O Português que a África fala

Fidel Fernando: Artigo ‘O Português que a África fala’

Fidel Fernando
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Imagem criada por IA do Bing - 22 de Julho de 2025, às 23:33 PM
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às 23:33 PM

A língua é muito mais do que um instrumento de comunicação: é um campo de disputas simbólicas, culturais e políticas. No contexto afro-brasileiro (e, por extensão, no angolano), ela revela marcas profundas de uma história racializada, feita de resistências e ressignificações.

Ao analisarmos o português falado no Brasil e em Angola, torna-se evidente que a herança linguística vai além da simples influência colonial lusitana. A oralidade, os sotaques, as escolhas lexicais e as estruturas gramaticais são testemunhos vivos de um passado de opressão e de um presente ainda marcado por desigualdades. Nas ruas, nas igrejas, nas famílias e nas salas de aula, o modo de falar continua a ser vigiado, corrigido e, muitas vezes, estigmatizado.

Essa vigilância está directamente relacionada ao preconceito linguístico, que, na prática, opera como uma forma velada de racismo. Desde os primeiros contactos entre os africanos escravizados e o português europeu, houve uma imposição violenta da língua do colonizador. Contudo, essa assimilação nunca foi completa. O português, tal como é falado hoje no Brasil e em Angola, carrega traços linguísticos de línguas africanas, sobretudo das línguas bantu, como o kimbundu, o umbundu e o kikongo.

Exemplos dessa influência abundam. Mendonça (1933, apud Severo, 2019) destaca o impacto da pronúncia de origem africana em formas como ‘foya’ por ‘folha’, ou ‘cafezá’ por ‘cafezal’. Entre os fenómenos mais relevantes está o rotacismo: a troca do som [l] por [r], como em ‘frecha’ por ‘flecha’. Segundo Cambolo (2025), isso ocorre por partilharem o mesmo ponto de articulação. É uma adaptação oral legítima, mas frequentemente ridicularizada.

Em Angola, essas ocorrências também são comuns. O caso de ‘sarsicha’ por ‘salsicha’, ‘sorta’ em vez de ‘solta’, ‘barde’ no lugar de ‘balde’, ‘sardo’ por ‘saldo’ são vários exemplos ilustrativos. No entanto, em vez de serem reconhecidas como heranças linguísticas, essas variações são, muitas vezes, tratadas como ‘erros’, especialmente no ambiente escolar.

Outro fenómeno recorrente é a aférese, tal como em ‘mor’ por ‘amor’ ou ‘nhado’ por ‘cunhado’. Estas formas são naturais em contextos familiares, mas tornam-se alvo de correcções quando atravessam para espaços escolares elitizados. O que se observa aqui é a tensão entre o português da vivência e o português do poder, onde quem define o que é “correcto” define também quem pode ser incluído socialmente.

A questão do plural também exemplifica a influência bantu. Como explica Domingos (2024), construções como “as casa grande” derivam da lógica gramatical das línguas bantu, que usam prefixos e não sufixos para indicar número. O que se interpreta como erro de concordância é, na verdade, uma estrutura coerente com outra lógica linguística.

O preconceito linguístico afecta especialmente as crianças negras. Quando são corrigidas com desprezo por falarem como os seus avós ou vizinhos, o que está em causa não é apenas a língua, mas a própria identidade. A isso soma-se a dimensão de género: as mulheres negras são as mais vigiadas, corrigidas e silenciadas. Gonzáles (1984) evidencia esta dupla opressão ao lembrar o papel social das mulheres negras historicamente subordinadas e a forma como a sua fala é tratada.

Neste contexto, a escola desempenha um papel crucial. Pode perpetuar o preconceito ao impor uma norma-padrão afastada da realidade dos alunos, ou pode tornar-se espaço de valorização das múltiplas formas de falar português. A minha experiência como professor mostrou-me que, ao respeitar a oralidade dos alunos, é possível promover maior envolvimento e sucesso académico. Ensinar a norma culta não deve significar apagar as outras formas de falar, mas, sim, ampliar o repertório linguístico com consciência crítica.

O português que se fala no Brasil é fruto de séculos de convivência, imposição, resistência e criatividade. Como afirma Andrade (2020), os sons, a melodia e o vocabulário foram moldados por vozes africanas. Essa herança está viva, mesmo quando disfarçada de “erro”.

Em última análise, aceitar a diversidade linguística é aceitar a pluralidade do povo que compõe o Brasil e Angola. É reconhecer que a língua do poder foi, sim, transformada pela força e pelo saber dos povos africanos. E é, sobretudo, recusar a ideia de que há uma única forma legítima de falar português. Nesta hora, lembramo-nos do questionamento de Gonzáles (1984), “quem que é o ignorante?”

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Horizontes literários

Magna Aspásia Fontenelle: ‘Horizontes literários’

Card dos 25 anos da CPLP
Card dos 25 anos da CPLP

No dia 19 de novembro de 2024, São Luís, capital do Maranhão e conhecida como a ‘Atenas Brasileira’, reafirma sua importância como cenário de grandes eventos que celebram a língua portuguesa

A Academia Maranhense de Letras e a Academia Mineira de Letras unem-se, em São Luís, Maranhão, para celebrar a riqueza da Língua Portuguesa. O evento homenageia personalidades ilustres e marca o lançamento da obra ‘Nos Vinte e Cinco Anos da CPLP’, organizada pelo Embaixador Lauro Moreira e pelo escritor Dr. Rogério Faria Tavares, reafirmando o compromisso com a valorização cultural e linguística dos países lusófonos.

No dia 19 de novembro de 2024, São Luís, capital do Maranhão e conhecida como a ‘Atenas Brasileira’, reafirma sua importância como cenário de grandes eventos que celebram a língua portuguesa. Nesta ocasião histórica, a cidade presta tributos a figuras notáveis, como os presidentes José Sarney e Mário Soares, além do diplomata mineiro José Aparecido de Oliveira, reconhecidos e celebrados por suas contribuições inestimáveis à cultura e à valorização da língua lusófona.

A ocasião será enriquecida pelo lançamento do livro ‘Nos Vinte e Cinco Anos da CPLP, organizada   pelo Embaixador Lauro Moreira, presidente do Observatório da Língua Portuguesa, pelo escritor Dr. Rogério Faria Tavares. A obra reflete a trajetória e o impacto da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), criada em 1996, destacando seu papel como elo cultural e linguístico que une e fortalece as nações lusófonas.

A Fundação da CPLP e o Primeiro Encontro Lusófono

A jornada para a criação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) teve início na década de 1980 e alcançou um marco histórico em 1989, quando São Luís, a ‘Atenas Brasileira’, recebeu o Primeiro Encontro de Chefes de Estado e de Governo dos Países de Língua Portuguesa. Inspirado pela grandiosidade dos versos de Gonçalves Dias: “Minha terra tem palmeiras onde cantam os sabiás; as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá, o evento destacou a capital maranhense como símbolo de união linguística e cultural entre as nações lusófonas. 

 Nesse cenário, as palavras de Fernando Pessoa, “Minha pátria é a língua portuguesa,” ecoaram como uma síntese perfeita do espírito de unidade e identidade que permeou os diálogos fundamentais para a criação da CPLP. Esses ideais se concretizaram em 17 de julho de 1996, com a oficialização da Comunidade na cidade de Lisboa, Portugal, consolidando a língua portuguesa como um poderoso elo cultural e linguístico entre os povos lusófonos. 

A Academia Maranhense de Letras e a Academia Mineira de Letras

Fundada em 10 de agosto de 1908, a Academia Maranhense de Letras (AML) é a instituição literária mais antiga do Maranhão. Com sede no imponente prédio inaugurado em 1874, a AML tem como missão preservar e difundir a riqueza da língua portuguesa. Entre seus fundadores destacam-se Antônio Lobo, Alfredo de Assis Castro e Barbosa de Godóis.

Já a Academia Mineira de Letras (AML-MG), criada em 25 de dezembro de 1909, também se destaca por sua sólida atuação em prol da cultura e da literatura. Fundada em Juiz de Fora, seus membros, como Guimarães Rosa, consolidaram a instituição como um pilar do pensamento literário brasileiro

Homenagens e Reflexões

O evento em São Luís será um tributo à contribuição de intelectuais e estadistas que elevaram a língua portuguesa à categoria de símbolo universal de diálogo e integração. Nas palavras de Luís de Camões, “Cantando espalharei por toda a parte, se a tanto me ajudar o engenho e a arte.” Assim, a celebração se torna a não apenas um marco histórico, mas uma reafirmação do compromisso com a preservação e a expansão do idioma e da cultura lusófona.

Sobre os Autores

Lauro Moreira, embaixador e escritor, é reconhecido por sua contribuição à diplomacia cultural e pela liderança no Observatório da Língua Portuguesa. Com uma vasta carreira, Moreira foi o primeiro embaixador do Brasil na CPLP e é autor de obras que exploram as raízes e conexões da língua portuguesa.

Rogério Faria Tavares, presidente da Academia Mineira de Letras, combina sua formação jurídica e literária em obras que dialogam entre o Direito e a Literatura. Com livros publicados e uma atuação cultural destacada, Tavares é um defensor da preservação da memória e do pensamento crítico.

Eventos como este, São Luís, o Maranhão, Academia Maranhense de Letras e a Academia Mineira de Letras, reafirmam seus papeis como guardiões do patrimônio linguístico e cultural, perpetuando a rica herança da língua portuguesa como símbolo de união, identidade e progresso.

Magna Aspásia Fontenelle

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Vocabulário, ironia, metáfora: o falante de língua portuguesa em marcha a ré

Elaine dos Santos: ‘Vocabulário, ironia, metáfora: o falante de língua portuguesa em marcha a ré’

Elaine dos Santos
Elaine dos Santos
Vocabulário, ironia, metáfora: o que é isso, meu Deus?!
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Vocabulário, ironia, metáfora: o que é isso, meu Deus?!
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Quando concluí a graduação no curso de Letras pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) https://www.ufsm.br/, no final do século passado, além do estágio em sala de aula, diante dos alunos, foi-nos solicitada uma aula expositiva de 50 minutos sobre um determinado conteúdo diante de nossos colegas de estágio, fazendo, claro, parte da avaliação.

Imediatamente, todos os meus colegas sabiam que eu escolheria o poeta Gregório de Mattos Guerra e os seus poemas satíricos. Naquela época, quando findava o curso de graduação, final do século XX, Gregório, o Boca do Inferno, e Manuel Maria Barbosa du Bocage, o poeta português, eram os meus preferidos pela forma totalmente crítica com que viam a sociedade, pela maneira irônica com que manifestavam essas críticas.

Ocorre-me ainda outro texto que sempre teve a minha mais profunda simpatia: ‘Cartas Chilenas‘ https://pt.wikipedia.org/wiki/Cartas_Chilenas, do Arcadismo brasileiro, atribuídas a Claudio Manoel da Costa e Tomás Antonio Gonzaga, em que eles narram as estrepolias do governador de Minas Gerais, como se ele fosse o governador chileno. O Brasil sempre foi um território propício para corrupção, propina, governantes despreparados e sátira / ironia escrachada.

Há uma ironia mais requintada, que exige experiência do leitor, que pode ser encontrada nas obras realistas do português Eça de Queiroz e parece-me que o exemplo mais claro está em ‘O crime do Padre Amaro‘, que é uma crítica contundente à sociedade portuguesa: aristocracia e clero. Mas (cá entre nós e o mundo), o Brasil produziu um esplêndido prosador responsável por obras que são primores em ironia – eu, pessoalmente, amo ‘Esaú e Jacó‘.

O autor/prosador que me refiro, claro, é Machado de Assis e, em particular, o romance ‘Memórias póstumas de Brás Cubas‘, em que um narrador-defunto ou um defunto-narrador assume a fala e dedica as suas memórias ao verme que primeiro roeu as suas carnes. Sabemos todos (Erico Verissimo explorou essa máxima muito bem em ‘Incidente em Antares‘ que mortos e loucos não têm credibilidade e eles podem dizer tudo que lhes aprouver. No caso dos mortos, não se pode matá-los. No caso dos loucos, é preciso comprovar que são, de fato, loucos – de resto, é calúnia, difamação, inveja e afins.

Essa reflexão literária, porém, tem um propósito bem real, nada irônico. Recentemente, retornou à pauta, inclusive, pelas redes sociais, mas também em blogs, jornais e revistas, o termo ‘brainrot‘, que se poderia dizer algo equivalente à podridão cerebral, embora não seja um eventual distúrbio reconhecido por psiquiatras ou neurologistas.

Trata-se, na verdade, de uma espécie de vício em conteúdos fúteis/inúteis, consumidos à exaustão em redes sociais – a mera rolagem de postagens, sem aprofundar qualquer assunto, sem aprendizagem, com qualidade duvidosa. Muitas vezes, uma compulsão por eventos negativos: assaltos, acidentes automobilísticos, assassinatos etc. Qual o ganho individual disso?

Por outro lado, estudos têm apontado (e não precisa nem pesquisar muito para ver as grandes celeumas em redes sociais) a dificuldade para escrever e interpretar textos. Em língua portuguesa, usamos a sequência SVC – sujeito, verbo e complemento para produzir uma oração frasal. Quem respeita? E pontuação? Cadê? Em muitos casos, inexiste.

Chego à questão da ironia e da metáfora. Os mesmos estudos, que já mencionei, referem que há pessoas com uma gigantesca incapacidade para compreender duas figuras de linguagem simplórias para quem, por exemplo, assistia ao programa ‘Os trapalhões‘; um pouco mais elaboradas, talvez, em outros programas televisivos já fora do ar.

Cito pesquisas de Astrides Farias de Lima Oliveira, Aretuza Ladeia de Lima e Vanessa Polli, para não me estender. Preocupa-me o caminho que tomamos se uma pessoa não tem vocabulário para expressar-se com clareza e, para além disso, se uma pessoa se sente ofendida porque não compreende uma figura de linguagem que, incrivelmente, fez sucesso sob a pena do Boca do Inferno, de Bocage, de Eça de Queiroz, de Machado de Assis, passados 400, 300, 200 anos. Estamos andando na contramão, desaprendendo a língua portuguesa?

Prof. Dra. Elaine dos Santos

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