Reflexões para um início de ano
Elaine dos Santos: ‘Reflexões para um início do ano’
É lugar comum pensar a cultura do Ocidente a partir da Grécia Antiga e, para mim, como professora de Literatura, as duas epopeias atribuídas a Homero são o ponto de referência.
Detenho-me, porém, no retorno de Ulisses (Odisseu) para a sua casa em Ítaca, depois da Guerra de Troia, o que é narrado na ‘Odisseia’.
A guerra, como se sabe, durou dez anos até o seu desfecho e Ulisses, em seu retorno, demorou-se mais dez anos, detido por armadilhas deliberadas dos deuses do Olimpo.
Em Ítaca, a sociedade (conselheiros do Estado, aristocracia, puxa-sacos em geral) exigia que Penélope, mulher de Ulisses, encontrasse um novo companheiro e houvesse o casamento, afinal, o reino precisava de um homem para governá-lo.
Penélope valeu-se de uma artimanha. Prometeu que, ao concluir determinada obra (como tecelã), ela escolheria o novo marido. Contudo, Penélope tecia o material durante o dia e desfazia o trabalho à noite, prolongando-se a espera por Ulisses.
Ele, finalmente, retorna em andrajos, mas é reconhecido por Euricleia, a ama que o cuidara desde a infância; depois, pelo filho e, finalmente, pela mulher.
Havia, porém, um desafio: o novo esposo de Penélope deveria saber desarticular algumas ‘armadilhas’ do palácio que apenas Ulisses conhecia, ou seja, segredos partilhados pelo casal.
Muito resumidamente, eis a trama da epopeia (contá-la, o que não é o propósito aqui, demandaria muito tempo e espaço). O que me faz retomar a história de Ulisses e Penélope tem objetivos bem claros para este início de ano: amor, fidelidade, inteligência, perspicácia – travessia.
Ulisses foi o grande articulador para que a guerra contra Troia terminasse, ao convencer Aquiles a engajar-se às tropas e ao articular o ‘presente de grego’, isto é, o cavalo de madeira presenteado aos troianos como uma suposta desistência grega.
A sua volta para casa também é um show de autocontrole, de sabedoria.
Em Ítaca, Penélope não agia diferente do marido, ademais, mostrava-se fiel aos laços que os uniam.
Eu sei que os grandes heróis das epopeias e das tragédias gregas são seres humanos acima da média comum, ainda assim, a exemplaridade desses comportamentos pode servir para pensar a sociedade atual – tão líquida, tão fluída, conforme Baumann, tão sem paciência, tão desamorosa.
Além disso, é preciso referir Euricleia, fiel a Ulisses, que mantém o segredo de seu retorno até que ele seja declarado como o ‘novo’ rei de Ítaca.
Reitero: ainda que seres de caráter elevado, os heróis e as heroínas gregos ensinam-nos a importância do cultivo de certos sentimentos e determinadas atitudes cujo resultado acaba sendo vitorioso.
A inteligência e a perspicácia de Penélope na estratégia de tecer e desfazer o seu trabalho demonstra a paciência que nos falta: quem não se irrita se uma mensagem de aplicativo não for respondida instantaneamente?
As habilidades de Ulisses para vencer a resistência de Aquiles, surpreender os troianos, vencer os ardis impostos no retorno são um exemplo paradigmático daquilo que nos falta no cotidiano: tudo precisa ser resolvido com fúria, com violência. Não há tolerância.
Muitas vezes, a urgência, a truculência custam a vida de outros seres humanos, impedem o diálogo, determinam rupturas.
O silêncio – surdo e mudo – entre Ulisses e Euricleia é-me exemplar: será que precisamos, de fato, dizer para os nossos verdadeiros amigos as dores que nos vão na alma?
Pensei nessas e outras tantas coisas na ‘virada de mais um ano’, em que se apontam tiranos, ditadores, enquanto todos nós nos impomos a tirania do consumo, da urgência do ter.
Desconfio que eu estou ficando velha…
Prof. Dra. Elaine dos Santos