“A substância: ‘A matéria de que os sonhos são feitos?'”
Ao final do clássico Noir de 1941, ‘O Falcão Maltês’, o detetive Sam Spade (Humphrey Bogart), tem em suas mãos a estatueta responsável por mortes, ganância e dor, e ao ser indagado a respeito do artefato, responde: “É a matéria de que os sonhos são feitos”. Dinheiro? Poder? A resposta é intuitiva, a ilusão. Inquestionável que as pessoas, não raro, vivem se mãos dadas a ela. Nos últimos tempos, algumas produções têm sido distribuídas nos circuitos de cinema e streaming com forte hype nas redes sociais, fazendo até mesmo, que os títulos sejam julgados ou criticados pelos espectadores antes da sessão.
O filme ‘A Substância’, lançado recentemente, foi recebido com antecipação pelo público, prometendo uma roupagem diferente do que vem sendo produzido, causando controversas nas várias mostras na qual foi exibido.
O título inovador, ao mesmo tempo, rememora o conhecido, entrelaçando de maneira extremamente eficaz os vieses psicológicos e mais gráficos. E, quando se menciona o body horror, ou terror corporal, comumente o diretor canadense
é lembrado, não sem razão de ser, tendo em vista que o realizador foi responsável por filmes icônicos como ‘A Mosca’, ‘Rabid – Enraivecida na Fúria do Sexo’, ‘The Brood, Filhos do Medo’ e ‘Videodrome’.
No entanto, não se olvida de que as manifestações corporais mais chocantes em tom de coadjuvação à trama remontam, até mesmo, ao cinema mudo francês e produções das décadas de vinte e trinta, perpassando a aura japonesa do sobrenatural, de forma mais relavada nos anos sessenta. A partir dos anos 2000, uma redescoberta de estilos e subgêneros, inclusive no panorama nacional, tem revitalizado o cinema contemporâneo, não há de se negar.
Em substância, dirigido e roteirizado por Coralie Fargeat (de Vingança), Demi Moore vive a estrela veterana Elisabeth Sparkle, que ao ver sua carreira em declínio e ante a dificuldade em aceitar o envelhecimento, faz uso de uma droga experimental que lhe traz novamente a beleza e o corpo jovem, o que é descrito como a versão melhorada de si mesma. Como já é esperado, o preço a pagar é alto. Transformando-se em sua formatação mais jovem, a modelo Sue (Margaret Qualley), logo conquista a fama fazendo com que ela retome o seu lugar na TV, ainda que por meio de sua “versão” em tom de alter ego.
A partir dessa premissa, algumas questões são trazidas à tona, ainda que indiretamente. Deparamos com o fato de que Sue/Elisabeth está disposta a atrair e trair a todos a fim de firmar-se no estrelato, consumindo de maneira mais desbragada a energia de sua criadora, cuja escalada atinge seu ápice no momento que esta traição passa a ser dirigida a si própria.
A par disso, a linha tênue do limite em relação à ditadura do corpo, da moda, do tempo e da suposta adaptabilidade humana são questionados. No longa, as realizações da estrela já não mais em ascensão, são por ela anuladas, ao passo que trava lutas diárias com a passagem do tempo, cenário intensificado exponencialmente pela indústria do entretenimento que monopoliza a juventude, ameaçando sua sobrevivência social, tal como se enxerga em relação ao seu derredor. O corpo não é o mesmo de quando teve seu nome gravado na calçada da fama em Los Angeles, até que num acaso cotidiano, se depara com a substância que intitula a história. Ao ser injetada, um novo ser irrompe, literalmente, de seu interior, fazendo com que possa novamente galgar um lugar ao sol artificial dos holofotes da fama.
À frente do antigo programa de sua versão original, Sue conquista com sua popularidade, formas e carisma. Por óbvio, assim como os toxicômanos atingem um limite de prazer que não mais pode ser ultrapassado e que coexiste à constante abstinência, desenha-se um momento em que as exigências de sua nova realidade cobram o pedágio. Ciente de tais provocações, as constantes mutações e momentos chocantes de terror corporal não impressionam tanto quanto a mensagem por debaixo casca/pele.
Decerto, uma sociedade a cada dia mais doente e dependente de medicações, indissociável da terapia, são elementos que assomam à mente do espectador de forma frenética. Pertinente ainda traçar um paralelo com a famosa de história de Robert Louis Stevenson, ‘O médico e o Monstro’, pois assim como o Dr Jekyll não mais pode diferenciar a si próprio do pérfido Mr. Hyde, a partir de qual estágio – talvez irreversível – a personagem não consegue, ao mirar o espelho, saber a real identidade daquela que lhe encara de volta?
A filosofia socrática suscita a famosa ideia do conhece-te a ti mesmo, como fonte inseparável do ser, evidenciando sua relevância na manutenção do equilíbrio (inclusive citado de forma relevante no filme). Catena já cantou que “narciso acha o feio o que não é espelho”. O final catártico de Elisabeth/Sue reafirma tal proposição.
‘Revista Mystério Retrô. A união do clássico à constante renovação da arte escrita’
As antigas revistas de mistério, não raro, são lembradas com aconchegante sentimento saudosista, e, inclusive, serviram de inspiração a subgêneros de suspense extremamente populares aos amantes dos sustos e calafrios. Inolvidável lembrar da celebrada Ellery Queen’s Mystery Magazine, intitulada a partir do pseudônimo criado pelos autores Frederic Dannay e Manfred B. Lee desde os anos vinte, nos Estados Unidos, especializada em ficção de mistério e crime.
No plano europeu, destacaram-se as tradicionais Mondadori, revistas pulp italianas com primórdios ainda na era fascista, posteriormente migranado de formato para os romances policiais e cinema. Inclusive, delineando as feições fundamentais do subgênero conhecido por Giallo, (em italiano, amarelo e coloração das revistas) e o Poliziotteschi.
Aliás, no cenário literário mundial, as antologias, coletâneas de trabalhos coletivos, seja em desdobramentos poéticos ou em prosa, vêm servindo de lastro ao surgimento de novos talentos e alcance de público mais abrangente.
No Brasil, há quatro anos a Revista Mystério Retrô faz sucesso entre os leitores, título baseado no primeiro romance policial brasileiro, ‘O Mystério’, publicado originalmente no ano de 1920 em formato de folhetim, no jornal carioca ‘A Folha’, já extinto. Idealizado pelo biógrafo e embaixador de Agatha Christie em nosso país, o romancista Tito Prates, o periódico estimula a publicação de autores nacionais, consagrados e iniciantes, atuando como relevante fomento à leitura e divulgação da literatura nacional, a partir de financiamento coletivo, denominado Catarse.
Por tal ferramenta, que até mesmo vem propiciando o deslanchar de vários projetos que outrora permaneceriam ‘engavetados’, o apoiador adquire o livro, revista ou mídia, antecipadamente, e a recebe após a ultimação das fases de editoração. Caso o projeto não alcance a meta, ao apoiador é estorno o montante.
Continua no ar a campanha da revista Mystério Retrô 19, reunindo os veteranos das publicações anteriores, numa bela edição especial de 200 páginas composta por contos e artigos. O Jornal ROL convida ao apoio da cultura nacional prestigiando talentos!
Bienal do Livro de São Paulo e a literatura independente. Uma entrevista com a autora Debora Gimenes
Neste final de semana, começa a Bienal do Livro de São Paulo, festividade importante para o mercado editorial e para o fomento da cultura, que acontecerá até o dia 15 de setembro. Autores de diversas nacionalidades estarão no evento que, neste ano, ocorrerá no pavilhão do Anhembi.
Num breve ‘passear’ pelos estandes, uma multitude de gêneros literários assomará em harmonia com um público ávido, que poderá adquirir livros de grandes casas editoriais, assim como de autores independentes que, de maneira heroica, lutam por seu espaço em tom de igualdade.
Dentre esses componentes da brava gente brasileira, conheceremos, na edição de hoje do Jornal ROL, a escritora Débora Gimenes, autora de romances e contos (disponíveis na Amazon) que gravitam em torno do policial com um viés paranormal, histórias de terror e sagas familiares. Na Bienal deste ano, a autora lançará, no dia 7 de setembro, seu mais novo romance policial, ‘Investigação em Dallas‘, uma nova aventura de sua personagem recorrente, a detetive Paula Oliveira.
Débora também faz parte da Aberst — Associação Brasileira de Escritores de Romance Policial, Suspense e Terror —, fundada em 02 de setembro de 2017. A equipe editorial do Rol convida os leitores a conhecerem um pouco do seu trabalho e a comparecerem a esse super lançamento.
JCR – Quem é Debora Gimenes?
DG – Nasci na capital de São Paulo e, desde muito pequena, fui apresentada aos livros. Com uma criatividade bastante aflorada, comecei com brincadeiras que evoluíram para peças teatrais na escola, depois, me aventurei no mundo dos blogs e, por fim, cheguei às publicações em coletâneas.
Cursei faculdade de Letras, Artes Cênicas e História, mas me encontrei na Terapia Holística e na Psicanálise. Estudo criminologia e psicopatia por hobby.
JCR – Como foi sua trajetória na escrita?
DG – Estreei profissionalmente em 2010, com contos publicados em diversas coletâneas, porém, apenas em 2018 publiquei o meu primeiro romance na amazon. Nesses 8 anos, minha jornada foi como um passeio em uma montanha russa, entre alegrias e decepções com o meio literário. Passei 4 anos afastada, período durante o qual escrevi “Morte Tatuada” e “Segredos e Destinos”.
Também durante esse hiato, descobri-me como autora de romances de ficção de crime, com pitadas de sobrenatural.
JCR –Como conheceu a Aberst?
DG – Desde a sua fundação, a Aberst, anualmente, promove um prêmio literário e, em agosto de 2018, vi, através de uma postagem em uma rede social, que uma amiga havia sido selecionada para a final prêmio. Então, acessei o site da organização, gostei da proposta e me filiei. Após menos de 2 anos, passei a integrar a diretoria e, desde então, tenho me doado para a associação. Hoje, ocupo o cargo de Diretora Social.
JCR –Como foi o processo de escrita do “Investigação em Dallas”?
DG – O ‘ID’ é o terceiro livro impresso com a minha detetive, Paula Oliveira. Ele é um crossover entre o universo Paula Oliveira e o livro ‘Segredos e Destinos’. Sua escrita foi bastante complicada, pois, na época, minha mãe estava com a saúde bastante fragilizada, atravessávamos a pandemia do Covid-19, e cheguei a perder metade do arquivo quase finalizado, devido a um problema com o computador.
A edição também foi árdua e, por diversas vezes, tive a impressão de que o livro jamais ficaria pronto, porém, após o término da revisão, quando o trabalho ficou pronto, senti uma profunda satisfação.
JCR – Quem é a Paula Oliveira?
DG – Criei essa detetive para um conto chamado ‘Retratos da Morte’, elaborando uma personagem muito diferente das heroínas comumente vistas nos livros. Negra, baixinha e gordinha, Paula é uma homenagem a uma das minhas melhores amigas, reunindo, além do seu nome, suas características físicas e personalidade. A personagem vem encantando muitas pessoas e muitas leitoras se veem nela.
JCR – Quando será o lançamento do Investigação em Dallas?
DG – Acontecerá no dia 7 de setembro de 2024, às 15h, na Bienal do livro de São Paulo, no estande da Aberst, Rua J-79. Estarei lá todos os dias, mas, no dia do lançamento, além da sessão de autógrafos, haverá docinhos para quem adquirir o livro.
Estômago – Uma viagem pelos apetites, impulsos e fantasias
COLUNA CINEMA E PSICANÁLISE
Marcus Hemerly e Bruna Rosalem:
‘Estômago – Uma viagem pelos apetites, impulsos e fantasias’
“A fome é eterna, como a vida e como a morte”. Machado de Assis
A interação entre indivíduo e seu espaço de vivência já foi tratada de forma recorrente no simulacro das artes. Não raro, o ambiente atua como um personagem coadjuvante que realça as experiências do main character, seja no ponto de intensidade, seja numa provação que delineia um entendimento de si próprio como uma engrenagem a seu derredor. No neorealismo italiano, a abordagem focada na pessoa, realça o matiz dramático impresso pelo cenário; a trilogia dos apartamentos de Roman Polanski tem sua aura de morbidez e insânia a partir dos lúgubres prédios que atuam como pano de fundo, formando um exemplo de densidade quase palpável daquela interação.
Na história do cinema nacional, o viés existencial a partir dessa abordagem foi tratado com peculiar sensibilidade nas obras de Walter Hugo Khouri, muitas vezes comparado ao sueco Ingmar Bergman.
O espectro, repise-se, de coadjuvação do ambiente como uma ferramenta narrativa já foi utilizado belissimamente, inclusive com uma fotografia melancólica e azulada, no cult ‘Cidade Oculta’, (1986), no qual a urbe parece quase voluntariamente guiar as peças de sua engrenagem rumo ao clímax da ação.
No filme ‘Estômago’, de 2007, Nonato, (João Miguel) é um migrante nordestino que chega à cidade de São Paulo como muitos outros desde a explosão industrial dos anos 50 e 60, onde descobre um talento nato pela culinária, inicialmente, trabalhando como cozinheiro em um bar, sendo então descoberto pelo dono de um renomado restaurante. Sua história é contada de forma não linear a partir de uma cela na prisão.
O porquê de sua segregação e o percurso até seu derradeiro destino é intercalado pelo rememorar de descobertas na metrópole, incluindo um dúbio e idealizado relacionamento com a prostituta Íria, interpretada por Fabiula Nascimento. O tom de ingenuidade e quase pureza de Nonato é aos poucos confrontado com as intempéries e conflitos morais e circunstanciais no meio urbano, sempre impassível a seus habitantes naturais assim como os radicados.
A expressão “pegar pelo estômago” parece ser bem explorada nesta produção brasileira que evidencia a todo instante os prazeres e deleites proporcionados por uma refeição bem preparada. Raimundo Nonato, o cozinheiro, nos deixa claro que sabe o que está fazendo. Suas habilidades no preparo das refeições aprendidas, inicialmente, nos fundos de um bar fazendo coxinhas e afins, foi ganhando cada vez mais requintes de cozinha internacional.
Raimundo conhece os ingredientes, sabe como combiná-los no prato, parece ter o poder nas mãos ao misturar os alimentos e fazer surgir preparos “dos deuses”, exalando odores agradáveis, estimulantes na textura e no visual. Cores, formas, disposição, vibração. A refeição é convidativa, provocante, aguça aos olhos e a boca, se faz desejante, tudo o que se quer é devorá-la.
Uma voracidade ardente, muito bem vivenciada pela prostituta Íria, o grande amor de Raimundo. Ela expressa erotismo e sedução através da comilança. A pulsão oral evidenciada pelas cenas de grande prazer envolvendo o devorar das refeições e o ser devorada no ato sexual. Genuinamente, uma das pulsões que mais nos marca é a oral. Desde os primórdios do nascimento procuramos satisfazer a necessidade por alimento. Gradativamente, esta necessidade torna-se demanda de amor. Não buscamos apenas saciar a fome, o que desejamos mesmo é o toque da pele, o afago, o calor, o acalento, a segurança de estar sendo cuidado e mais, os regozijos que este momento proporciona para o corpo e para a mente. Raimundo Nonato “pega pelo estômago” a todos a sua volta.
Ele conquista sabedoria, autonomia, ganhos financeiros melhores, e até arrisca um pedido de casamento a sua amada Íria que, através do cozinheiro, evidencia a boca enquanto zona erógena que a entorpece de prazer. Curiosamente, em alguns momentos do filme, o enquadramento parece focar em outro orifício. Seria algo provocativo do diretor ao sutilmente nos lembrar que “tudo que entra, sai?”. Afinal a analidade também é um fator discutível quando se trata de zonas erógenas, e, propositalmente ou não, tal provocação é induzida a cada foco de câmera, num rememorar conjunto dos “extremos do prazer” e a multitude de estímulos proporcionados pelo corpo e mente.
Certa vez Nonato ouve de seu chefe, dono do restaurante italiano onde trabalhava atualmente, que o filé mignon era como se fosse a nádega da mulher. A melhor parte para se comer. Enquanto ele descrevia este pedaço da carne, apontava a Nonato o lugar exato de onde retirar da peça do boi a verdadeira iguaria. Parece que esta informação fixou como tatuagem no imaginário de Nonato: carne, nádega, melhor parte.
O que acompanhamos nas cenas seguintes é a passagem da metáfora para a coisa em si: Nonato, literalmente, prepara a nádega de Íria como um prato principal. Inconformado com o que presencia numa noite, após sua amada não lhe dar notícias, vê uma das portas do restaurante entreaberta e ao adentrar o local, depara-se com um cenário indigesto: Iria e seu chefe em pleno romance regado a vinhos e muita fartura. Além desta infeliz visão, a prostituta que dizia a Raimundo nunca beijar seus clientes, enlaça sua língua ao do chefe, parecendo torná-la também parte daquela refeição.
Nonato então ceifa a vida daqueles dois traidores nos brindando com a icônica cena na cozinha fritando a iguaria. Na prisão, o cozinheiro passa a fazer verdadeiros milagres com os parcos alimentos ofertados aos presidiários, além da sujidade e imundície do local onde eram servidos. Notadamente, pelas suas habilidades e conhecimentos culinários passa a ser requisitado pelos colegas, conquistando espaço e prestígio. Mais uma vez a máxima “pegos pelo estômago” entra em cena e Raimundo vai ganhando cada vez mais respeito e admiração. Só restava um feito para que o cozinheiro ganhasse sua estrela: eliminar a chefia. Quase uma reprise do que havia feito outrora.
Em um banquete final preparado com muito cuidado e dedicação para os encarcerados, Raimundo Nonato coloca seu tempero especial pondo fim a quem o impedia de alcançar patamares maiores. Pelo estômago mata-se a fome, e também mata-se o corpo. O cozinheiro que antes só sabia fazer coxinhas, hoje desfruta, mesmo que nos limites da cadeia, de um peculiar sentimento de glória. Sua expressão final é de plena satisfação, nos deixando pistas para novos preparos.
O título foi redescoberto pela disponibilização nas plataformas de streaming, que vem servindo inclusive à popularização de filmes então esquecidos ou não destacados de forma merecida quando de seu lançamento, tal como a era das videolocadoras propiciava projeção a fitas cujo sucesso não havia sido expressivo nos cinemas. Recentemente, de forma reversa, uma importante realização nacional recebeu também novos ares a partir de seu relançamento nos cinemas após processo de restauração, ‘A Hora da Estrela’, adaptado da obra de Clarisse Lispector.
Assim como o protagonista, o olhar não fenecido pela dureza da cidade, mas ainda mantido intocado pela dureza da vida sem oportunidades, apresenta ao espectador a história de Macabéa, que de forma similar, é tocada pela indiferença e aspereza da cidade grande, que oferta a promessa ilusória de um aparentemente “dar de mãos” como amoroso receptáculo, mas que cerra os olhos à sorte de seus integrantes.
Tamanho o sucesso das reflexões paralelamente compostas à comicidade, que o longo ganha nova vida também com o lançamento da continuação, que estreia nos cinemas no dia 29 de agosto. Quais serão os novos sabores ou dissabores criados por Nonato?
É sabido que a poética está vinculada à arte em todas as suas vertentes. Há de se diferenciar a figura do ‘poema’ forma textual concreta e identificável, da ‘poesia’ em sentida genérico, tratando-se do vetor etéreo e instigante das reações emotivas daquele que a aprecia. O saudoso cantor e compositor Adoniram Barbosa (1912 -1982), ou João Rubinato, traduziu como ninguém a junção da arte e cotidiano, retratando desde a sofrida vida dos migrantes, parcelas marginalizadas e sofrimentos idílicos em suas canções.
Acima de tudo, a cidade de São Paulo é transpirada e suspirada em cada verso das composições, pois as diversas regiões da capital paulista serviram não apenas como pano de fundo às estrofes, mas à própria tradução da vivência de Rubinato, como uma personagem autônoma.
Após breve exibição em circuito restrito de cinemas, recentemente chegou aos serviços de streaming o filme ‘Saudosa Maloca’, baseado na vida do sambista, inclusive valendo-se do título de uma de suas canções mais famosas. Trata-se de película inspirada em alguns eventos da vida do cantor, não se desvelando como uma cinebiografia mais acurada de sua trajetória.
Gravado de forma criativa na recentemente restaurada Vila Itororó, no bairro da Bela Vista, em São Paulo, antigo cortiço bem ao estilo da juventude de Adoniram, o atual centro cultural, foi ainda ponto de instalação da primeira piscina pública da cidade, coadjuvando em tom aprazível as desventuras e conquistas do sambista e sua malta.
Nos deparamos com uma atuação bastante devotada do cantor e ator Paulo Miklos no papel principal, entregando performance eficiente que é esmerada pela sua função precípua no universo musical. Entre um lindamente retratado Bixiga dos anos trinta e quarenta, a trama é pontuada por episódios de famosas letras, ainda que de forma indireta, seja na voz do malandro galanteador que precisa pegar o ‘trem das onze’, a ordem de despejo da ‘saudosa maloca’, o fatídico samba na casa do ‘Arnesto’, até a sorte de ‘Iracema’.
A despeito de eventual lacuna no roteiro, lembremos que não é a intenção do diretor Pedro Serrano exaurir a longa e versátil presença do artista nos palcos do teatro, TV e cinema, mas, de forma singela, delinear sua trajetória inicial no rádio, veículo de maior projeção na época, cotejando criações da obra musical do cantor, que também se destacou como compositor até o final da carreira, já debilitado por doenças pulmonares e exímio artesão nas horas vagas.
O resultado, é a reafirmação de que o cinema nacional desde a retomada nos anos 2000, vem delineando produções que flertam com os mais diversificados vieses criativos, desde o true crime, super produções que alçaram voos internacionais e realizações independentes de terror. No caso de ‘Saudosa Maloca’, a vivência do homem comum em seu espaço, canta a cada verso exaltado nas ruas da metrópole e a vida única de seus habitantes. O filme encontra-se disponível nas plataformas Google Play Movies & TV, Apple Tv, YouTube e myfamily cinema, e vem encantando público e crítica, numa redescoberta de um dos grandes artistas brasileiros.
“Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo.” Clarice Lispector
Lançado originalmente em 1985, momento em que a estreante Marcélia Cartaxo no papel da protagonista chamava atenção por sua intensa interpretação, volta aos cinemas a adaptação da última obra escrita por Clarice Lispector, ‘A hora da Estrela’. Dirigindo com maestria pela saudosa Suzana Amaral (1932 -2020), conhecemos Macabéa, migrante nordestina que, a partir de sua simplicidade e ingenuidade – alguns diriam pureza -, é tocada pela indiferença e aspereza da cidade grande.
Originalmente ambientada no Rio de Janeiro, a adaptação cinematográfica da novela de Lispector é transposta para a cidade de São Paulo, onde Macabéa, subempregada e morando em uma pensão com outras trabalhadoras, conhece o também retirante Olímpico, (José Dumont). Tratada com rudeza pelo pretenso namorado e relativa condescendência e menosprezo pelos chefes e colegas de trabalho, se encanta com o metrô e toma aspirinas para aliviar a dor constante que sente. Uma dor que nem ela mesmo explica, aquela que paira sobre o corporal e o existencial; aliás, a personagem em certo momento se pergunta “Será que eu, sou eu?”. Como se não pudesse ela mesma identificar sua função ou lugar no mundo.
Nesse tom melancólico e, não raro, onírico, a personagem gravita em torno de sua vida – ou existência, a pergunta ecoa –, ouvindo as músicas e curiosidades no rádio, enquanto sonha em ser artista/estrela de cinema. Ao passo que o expectador se compadece pelas mazelas da protagonista, cotejando até mesmo um paralelo quase angelical de alguém por demais ingênuo em contraposição a seu derredor, reflete-se ainda sobre os reflexos da migração desordenada. A promessa ilusória de uma cidade aparentemente de mãos abertas como amoroso receptáculo, mas que cerra os olhos à sorte de seus novos habitantes, ao revés do que se exalta no famoso ‘São Paulo, Sociedade Anônima’, (1965), de Luiz Sérgio Person, que retrata o período de florescência industrial brasileira.
Filmado numa época peculiar do cinema nacional, anos antes da extinção da Embrafilme – Empresa Brasileira de Filmes S.A, e das leis de reserva de mercado, observava-se a continuidade de realizações cariocas e daquelas sedimentadas pela aludida Estatal, visto que no final dos anos oitenta amoldava-se a derrocada do ciclo de produções paulistas. Tão somente a partir dos anos 2000, com o fenômeno rotulado de ‘retomada’ do cinema brasileiro, seja a partir produções milionárias ou por realizações independentes, novamente se testemunharia um impulsionamento mais denso de nosso cinema.
Além de estreantes como a própria Cartaxo, capaz de transmitir a história sofrida de Macabéa a partir de um ‘mero’ olhar, interpretação que lhe rendeu a o Urso de Prata de Melhor Atriz no Festival de Berlim, o longa conta com veteranos em papéis secundários, como Fernanda Montenegro e Humberto Magnani. Após quatro décadas de seu lançamento, o filme incluído na lista dos 100 melhores pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine), retorna às salas de cinema em circuito reduzido, após restauração digital em 4K. Para os que ainda não são familiarizados com o destino da protagonista, seja pela obra literária ou sua representação fílmica, a experiência coroa a ideia de que, mais do que a hora, celebra-se a Ressurreição da Estrela, e de sua criadora.