dependências do estabelecimento.

Nesse passo, um libertar gradual de amarras sociais se desenvolve pelo suspense palpável nos diálogos e ações surpreendentes, culminando num derradeiro, e gráfico, romper com a cordialidade do contrato social e dar de mãos ao lado animalesco de Inácio. Aparentemente, o cotidiano do restaurante caminhava de maneira rotineira, aos poucos apresentando seus personagens: o dono, o cozinheiro, a garçonete, os clientes. Porém, aos quinze minutos finais do encerramento do expediente naquela noite, chega um animado casal que solicita uma refeição à base de coelho acompanhada do melhor vinho da casa. De repente, dois homens armados entram no estabelecimento, anunciam um assalto e rende a todos presentes. Dali para frente, a trama ganha novos contornos que flertam com o suspense, gore, sexo selvagem e cenas violentas regadas a sangue e suor.

A fotografia chama atenção ao pintar a tela com cores vermelhas vibrantes, tons marrons, remetendo ao chão de madeira que constantemente era esfregado para limpar o sangue das vítimas, cores terrosas, fazendo combinações com alguns ambientes mais escurecidos e claustrofóbicos, acentuados pelo espaço de interação dos personagens e seu contorno minimalista, aspecto bem desenvolvida do roteiro.  A cozinha, sempre muito clara, contrasta perfeitamente com as lâminas sujas e os cortes das carnes frescas.

Assistimos gradativamente a uma ruptura daquele ritmo vagaroso de um restaurante prestes a findar suas atividades daquele dia, para um caótico e frenético evento que revelaria o lado mais selvagem e brutal não só de Inácio, como também da garçonete Sara. Exaltados, ambos parecem ansiar por domínio, poder e destruição.

No livro “O Animal Social”, do psicólogo e professor emérito da Universidade da Califórnia, Elliot Aronson, há uma interessante investigação sobre o comportamento humano. Perguntas que ecoam do tipo: o que leva um cidadão honesto a tomar uma atitude imoral? Como surge a agressividade? Por que pessoas que não são loucas fazem loucuras? Entre outros questionamentos sob a ótica da psicologia social. Nesta obra, o autor cita vários experimentos que visam “testar” atitudes humanas frente a determinadas situações. Muitas vezes, o resultado apontava, por exemplo, que certas características do ambiente e do contexto em si levavam a comportamentos diferentes diante das circunstâncias.

Já numa ótica psicanalítica, temos a ideia de um sujeito estrutural pulsional que manifesta, sob determinados limites da civilização e da cultura, ímpetos, pulsões que são inesgotáveis: sexualidade, agressividade e pulsão de morte. São forças constantes que precisam ser, de alguma maneira, apaziguadas para conseguirmos viver em sociedade e criar laços comunitários. Aquela velha história do homem culto e civilizado.

Em dois textos icônicos escrito por S. Freud em 1930, “O Mal-estar na civilização” e o “Mal-estar na cultura”, o pensador do psiquismo mais famoso da História nos coloca que a repressão das pulsões se mantem a serviço da socialização, uma vez que para criar laços sociais, sustentá-los e interagir com o semelhante sem destruí-lo, há que se renunciar nossos mais pulsantes ímpetos, sejam eles sexuais ou agressivos.

Mesmo assim, ainda que tenhamos que fazer isso enquanto sujeitos que precisam lutar contra a pulsão de morte, não nos impede em certa medida de orquestrarmos guerras, massacres, ataques ao semelhante, a destruição dos outros seres que habitam o mundo e a natureza que nos cerca. À época (1932), questionado, Freud recebe uma carta do famoso cientista Albert Einstein, indagando justamente sobre as motivações que levam os seres humanos a travar grandes e violentos embates, resultando em milhares de mortes. Será que realmente há vencedores numa guerra? Naquele momento e espaço, a partir da ruptura – intencional ? – com a realidade e modus vivendi dito apropriado, traceja-se a verdade batalha, interior ou coletiva.

Recentemente o premiado filme alemão “Nada de novo no front” retrata da maneira mais visceral, cruel e fria possível, os horrores da Primeira Guerra Mundial, nos inserindo ao longo da trama belíssima em fotografia e trilha sonora original, algo extremamente terrível: pessoas matando pessoas sem nem mesmo saber o porquê daquilo. Jovens vendo seus amigos definharem, deixando famílias e sonhos para sempre. Neste cenário real e, porque não, subjetivo, o célebre mandamento bíblico “Amai o próximo como a ti mesmo”, torna-se praticamente impossível, pois não somente destruímos o outro, antes, somos capazes de também destruir a nós mesmos.

Um dos caminhos das pulsões para atingir outras metas mais aceitáveis socialmente, diria Freud, é o da sublimação. Desviar, por exemplo, a agressividade para a prática de um esporte, ou ainda, para diversas manifestações artísticas. Contraditoriamente, até mesmo a guerra pode ser um ato sublimatório, pois sob o apoteótico discurso de defesa e honra da nação, haja luz, faz-se a guerra.

Voltando à película, no caso de Inácio, a presença voraz dos assaltantes e a ousadia reveladora de sua garçonete sedenta por ação, quase que por virar o jogo, antes obediente, agora dita as regras da situação, podem ter despertado a “fera” adormecida quando viu ali uma oportunidade de para além de defender seu território, exercer força, domínio, violência, subjugar o próximo, acuá-lo, como um felino que brinca com sua presa antes de matá-la e devorá-la.

Antes do assalto, Inácio expressa caras e bocas diante de um espelho, na tentativa de sustentar um semblante de homem fino, exigente, controlador (inclusive, há uma passagem ao telefone em que ele demonstra tal comportamento ao dialogar com sua esposa). Ele faz ensaios, forja sua máscara social enquanto artifício para transitar nos mais diversos ambientes que exigem cordialidade, gentileza, compostura.

Será que ser dono do restaurante, aos olhos da sociedade, um empresário bem-sucedido, seria o caminho encontrado por Inácio para conter seus mais bestiais desejos? Afinal, quando os assaltantes adentraram em seu estabelecimento, em momento algum quis chamar a polícia, ou seja, uma ajuda externa. Ele mesmo reuniu toda sua ira para afrontar aquelas pessoas e defender sua propriedade. Ali, sob o pretexto de ser roubado, permitiu revelar sua selvageria e brutalidade. O horror irrompeu naquela figura humana.

Talvez o filme queira nos dizer que qualquer pessoa pode se tornar um assassino em potencial, um lado obscuro habita em todos nós. Para longe de qualquer hipocrisia. No entanto, como é impossível tal comportamento para vivermos em comunidade, talvez só nos restaria a morte. O desfecho da película parece apontar isso. Inácio, a fera, é morto. Para a garçonete, ter dominado aquele cenário grotesco ocorrido no restaurante já não bastava, era preciso incorporar Inácio para si, num movimento que mescla o prazer de preparar um suculento prato, com a morbidez de tornar aquele corpo, meros retalhos. Sara, a deusa Ammit, devoradora de almas, encerra seu ato de maneira memorável.

Bruna Rosalem e Marcus Hemerly

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 Hermann Rorschach e as manchas de tinta

Bruna Rosalem

COLUNA PSICANÁLISE E COTIDIANO

‘Diga-me o que vês e eu te direi quem tu és: Hermann Rorschach e as manchas de tinta’

Bruna Rosalem
Bruna Rosalem
"Diga-me o que vês e eu te direi quem tu és"
“Diga-me o que vês e eu te direi quem tu és”
Microsoft Bing – Imagem criada pelo Designer

Um suíço apaixonado pela teoria freudiana, entusiasta colecionador de cartões com manchas de tinta (klecksografia), nascido no ano de 1884 em Zurique, médico psiquiatra, irmão mais velho dos três filhos de Ulrich Rorschach. Em sua breve trajetória, dedicou-se a estudar e elaborar ferramentas de interpretação inspiradas em um dos conceitos mais importantes da teoria psicanalítica, a associação livre, ao propor que o paciente falasse aquilo que visse à mente sobre o que enxergava nas manchas de tinta dispostas simetricamente em pranchas. Sua curiosidade pelas manchas se deu, a princípio, com pacientes esquizofrênicos que faziam associações de maneira muito peculiares e diferentes de pessoas que não apresentavam psicoses. Ele queria demonstrar que ao interpretar as manchas, era possível desvendar conteúdos inconscientes.

             Aos 37 anos, vítima de um quadro agravado de peritonite, sofrendo de fortes dores abdominais, Rorschach encerra sua jornada pela medicina, deixando esposa, dois filhos e um livro intitulado ‘Psicodiagnóstico’ sobre suas descobertas, experimentos com pranchas de tinta e proposições. Diante de tanto trabalho árduo, é lamentável que o médico não conseguiu antever o impacto de sua obra ao longo do tempo. Após dez anos da publicação, o livro lançado em 1921 que antes permanecia restrito a um pequeno grupo de pesquisadores na Suíça, expandiu de maneira significativa na Europa e nos Estados Unidos.

             Originalmente, Rorschach utilizava 40 pranchas diferentes, mas ao editar o livro para publicação, este número foi reduzido para 15, devido aos custos. Hoje em dia, a aplicação prevê 10 pranchas e somente psicólogos habilitados, com aprofundado conhecimento e estudo neste teste de personalidade podem aplicá-lo. Além das questões éticas que incidem sob os aplicadores, os profissionais devem interpretar os resultados de acordo com o Sistema de Avaliação de Testes Psicológicos.

             Em 1939, foi criado o Instituto Rorschach, quatro anos depois foi realizado o 1º Congresso de Rorschach e na década de 40, foi fundada a Sociedade Internacional de Rorschach (1949). Mais de cem anos já se passaram e atualmente o teste de Manchas de Tinta ganhou o mundo com novos sistemas de codificação e interpretação, sendo utilizado em inúmeros países para diferentes abordagens e fins, seja teste de personalidade para contratar em empresas ou funções específicas  – como foi o caso da Segunda Guerra Mundial para selecionar soldados e pilotos -, seja para traçar perfis criminosos em investigações ou até mesmo para dizer se o sujeito encarcerado está apto ou não para contemplar o regime aberto ou semiaberto.

             Um exemplo emblemático das crônicas policiais brasileiras foi que a mandante dos assassinatos brutais de seus próprios pais, Suzane von Richthofen, realizou o Teste das Manchas de Tinta e segundo relatos, a moça não obteve êxito para deixar a prisão, pois suas descrições e interpretações das pranchas revelaram uma pessoa que oferecia, à época, riscos a sociedade. Ela permaneceu presa até cumprir pelo menos vinte anos em cárcere privado.

             Ainda que bem aceito em várias instituições, o teste projetivo das Manchas de Tinta costuma receber muitas críticas acerca de seus resultados. Mesmo que as manchas não sejam aleatórias, são, a propósito, projetadas e codificadas em suas especificidades e características, parte da comunidade médica afirma não ser crível que a interpretação de manchas possa perfilar personalidades, conjecturar futuras ações do sujeito e possibilitar afirmar o que ele é ou não é.

             De outro viés, a ciência permanece investigando a eficácia do teste, publicando resultados e pareceres que em sua maioria são positivos. É comprovado que até os dias atuais, o teste do aspirante médico, sonhador, amante da arte, que desejava aprimorar cada vez mais seus estudos e elevar sua criação a outros patamares, tem sido um dos métodos de avaliação psicológica mais difundida e citada em pesquisas científicas, além de sua aplicabilidade estar conquistando mais adeptos.

             Uma doença silenciosa foi capaz de ceifar precocemente a vida do brilhante psiquiatra, porém seu legado continua nos provocando curiosidades, interrogações e fascínio pelos conteúdos coloridos ou preto e branco das manchas de tinta e o que elas poderiam dizer sobre nós.

Bruna Rosalem

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