Príncipes também são sapos

Elaine dos Santos: Artigo ‘Príncipes também são sapos’

Elaine dos Santos
Elaine dos Santos
Imagem criada por IA do Grok em 05 de dezembro de 2025, à 15:33 PM (https://grok.com/imagine/post/12407eb8-33fe-4d06-8197-4e643f9a7497
Imagem criada por IA do Grok em 05 de dezembro de 2025, à 15:33 PM (https://grok.com/imagine/post/12407eb8-33fe-4d06-8197-4e643f9a7497)

O casamento nesse formato que conhecemos hoje em dia, com festas reunindo famílias, é uma invenção da classe burguesa, que surgiu na Europa por volta de 1450 ou 1500, o que corresponde ao fim da Idade Média, início da Idade Moderna.

Philippe Ariès, no livro História Social da Criança e da Família, por exemplo, afirma que, antes disso, não havia sequer privacidade entre os membros da família: pai, mãe, filhos, avós, serviçais dormiam todos na mesma peça – geralmente, era o mesmo lugar em que todos faziam as refeições diárias.

Nas classes mais abastadas, o casamento selava uma relação comercial entre o pai da noiva e o futuro marido dela: uma sociedade, tanto que o pai oferecia um dote ao futuro marido dela para que empreendesse em suas novas atividades.

Uma obra exemplar, neste sentido, é Senhora (1874), romance de José de Alencar . Trata-se de um romance da fase mais madura de Alencar e a explicitação de sua crítica social encontra-se, inclusive, na divisão dos capítulos do romance: O preço; Quitação; Posse e Resgate.

Aurélia Camargo, a jovem pobre rejeitada por Fernando Seixas, que a troca por outra mais rica e com um bom dote, literalmente, ‘compra’ Seixas: qual o preço? Ela paga por ele, por sua presença masculina ao lado dela nas festas, nos saraus, nos teatros, até que ele consegue dinheiro suficiente para ‘resgatar-se’. Releia o romance, o final é clássico, classicamente, próprio do Romantismo, apaixonante para quem ainda acredita em príncipes encantados.

O príncipe encantado, diga-se de passagem, é um arquétipo – essas figuras universais, como a bruxa má, o herói, o amante, o bobo da corte etc. No Ocidente, ele tem a sua origem nos contos de fadas recolhidos pelos irmãos Grimm e Charles Perrault entre o povo europeu.

Desde a adolescência, eu sempre ironizei muito essa ideia do príncipe encantado: imagine um homem vestido com uma armadura dourada, montado em um cavalo branco, percorrendo a principal avenida da cidade procurando a sua amada. Sem cabimento!

Porém, em 1981, parecia que um príncipe encantado e uma princesa haviam se encontrado e, no dia 29 de julho, no verão europeu, celebravam a sua união. Ledo engano.

Havia três pessoas no casamento; o príncipe era um sapo e a linda princesa sofreu muito, segundo contam. Não havia festas, castelos, viagens e, ao que parece nem os filhos que transformassem a vida de Charles e Diana, os príncipes de Gales.

A separação oficial aconteceu anos depois e, finalmente, um acidente em Paris, França, colocou fim à vida da princesa. O príncipe não era encantado, porque homens e mulheres não são perfeitos, são seres incompletos, com dúvidas, com erros, com medos, com traumas, que, por vezes, fazem muito mal ao (s) outros (s).

O príncipe é encantado nas narrativas, os amores são perfeitos nos romances, contudo, na vida real, as relações demandam compreensão, aceitação, paciência, sentimentos/percepções que parecem estar em falta em um ‘mercado’ que só valoriza estética, aparência, ‘fotos instagramáveis’, pouco conteúdo e zero diálogo.

Este texto representa o meu lamento pelo número desesperador de mulheres mortas por seus maridos, companheiros, ficantes ou mesmo por estranhos. Nunca a vida da mulher foi tão desrespeitada, tanto física quanto emocionalmente.

Há medo, há inquietação, há angústia no seio de uma sociedade que optou pela violência e descarrega-a nos mais frágeis, como mulheres e crianças.

Elaine dos Santos

Voltar

Facebook




Uma roda que gira, mas segue imutável

Elaine dos Santos: ‘Uma roda que gira, mas segue imutável’

Elaine dos Santos
Elaine dos Santos
Imagem gratuita do Canva - 30 de abril de 2025 às 10h
Imagem do Canva – 30 de abril de 2025, às 10h

Recentemente, tive a oportunidade de conversar com um professor da disciplina da História e pesquisador da ocupação espanhola e portuguesa no Rio Grande do Sul, estado da federação no qual resido e conheço parte da História, porque a Literatura tem-na representado em diferentes obras.

            Na escola, entrelinhas, parecem-nos afirmar que o estado mais meridional do Brasil sempre foi território português, desde que Pedro Álvares Cabral chegou à Bahia em 1500 e, claro, não fomos acostumados a questionar essas informações dadas como verdadeiras.

            Não faz muito tempo, li postagens em redes sociais perguntando o motivo pelo qual não se ‘comemorava’ mais o dia do índio. Como escreveu Olavo Bilac: “Ora (direis) ouvir estrelas”, como desconheceis a Constituição Cidadã de 1988 e as escolhas dos povos originários do teu país? Ora, por que precisas ler, refletir, questionar, não é mesmo?

            A grande obra romanesca que procura abarcar a História oficial sul-riograndense, fazendo-o do ponto de vista ficcional, é a trilogia de O tempo e o vento, de Erico Verissimo. Contudo, o ponto de partida é a presença de tropeiros paulistas na região, destinados à preia do gado, isto é, caçar (talvez, laçar) e conduzir bois e mulas para as feiras no interior paulista, que se destinavam à venda de charque, bem como mulas para o transporte nas Minas Gerais, no tempo do apogeu da mineração.

            Talvez sobre o período áureo de Vila Rica (atual município de Ouro Preto), tenhamos uma obra satírica que nos conceda uma visão menos formal, menos romanesca daqueles tempos. Trata-se de Cartas Chilenas, composta por diversos poemas dotados de extrema ironia, obra atribuída a Tomás Antônio Gonzaga, sob o pseudônimo de Critilo, descrevendo as condições sociais, políticas, econômicas em Santiago do Chile, na verdade, Vila Rica, e os desmandos de seu administrador, Fanfarrão Minésio – o governador da Capitania de Minas Gerais – e a corrupção em seu governo. As Cartas são endereçadas a um interlocutor que residiria em Madri, Claudio Manoel da Costa, cujo pseudônimo era Doroteu.

            Entretanto, retomando a conversa com o meu interlocutor versado em História, aprofundamo-nos no tema da violência que marcou a ocupação do Rio Grande do Sul. De novo, recorro à Literatura e ao conjunto de textos de Contos gauchescos, obra de Simões Lopes Neto, cujo narrador Blau Nunes não nos deixa esquecer que a violência estava presente nas guerras, mas também nas corridas de cancha reta, nos amores não correspondidos ou nas traições amorosas.

            Esse tom belicoso, combativo, fez inúmera vítimas em solo gaúcho, independente da forma como a ficção o representasse.

No meu município, situado na região central do estado, há uma ponte em ruínas, cujas tábuas que uniam os pilares foram queimadas entre 1893 e 1895, num dos mais violentos enfrentamentos ocorridos nessas terras, a Revolução Federalista, também chamada Revolução da Degola, em que os adversários eram, de fato, degolados.

Necessariamente, essas conversas derivam para o mundo ocidental, que melhor conhecemos (ou achamos que conhecemos), afinal, Edward Said já nos ensinou que o Oriente é uma construção narrativa do Ocidente.

Quantas guerras estão em andamento no mundo? Quantas guerras temos conhecimento que estão em andamento no mundo hoje? Poucas pessoas sabem, mas há um território em algum lugar em que estão mulheres e filhos/filhas de homens, de diversas nacionalidades, que pertenciam ao Estado Islâmico e morreram, inclusive, em missões suicidas.

A questão é o que fazer com crianças e adolescentes ‘sem pátria’? Sim, a pátria de suas mães ou de seus pais teme recebê-los. As mães não querem apartar-se dos filhos. Eles configuram uma responsabilidade para os territórios que os abrigam. Esses espaços constituem algo semelhante a campos de concentração?

Finalizamos com o assunto que domina os noticiários. Incontáveis chacinas nos últimos 30 anos no Rio de Janeiro, mas o crime só cresce. A minha primeira lembrança de uma facção remonta à Falange Vermelha, na década de 1980, que se transformou em Comando Vermelho.

Achille Mbembe e sua necropolítica acabaram sendo a ‘explicação’, se é que ela existe, para a violência contemporânea – particularmente, no século XXI (21).

Lembrei-me que, em 1995, a escritora Patrícia Melo, publicou o livro O matador, que se tornou o filme O homem do ano, em 2003. O tema? Na mesma linha de Rubem Fonseca, a violência urbana. Maiquel, o protagonista, torna-se um criminoso brutal, aplaudido pela população, bem pago pelos mandantes dos crimes, até a sua derrocada, tornando-o vítima da mesma violência que ele protagonizava.

Elaine dos Santos

Voltar

Facebook




Reflexões sobre o que é Literatura

Elaine dos Santos: ‘Reflexões sobre o que é Literatura’

Elaine dos Santos
Elaine dos Santos
Imagem criada por IA do Bing – 05 de setembro de 2025,
às 10:12 PM

Professores graduados em Letras, mas que têm uma forte preferência pelos estudos literários, costumam debater-se entre o que é Literatura e o que não é Literatura.

Aliás, eis um dos grandes problemas diante alunos ‘novatos’ nos cursos de graduação é ensinar-lhes que escritos de autoajuda ou manuais de vendas não são exatamente o que eles devem considerar Literatura para ser estudada, analisada.

Recentemente, uma declaração da professora, pesquisadora, tradutora, Aurora Formoni Bernardini gerou controvérsias, visto que ela valoriza forma, conteúdo e novos horizontes no texto literário. De fato, a Literatura que agrada o nosso juízo estético (que é diferente de gosto estético, como estudiosos, como críticos, é aquela que consegue equilibrar forma e conteúdo.

Antes, porém, uma explicação: Hans Robert Jauss, em uma conferência na Alemanha, em 1967, acrescentou o leitor como parte da tríade que configura uma obra literária. Quanto mais uma pessoa lê, maior o seu horizonte de expectativas. Mas está em pauta o seu gosto literário.

Quem leu as grandes epopeias gregas, como ‘Ilíada‘, ‘Odisseia‘; ou ‘Eneida‘, marco fundacional da cultura romana ou ‘Os Lusíadas‘, em que Camões canta a saga dos grandes navegadores, lerá com maior criticidade um poema que se proponha ser épico.

Quando Bernardini aponta ‘novos horizontes’, é impossível não pensar em ‘Os sofrimentos do jovem Werther‘, de Goethe, publicado em 1774. Trata-se de um romance de um amor arrebatador, conflituoso, em que a vida só teria sentido se a amada estivesse com Werther. Traz um tom autobiográfico, intimista – que, neste caso, revela-se por cartas amorosas.

Dentro de um cenário que prenuncia a Primeira Revolução Industrial, a transição entre a racionalidade burguesa e o derramamento amoroso do Romantismo, Werther traz o homem em um embate individual, uma luta consigo mesmo, opondo-se, pois, sentimentalismo e industrialização.

Esse desencantamento social, diante de uma transformação ainda não concretizada plenamente: a Revolução Industrial, teria feito muitos jovens desistirem da vida do mesmo modo como Werther, a tal ponto que a obra foi proibida na Alemanha em anos posteriores.

Mais perto do nosso horizonte, penso que ficariam ‘Madame Bovary‘, de Flaubert; ‘O Primo Basílio‘, de Eça de Queiróz, e a nossa Capitu em ‘Dom Casmurro‘, de Machado de Assis, que introduzem o tema do adultério. Evidentemente, aqui, está toda uma crítica que rompe com o ideário do Romantismo até então em voga: “Casaram-se e foram felizes para sempre” (ou a empresa romântica em que sogro e genro estabelecem uma sociedade).

Mas conteúdo e forma? Na graduação, ao trabalhar com ‘Os Lusíadas’, os meus alunos impressionavam-se com a quantidade de versos compostos em métrica decassílaba (dez sílabas métricas). Refiro-me ao cuidado de um poeta que se debruça sobre os seus versos e seleciona palavras, sinônimos de palavras, sons, classes de palavras que lhe deem a rima rica, perfeita.

O Parnasianismo, que vigorou entre nós, no final do século XIX, foi exímio nesse cuidado com a forma, que acabou desconsiderando o conteúdo. Alberto de Oliveira é o exemplo mais bem acabado, uma vez que, em especial, Raimundo Correa traga um romantismo tardio.

O início do século XX, as transformações sociais e tecnológicas impressionaram o ser humano, sobretudo, europeu: carros, locomotivas, avião. Era preciso um texto mais ágil, tão veloz como a máquina que se apresentava. Rompeu-se com a forma.

O horror da Primeira Guerra Mundial também provocou esse rompimento. O avião, por exemplo, foi usado como arma de guerra. O Holocausto nazista, isto é, a matança de judeus na Alemanha, por sua vez, gerou a Literatura de Testemunho. Na verdade, em todas as situações em que o ser humano se vê defrontado com a violência e falta de liberdade, as letras são uma salvação. Prosperaram textos intimistas durante a pandemia.

Colocar-me-ia a favor de Aurora Formoni Bernardini: nem todos os textos serão sucesso, nem todos os textos serão eternos, alguns ficarão como boas lembranças. Falta-lhes literariedade (nos meus textos, identifico essa falta! Não é à toa que opto por crônica, quase ensaio).

É importante, no entanto, afirmar: Maria Firmina dos Reis produziu e publicou os seus textos no Brasil escravocrata, era mulher, era mestiça, era professora, usou um pseudônimo e, ainda assim, com a passagem dos anos, foi redescoberta, post-mortem, e é reconhecida como a primeira romancista do Romantismo no Brasil – não nos intimidemos. Permito-me parafrasear Camões: Os tempos mudam, as vontades mudam, tudo é composto por mudança. Quem sabe?

Elaine dos Santos

Voltar

Facebook




Reflexões sobre o mês de agosto

Elaine dos Santos: ‘Reflexões sobre o mês de agosto’

Elaine dos Santos
Elaine dos Santos
Imagem criada por IA do Bing - 05 de agosto de 2025, às 11:10 PM
Imagem criada por IA do Bing – 05 de agosto de 2025, às 11:10 PM

Dizem (ah, como as pessoas dizem!) que sou muito cética em relação ao conhecimento popular (ah, se elas soubessem o que eu sei!). Estamos em pleno mês de agosto, mês do desgosto, segundo enuncia a sabedoria popular.

O filósofo grego Aristóteles , contrapondo-se ao seu preceptor, Platão, enunciou a mimese, isto é, a representação das coisas feitas pelo artista. Para Platão, o artista fazia uma representação de segunda ordem. As coisas existiam no mundo das ideias e o marceneiro ou o carpinteiro representavam-nas como objetos físicos.

Há um romance de Rubem Fonseca, chamado ‘Agosto‘ e que enfoca os acontecimentos de agosto de 1954, que desembocaram na morte do ex-presidente Getúlio Vargas, que me parece exemplar quando abordamos a mimese e, ao mesmo tempo, a fatídica fama do mês de agosto.

Como se trata de ficção que tem a História como pano de fundo, não existe o propósito de contar A verdade dos fatos, mas uma possível verdade, dentre tantas que, talvez, com o decorrer dos anos, ainda possam vir à tona. Sim, e daí?

O leitor do romance ‘Agosto’, de Rubem Fonseca, pode ler os eventos ficcionalizados ‘a gosto’. Lembrei-me disso porque vivemos uma época em que as pessoas leem o cotidiano acreditando que existe apenas uma e absoluta verdade, como se determinados políticos, religiosos detivessem a ‘fórmula secreta da verdade’.

A propósito: que verdade?

Segundo a tradição, a desventura do mês de agosto teria começado na Península Ibérica quando navegantes partiam em suas caravelas para longas viagens. Era o tempo das grandes navegações. Na praia, ficavam mães, namoradas, esposas, filhas que pranteavam o destino dos homens da família… Era sempre uma incerteza sobre o retorno.

No entanto, o século XX (20) foi pródigo em reforçar a má fama do mês de agosto (ou teria sido mero acaso?): a Primeira Guerra Mundial teve início em agosto (na verdade, a data oficial é 28 de julho de 1914, mas a responsabilidade recaiu sobre agosto); a Segunda Guerra Mundial teria encerrado com um armistício assinado em 14 de agosto de 1945; por outro lado, é impossível não registrar o horror das duas bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki, em 6 de agosto e 9 de agosto de 1945, respectivamente.

No Brasil, além da morte de Getúlio Vargas, em 1954, é possível registrar a renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961, o que criou um clima de grande instabilidade política, visto que o seu vice-presidente, João Goulart, não era bem-visto pelos militares, que temiam a sua posse. Para apaziguar os ânimos, o Brasil viveu a experiência parlamentarista, quando Tancredo Neves assumiu como primeiro-ministro.

Cabe lembrar ainda o estranho acidente que vitimou Juscelino Kubitschek de Oliveira (JK), ex-presidente, em 22 de agosto de 1976. Diversas teses envolvem o acidente, como sabotagem mecânica, envenenamento do motorista etc. De qualquer sorte, JK também morreu em agosto.

Consagrado por retratar a violência urbana, Rubem Fonseca, no livro ‘Agosto’, proporciona-nos essa possibilidade de “’er o mundo’ justamente sob a ótica literária, da mimese, da imitação.

O historiador francês Paul Veyne ensina-nos que quem se dedica à escrita da História oficial não consegue recuperá-la em sua plenitude, vale-se de documentos, depoimentos etc., mas ressalta que, por exemplo, a batalha perdida por Napoleão em Waterloo tem várias nuances: a derrota sob a ótica de Napoleão, sob a ótica dos seus soldados, sob o olhar dos soldados vencedores, por exemplo, não é A História única e definitiva.

Tanto no acidente de JK, que teve o seu mandato como presidente questionado por atos de corrupção; como Vargas que poderia ter sido levado ao suicídio quando as acusações de Carlos Lacerda – corrupção e, na sequência, o crime da rua Tonelero, que teria sido encomendado para matar Lacerda – aproximavam-se aceleradamente do Palácio do Catete, poderiam ter tomado atitudes que fogem à compreensão do historiador e, portanto, dos registros históricos.

Rubem Fonseca, cujo romance foi publicado em 1990, abranda esse sentimento de totalidade – tão caro ao mundo grego antigo – para dar-nos a fluidez do mundo de Baumann, os grandes heróis que a História construiu e ofertou-nos eram ou são seres de carne e osso, dotados de músculos, nervos, vísceras, sangue, ideias que nem sempre se assemelham ao que pensamos, almejamos. Sendo assim, nós necessitamos dar-nos conta que a vida é uma sucessão de fatos inevitáveis, uma sucessão de narrativas.

Erich Auerbach, em seu livro ‘Mimesis‘, por exemplo, é pontual: você pode ler as grandes epopeias gregas – Ilíada e Odisseia – como elas são, ou seja, narrativas fictícias, atribuídas a um poeta, Homero, que não se sabe se existiu.

Por outro lado, ao ler a Bíblia cristã, você necessita assumir uma postura de crer ou não no Deus cristão – e isso não é menosprezo pelo Deus cristão, mas ter a ciência que, no mundo, existem outras religiões, outros deuses, outras crenças.

Por que mesmo que, passados 500 anos, continuamos associando agosto e desgosto?

Elaine dos Santos

Voltar

Facebook




Os nossos, os outros: ‘O vergalho’

Elaine dos Santos: “Os nossos, os outros: ‘O vergalho’”

Elaine dos Santos
Elaine dos Santos
Imagem criada por IA do Bing - 04 de julho de 2025, às 10:04 PM
Imagem criada por IA do Bing – 04 de julho de 2025,
às 10:04 PM

Não ousaria tecer digressões sobre a obra literária produzida por Machado de Assis na exiguidade de um breve ensaio, mas os seus textos são fonte constante de inspiração para refletir sobre o ser humano e a nossa sociedade.

Recentemente, na região central do Rio Grande do Sul, houve um crime (creio que é a palavra mais adequada), em que um agricultor, lenhador, teria investido contra a polícia ambiental e foi morto com três tiros – as imagens foram captadas por câmeras de segurança interna da propriedade, mas nem todas as ações ficam claramente evidenciadas.

A primeira impressão que emergiu (parafraseando Chapolin Colorado: “Quem poderá nos salvar” se a polícia mata? Teria havido uma denúncia feita por vizinhos de desmatamento ilegal, teria sido mera coincidência a presença da polícia ambiental na propriedade. O agricultor teria se agitado, investido contra os dois policiais com um machado.

A segunda questão, que me foi posta pela esposa de um ex-aluno, foi: por que nos choca tanto a morte de um igual se, no Brasil, pessoas são mortas diariamente pelas forças de segurança, quer seja por tiros dirigidos diretamente a elas ou por balas perdidas em tiroteios?

De imediato, o capítulo “O vergalho”, do romance ‘Memórias póstumas de Brás Cubas‘, considerado a primeira obra realista de Machado de Assis, veio à memória.

O narrador seguia pela rua e ouviu os impropérios ditos por um homem ao seu escravo. Achegou-se e encontrou o seu ex-escravo Prudêncio, já alforriado, a bater sem medida em um escravo que adquirira. Solicitou que Prudêncio perdoasse o escravo, o que ele fez sem demora, demonstrando resquícios da submissão absolutamente servil.

Brás Cubas seguiu o seu caminho e passou a tecer reflexões sobre a cena que assistira, sobre a (re) duplicação da violência e ponderando que Prudêncio, que fora seu escravo, cobrava com juros a violência que sofrera.

O Brasil é um país forjado na força, na violência. Os portugueses quando aqui chegaram, quando começou o efetivo povoamento, por volta de 1530, principiaram uma verdadeira chacina do povo indígena que não se resignava à escravidão. Por outro lado, inúmeras mulheres indígenas foram sexualmente violentadas, nasceram mestiços sem pai.

Aliás, esse modo de agir acabou encontrando eco exatamente entre os senhores de engenho, que emprenhavam as suas melhores escravas para, com os filhos mestiços delas, aumentarem a mão de obra nas fazendas. Há registros que se pode buscar na própria História oficial, que escravos homens eram escolhidos para engravidar escravas mulheres para que nascessem crianças mais saudáveis para o trabalho.

Mentalmente, revisito a História do Rio Grande do Sul, que foi feita sob o lombo de cavalos, o estado mais meridional do Brasil, um dos últimos a ser ocupado, região em que vivo na atualidade.

Primeiro, vieram bandeirantes que expulsaram jesuítas portugueses. Quando os jesuítas espanhóis estabeleceram os Sete Povos das Missões, era o tempo dos tropeiros paulistas que vinham em busca do gado para produzir charque e das mulas para o transporte nas Minas Gerais. Nesse caso, valiam-se das mulheres indígenas como empregadas, como amantes, abandonando-as quando partiam, muitas delas encontrando-se grávidas.

A violência entre nós, como ao escravo Prudêncio, que pertencera a Brás Cubas, faz parte do imaginário social. Nos últimos anos, parece ter sido banalizada, bem como a morte – mas a morte do outro: do negro, do homossexual, da mulher. Que estranha sociedade formamos que somente a morte ‘do nosso’, do branco, do agricultor, do reconhecido como trabalhador, consegue nos assustar, comover?

Hoje, como nos tempos de doutorado, quando analisamos o romance ‘O matador‘, de Patrícia Melo, eu tenho medo dessa sociedade. Enquanto comentávamos a obra de Patrícia Melo, uma colega disse: “Mas eles (os pobres, os nascidos na periferia) não têm apego à vida!” Outra colega replicou: “Como tu consegues afirmar isso? Eles, os outros, também tiveram uma mãe que os amou, sonhos que se frustraram, desejos não realizados.” Somos, enfim, todos humanos. Por que essa relação sempre tão violenta e tão ‘comum’?

Elaine dos Santos

Voltar

Facebook




Na era da tecnologia: seres humanos em amadurecimento’

Elaine dos Santos
‘Na era da tecnologia: seres humanos em amadurecimento’

Elaine dos Santos
Elaine dos Santos
Imagem criada por IA do Bing - 17 de junho de 2025, às 09:19 PM
Imagem criada por IA do Bing – 17 de junho de 2025, às 09:19 PM

Integro a geração ‘baby-boomer‘, nasci em 1964, devo reconhecer, assim, que o computador e a internet somente ingressaram na minha vida no final do século XX, entre 1999 e 2001.

Durante o mestrado, cursado justamente entre 1999 e 2001, um dos professores enviava-nos e-meios, íamos ao Centro de Processamento de Dados (CPD) da universidade, o material era copiado para um disquete, que era aberto em casa para que tivéssemos conhecimento do conteúdo.

Nos dias posteriores, com as tarefas resolvidas, geralmente, um sem-número de leituras – fiz mestrado em Literatura Brasileira -, regressávamos ao CPD para enviar a resposta, via e-meio.

Com o passar dos anos e o desenvolvimento das atividades profissionais, tornei-me, como costumo brincar, “rato de internet”, não há o que eu não leia, com o computador devidamente configurado para línguas estrangeiras de meu interesse.

Devo acrescer que, quando criança, as nossas pesquisas escolares eram feitas na biblioteca da própria escola, muito singela, e na famosa Enciclopédia Barsa, que o delegado de polícia emprestava para a meninada.

Para muitos idosos, não há como negar que o ritmo acelerado das inovações tecnológicas criou uma barreira que os impede de acompanhar as mudanças, dificultando a inserção digital.

Devo admitir que eu, por exemplo, detesto ‘smartphones’ e não oporia resistência se abolissem os inadequados e invasivos aplicativos de mensagem. Tudo bem, eu sou revisora de textos e preciso de concentração para trabalhar!!

Causou-me surpresa, no entanto, dias atrás, ao conversar com senhoras entre 80 e 90 anos, trocando ideias sobre o uso da inteligência artificial e as diferentes formas de uso que têm experimentado. Deduzi que há casos e casos. Se alguns enfrentam dificuldades para manusear aplicativos de banco, por exemplo, outros estão bem além.

Embora seja um tanto refratária aos aplicativos de mensagem, é forçoso reconhecer que eles evitam o isolamento social, o que, por outro lado, é uma marca da velhice, quando os filhos, os netos têm outros afazeres e a solidão se instala.

De minha parte, que não tenho filhos e netos, acostumei-me, desde muito cedo, com o benefício da leitura – além disso, sou revisora de textos e a leitura configura-se como um aprendizado diário.

A tecnologia novamente insere-se como um aparato importante. Para a revisão de textos, recebo-os via e-mail, reviso-os diante de um computador e, para divulgar o meu trabalho, faço uso de redes sociais. Sei que muitas pessoas optam pela leitura de obras literárias por intermédio de ‘e-books’, o que pode facilitar-lhes em função da capacidade visual (ou não).

Alternativa interessante apresentou-me uma agente de saúde: a mescla de um grupo de leitura ou uma roda de conversa, em que aqueles com maior facilidade para ler façam a leitura de um pequeno texto, que seja o desencadeador de uma conversa, de lembranças, de histórias.

Afinal, velhice não é apagamento, não é invisibilidade, mas um processo da vida em que a maioria dos que envelhecem têm experiências, histórias para socializar.

Profa. Dra. Elaine dos Santos

Voltar

Facebook




Entre falar, escrever e, quem sabe, expressar-se

Elaine dos Santos

‘Entre falar, escrever e, quem sabe, expressar-se’

Elaine dos Santos
Elaine dos Santos
Imagem criada por IA no Bing. 1º de março de 2025, às 08:02 PM
Imagem criada por IA no Bing. 1º de março de 2025, às 08:02 PM

Já fui insuportavelmente exigente quanto à minha escrita, sobretudo, na produção de textos acadêmicos autorais. Sou professora licenciada em Letras e, embora tenha ministrado raríssimas aulas especificamente de Língua Portuguesa – dediquei-me ao trabalho com Literatura -, é minha obrigação pautar-me pelo uso da língua chamada culta, aquela ditada pela gramática.

Nos últimos anos, especialmente, após a aposentadoria – ainda que eu continue trabalhando como revisora de textos acadêmicos -, precisei reinventar-me em função de um ‘ranço’, implicância com a minha escrita em redes sociais.

Dizem que escrevo demais, que escrevo difícil, que a minha linguagem é rebuscada, que me valho de metáforas, de ironias. Eu trabalhei, quase 20 anos, com Literatura: precisei ler, interpretar, entender textos canônicos/clássicos de Literatura, é parte do meu trabalho, não sei como fazer diferente.

Por outro lado, com muita frequência, sou procurada por pessoas que, preparando-se para concursos, processos seletivos que envolvem provas de português, dizem: “Como é difícil ler, entender e responder questões de análise e interpretação de textos!”

Essas mesmas pessoas reconhecem que há uma grande distância entre o português que falam e o português que leem e escrevem. A culpa é da gramática? A culpa é do falante?

Existem alguns índices que apontam uma qualificação pessoal, profissional de um indivíduo. Algumas pessoas acreditam que ter o carro do ano, ter uma casa imponente sejam ‘sinais de status’. Outras avaliam que roupas de grife ou viagens a Europa diferenciam-nas dos ‘relés mortais’.

Nós, usuários da Língua Portuguesa padrão, particularmente, na escrita, consideramos duas coisas fundamentais: ter algum conhecimento que nos permita falar ou escrever – com certa propriedade – sobre os assuntos em pauta na contemporaneidade e fazê-lo com uma escrita clara, sem desvios graves de ortografia, pontuação, acentuação, concordância.

Oswald de Andrade, um dos ícones da primeira fase do Modernismo no Brasil, escreveu um poema conhecidíssimo: “Dê-me um cigarro / Diz a gramática /Do professor e do aluno / E do mulato sabido / Mas o bom negro e o bom branco /Da Nação Brasileira / Dizem todos os dias / Deixa disso camarada/ Me dá um cigarro”.

É preciso pontuar dois aspectos: Oswald de Andrade faz parte do grupo iconoclasta, que se propunha a quebrar todas as normas, todas as regras, agindo sob influência das vanguardas europeias. A sua proposta não se conservou ‘ipsis litteris‘por muito tempo, a segunda fase do Modernismo em termos de poesia voltou-se com fervor ao clássico soneto, rimas ricas, métrica decassílaba.

Não somos astros de primeira grandeza da Literatura Brasileira e, em nome de uma suposta criatividade, não convém transgredir ortografia, concordância, regência apenas para ‘parecer diferente’. Se as pessoas não se entendem em redes sociais, se reclamam de qualquer erudição, como fazê-las compreender quando nos desviamos de um padrão meramente aceito pelos países de Língua Portuguesa.

Se cada pessoa ‘inventar’ a sua Língua Portuguesa, não terão sentido os inúmeros acordos ortográficos entre os países que usam essa língua e, cá entre nós e o mundo, não é todo dia que surge um Riobaldo na pena de Guimarães Rosa.

Capricho, cuidado na escrita. Muita transpiração: escreve, reescreve, revisa são alguns pontos básicos para todos nós, poetas, prosadores, estudantes, concurseiros.

Profa. Dra. Elaine dos Santos

Voltar

Facebook